Uma Terra em Brasa, por Pedro Calasso

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Uma Terra em Brasa, por Pedro Calasso

[1] por Pedro Calasso


Nunca imaginei viver um momento como este.

Não desta maneira. Sempre achei que algo crítico aconteceria.

O clima morno, panos quentes e séculos de sujeira varrida pra de baixo do tapete, inevitavelmente seriam trazidos à tona como uma infecção que é expulsa de um organismo que não mais a suporta.

Pensei porém que essa luta seria travada de forma clássica, entre o povo e seus opressores, numa nítida luta de classes onde esses inúmeros brasis de matrizes indígenas, africanas, européias e orientais se uniriam e cobrariam dos menos de 10% da população que detêm a riqueza do país, o fim dessa exploração desmedida ao qual nos submetem há tanto tempo.

O Brasil tem mais de 300 nações indígenas, com línguas e culturas distintas, cerca de 400 ritmos afrobrasileiros, sendo que na África inteira existem por volta de 200. Tem a maior colônia japonesa fora do Japão, tem turcos, libaneses, sírios, portugueses, espanhóis, italianos e alemães entre outros povos e culturas, fazendo com que o povo brasileiro, tão bem descrito nas obras de Darci Ribeiro, seja o povo mais miscigenado e multicultural do planeta.

Na rua e nas massas todo povo é povo.

Somos generosos e donos de uma cultura intensa, plural e viva.

Mas na relação com o Brasil que manda, com o Brasil do poder e do capitalismo propriamente dito, provavelmente somos o país mais injusto do mundo.

O racismo nesse âmbito é cruel e mata.

O descaso, a ganância e a crueldade varrem nações indígenas inteiras do mapa.

O pobre, independente de sua cor ou descendência, representa uma ameaça ao estilo de vida da elite e precisa ser combatido.

Aqui, matar pobre, jovem, mulher, preto e homossexual é institucionalizado.

A fortuna e o conforto de dúzias de famílias sempre ditaram nossa sorte e exatamente contra isso e pela verdadeira libertação do pobre, do preto e do indígena, que ainda vivem sob o cabresto de seus senhores é que achei que lutaríamos juntos, como um só povo.

Mas na contramão à minha crença e usando de toda forma de artifícios, fomos rachados ao meio, numa manobra precisa da extrema direita aliada a um grupo de investidores, tornando possível à alguém como Bolsonaro chegar ao poder através do voto aberto.

Os problemas reais da economia brasileira, o sistema político e financeiro corruptos e o momento delicado da economia mundial foram usados de forma ardilosa por um grupo que representa os interesses de investidores multinacionais, que através a derrubada de Dilma Rousseff (PT) da presidência e a demonização da esquerda brasileira, chegaram ao poder.

Com a ajuda de um especialista de renome internacional em manipulação da opinião pública e de boa parte da “grande mídia brasileira”, plantou-se a ideia de que todos os problemas seculares de nossa nação foram criados ou aprimorados durante os anos do PT na presidência e que vivemos sob a ameaça de uma “ditadura comunista”.

Através de um investimento ilícito e milionário foi desenvolvida uma campanha sofisticada para disseminação de fake news banalizando movimentos populares, promovendo o ódio pela esquerda e o antipetismo que se multiplicou dentro de vários setores da sociedade.

Essa massa no geral é formada por pessoas inconformadas com os problemas no sistema público e a corrupção no país e que foram absorvidas por esse conceito de antipetismo, também por empresários que vêem nesse governo a possibilidade de enriquecimento, além de extremistas, fascistas e fundamentalistas religiosos, que se juntaram num coro quase insano de ódio e intolerância a favor do armamento da população, da diminuição da maioridade penal, da atribuição do poder de execução dado às polícias, da perseguição aos homossexuais, às religiões afro-brasileiras, às nações indígenas e mais uma série de conceitos nazi fascistas.

Meio a tudo isso acabamos polarizados, somos nós e eles, eles e nós e não estou falando dos extremistas ou empresários não, estou falando é do povão mesmo.

Fomos divididos para que eles pudessem conquistar o poder e nessa divisão é que mora o perigo.

Vivemos na iminência de uma guerra civil, um golpe militar e uma cooperação militar entre Bolsonaro e Trump para uma possível invasão na Venezuela.

O armamento pesado “doado” pelo governo norte americano chega aos montes.

Existe ainda o desejo de multinacionais de minerar em plena floresta amazônica e de se ampliar exponencialmente a área utilizada pelo agronegócio brasileiro e para isso será preciso derrubar todas as leis de proteção ambiental, o que está em curso com a “fusão” do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura.

Que isso tudo vai dar em algum lugar terrível para o Brasil e o planeta já é certo.
Tendo a acreditar que disso tudo há de nascer algo bom, uma esquerda renovada, uma sociedade mais justa, novas manifestações e movimentos artísticos, pois como resposta à barbárie temos o costume de mostrar o nosso melhor.

O quanto isso irá nos custar?, é o X da questão.

[1] para citar esta opinião: *Calasso, Pedro «Uma Terra em Brasa», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e compositor brasileiro

Fotografia de capa neste artigo: montagem de Pedro Calasso para Mural Sonoro.




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O que nos resta do regime militar, por Diego Pacheco

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O que nos resta do regime militar, por Diego Pacheco

[1] por Diego Pacheco

Já tarda de muito, o momento em que a Revolução se houvesse institucionalizado realmente, garantindo ao País a segurança de que, numa perspectiva de longos anos, tudo poderá ocorrer sem sucessivos retornos a medidas revolucionárias.

Gen. Golbery de Couto e Silva (Chefe da Casa Civil do governo Geisel, 1974)


O regime autoritário brasileiro distinguiu-se pela prolongada existência e preservação da capacidade de intervenção militar, com a presença no poder de um grupo dirigente voltado para a questão da institucionalização política, seja ao assumir a condução do Estado em 1964, seja ao comandar a lenta transição até à constituição de um governo civil em 1985.  

Assumindo a liderança do regime em 1974, o general Ernesto Geisel que em nenhum momento acenou com a possibilidade de eleições livres e diretas para a escolha do próximo presidente, tal como exigia a oposição democrática, deixou bem claro que os instrumentos de exceção permaneceriam "até que sejam superados pela imaginação criadora, capaz de instituir, quando for oportuno, salvaguardas eficazes dentro do contexto constitucional". O objetivo que se desenhava, assim, continuava a ser o da institucionalização de um regime que anunciava medidas liberais, mas as condicionava à consolidação do projeto autoritário.

A implementação das medidas liberalizantes iniciadas por seu governo estava condicionada à institucionalização de um tipo de regime autoritário com restrições democráticas, o que significa que no projeto de distensão/abertura, a retirada das Forças Armadas da direção do Estado implicava mais do que a sua substituição por um esquema civil de confiança baseado no partido do governo, de modo a preservar os interesses institucionais das corporações.

Como integrantes do aparelho de Estado, os militares deveriam continuar a exercer sua influência sobre as questões em discussão pelos atores do sistema político e da sociedade civil, a fim de garantir a institucionalização de um poder político voltado, sobretudo, para moderar a participação popular tanto na constituição de governos quanto na formação das suas decisões.

Se retirando das instituições de poder político no decorrer da década de 1980, os militares acompanharam a sucessões de governos civis iniciados por um membro da ARENA, José Sarney, seguido por uma intensa crise no novo sistema político brasileiro: o impedimento do primeiro presidente eleito Fernando Collor de Melo em 1992.

Com a estabilização da economia e a contenção do grave problema inflacionário, o sistema polítco brasileiro passou por um período da estabilidade e de ascenção das classes populares, gerando maior distribuição de renda, combate a fome e a miséria, problemas antigos brasileiros, agravados inclusive durante o período ditatorial na segunda metade do século XX.

Com a crise econômica no final da primeira década do século XXI a social democracia brasileira, no governo há mais de uma década, passou a ter dificuldades em manter sua política de atendimento das demandas populares e, ao mesmo tempo, manter as altas taxas de lucros do sistema financeiro e de setores empresariais que ainda sustentavam seus governos. Perdendo o apoio de parte da sociedade, o pacto socialdemocrata se rompe, inviabilizando o governo Dilma Rousseff por meio de um entrave legislativo e uma sistemática campanha mediática que cobrava ao governo por medidas liberais que estancasse o gasto público com programas sociais e de investimento em serviço público.

Assim como em outras partes do mundo, a campanha contra a socialdemocracia passou a relacionar os gastos públicos com a bandeira sempre útil da corrupção, chamando a atenção da sociedade civil para a relação promiscua entre empresas e o estado, onde empreiteiras se beneficiavam de contatos políticos para garantir licitações e aumentar ainda mais seus lucros em troca de apoio político e financeiro.

Com a crescente perda de credibilidade da socialdemocracia, com o profundo fisiologismo dos partidos de centro e com a debilidade política da democracia cristã, a resposta mais imediata da direita brasileira é em revisitar um passado mítico do regime militar. Isso só é possível graças ao projeto bem sucedido de institucionalização do regime, que, além de controlar todo o processo de anistia política, inclusive com a ideia de auto anistia, manteve instituições policiais e jurídicas criadas no periodo autoritário, chamados por muitos de entulhos autoritários.

Tais entulhos jamais foram retirados da sociedade brasileira. O elogio à tortura, a violência política e a ascensão da ultradireita brasileira só é possível devido ao sentimento romantizado acerca de um período que como sociedade nunca fomos capazes de encarar criticamente nas escolas. A discussão sobre Ditadura Militar nunca saiu efetivamente dos muros acadêmicos. O sucesso de sua institucionalização se deu sobretudo por meio de um pacto de silêncio dos mais diversos atores políticos que hoje se tornam vítimas de seus próprios contratos.

[1] para citar esta opinião: *Pacheco, Diego «O que nos resta do regime militar», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Professor, historiador, pesquisador brasileiro (UFSC)


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Brasil, começar de novo?, por Ivan Lins

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Brasil, começar de novo?, por Ivan Lins


[1] por Ivan Lins

Queridos amigos e queridas amigas em Portugal,

A verdadeira democracia brasileira, moldada na alegria, no pacifismo, na gentileza, na liberdade de expressão, na de gênero, na de religião, acaba de sofrer um baque, que se perpetuará por quatro anos no mínimo.

Avanços em algumas áreas estão prometidas? Mas, vários retrocessos também. O que, de uma certa maneira, segue o que vem acontecendo no mundo. A extrema direita vem se espalhando lentamente. Em minha opinião, muito por incompetência do centro e da esquerda. A esquerda que muitas vezes se abraçou à arrogância, à prepotência e à soberba.

Fala-se em corrupção. Esta existe de qualquer lado, ela naufragou todas as teorias ideológicas, dada a variada natureza humana, que não a levaram em conta. 

A busca do poder, com seus confortos financeiros, levou esses ‘‘espertos’’ a ‘‘lutas’’ que usaram da sedução e de corporações ricas, com seus interesses meramente oportunistas, especialmente o de serem bem sucedidos.

Demagogia, corrupção, má fé, incompetência e ineficiência, levaram o Brasil a uma situação econômica trágica. Desta situação trágica, emergiu o que muitos e muitas julgarão ser o "salvador da pátria", com um discurso duro, de temperamento incendiário, agressivo, reacionário.

Assumiu sua novidade com promessas sedutoras, de forma fanática, se oferecendo como antídoto seguro contra o desastre das administrações anteriores, explorando a imensa e cega raiva e ódio de grande parte da população. Anestesiou raciocínios e o bom senso, explorando a imensa ignorância aflorada no país. Momento certo, no lugar certo, infelizmente. Ajudando a eleger outros novos, que sabemos aqui, dotados de competência e honestidade duvidosa. Tudo em nome da ‘‘renovação politica’’, e ‘‘afastamento de antigas’’, e, convenhamos, também duvidosas, lideranças políticas. 

Gostaríamos de que, ao menos, o menos pior se revelasse. Temos muitas dúvidas quanto a isso. A verdadeira democracia está ameaçada.

O bom é que a oposição popular é bastante grande também. O que pode obrigar ao ‘‘messias de tacape’’ a ter que optar por medidas menos levianas.

O Congresso, agora dividido, não será tão puxa-saco, como foi o da maldita ditadura anterior, de tão triste lembrança? Quando os militares, além da violência, fizeram vista grossa para a imensa corrupção, que já vicejava naquela época?

Tempos bem complicados, neste meu Brasil querido, estão chegando.

Mas jamais derrubarão, no sentimento dos verdadeiros democratas, a eterna esperança pelo sol brilhante a prevalecer sobre as trevas.

[1] para citar esta opinião: Lins, Ivan «Brasil, começar de novo?», plataforma Mural Sonoro, em 29 de Outubro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e Compositor brasileiro

Sugestões de escuta:

1) Sarah Vaughan que também gravou músicas, como esta, de Ivan Lins. «Começar de Novo» foi uma das canções de Ivan Lins e Vitor Martins censuradas no período da ditadura militar brasileira. 

2) Ivan Lins, História Oral, Mural Sonoro, entrevista a Soraia Simões em 2013 aqui

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Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias, por Ana Pinto

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Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias, por Ana Pinto

[1] por Ana Pinto

As bandas filarmónicas são dos agrupamentos musicais de índole popular mais disseminados pelo nosso país. Com uma forte tradição na divulgação da arte musical e da cultura popular em geral, têm tido, desde que surgiram, um papel preponderante na formação de miúdos e graúdos e, inclusivamente, na sua integração social.

Há quem as apelide de “conservatórios do povo” por serem verdadeiras escolas de música dita não erudita, mas de onde saem alguns dos maiores nomes da música nacional. Criadas em Portugal há cerca de dois séculos, proliferam por todo o país, em aldeias, vilas e cidades, e são assumidas como verdadeiros veículos de transmissão cultural e de valores.

A Banda Filarmónica de Pinhel, da qual faço parte enquanto instrumentista (clarinete) há quase 17 anos, é uma das centenas de filarmónicas existentes por todo o território nacional e, apesar de interruptos, conta com mais de uma centena de aniversários, assumindo um forte papel de educação cultural e musical dos indivíduos que habitam tanto na cidade como nas aldeias do concelho.

Da sua história, difusa e bastante dispersa, pouco se sabe. Sabe-se que não tem uma existência ininterrupta, tendo passado por várias crises ao longo das décadas que provocaram sucessivos términus e recomeços, com mudança do modo de gestão, organização e, até, da sua denominação.

Até à data, nunca ninguém se debruçou sobre a história desta Instituição pinhelense que, atrevo-me a afirmar, é das mais antigas da cidade, ficando apenas atrás (no que à data de fundação diz respeito) da Santa Casa da Misericórdia e dos Bombeiros Voluntários.

Não obstante o facto de, actualmente, não ser o único grupo musical da cidade, foi um dos primeiros – ou, mesmo, o primeiro – a ser fundado, pelo que merece que lhe seja reconhecida a devida importância e longevidade.

O meu profundo interesse e curiosidade pela história da Filarmónica onde cresci e cresço todos os dias levaram-me a iniciar uma investigação sobre a mesma. Quando comecei, em meados do ano 2015, o projecto era apenas de ordem pessoal, que desenvolvia nos tempos livres com o objectivo de recolher, sobretudo, dados históricos.

Mais recentemente, a vontade de prosseguir a minha formação académica levou-me a procurar um curso através do qual pudesse desenvolver esta investigação numa vertente científica. Deste modo, a investigação que tenho em curso sobre a Banda Filarmónica de Pinhel servirá de tema para a dissertação do Mestrado em Estudos de Cultura que iniciei no presente ano lectivo na Universidade da Beira Interior.

Recuperar, sistematizar e divulgar a história da Banda Filarmónica de Pinhel é o objectivo maior desta investigação. Adicionalmente, espero que a mesma sirva para promover a Instituição e aproximá-la da comunidade pinhelense que, segundo a minha experiência pessoal, não lhe atribui nem reconhece o seu devido valor. Por outro lado, com a realização deste estudo de mestrado, pretendo igualmente inquirir a população de Pinhel com o intuito de avaliar e perceber o seu grau de conhecimento em relação a esta Filarmónica, bem como a valorização e importância que cada um lhe atribui.

Pelos dados que já me foi possível recolher, a origem da música de grupo em Pinhel remonta, sensivelmente, ao século XIX e está relacionada com a presença de unidades militares na cidade. De acordo com essas informações, em finais do século XIX estava aquartelado na cidade o Regimento de Infantaria 24, que teria uma Banda Militar. Mais tarde, sabe-se que também o Regimento de Infantaria 34 (instalado em Pinhel entre 1918 e 1926) teve a sua banda de música e que, esta última, coexistiu com a primeira banda filarmónica civil da Cidade Falcão.

Os músicos e a música militar existentes na cidade acabaram por, invariavelmente, ter influência na criação e manutenção da filarmónica que surgiu em Pinhel nos primeiros anos do século XX uma vez que alguns músicos militares foram músicos da banda civil, tal como aconteceu com alguns dos seus maestros.

A investigação conta já com uma vasta pesquisa em diversas fontes: imprensa local e regional, documentação existente no Arquivo Municipal de Pinhel, bibliografia local, bem como diversas entrevistas realizadas a antigos músicos e ao responsável pela criação da actual versão da Filarmónica, em actividade ininterrupta desde meados de 1986.

A pesquisa em fontes documentais ainda está a decorrer, visto que há alguns jornais e outra documentação a consultar, e a realização de entrevistas a antigos músicos também está por terminar.

Não obstante este facto, a investigação segue a bom ritmo. Já consegui recolher dados bastante importantes e tenciono que o estudo esteja concluído em 2020, altura previsível da apresentação pública dos resultados com a defesa da referida dissertação de mestrado.

Numa altura em que a temática das bandas filarmónicas e da filarmonia ganha cada vez mais espaço no meio académico, considero pertinente a realização deste estudo com suporte científico, dando o meu contributo para o estudo destas matérias no seio das nossas universidades. Ao mesmo tempo, espero que o trabalho possa engrandecer a Instituição aos olhos da comunidade e contribuir para enriquecer a cultura da cidade e do concelho de Pinhel.


[1] para citar este artigo: *Pinto, Ana «Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias», Plataforma Mural Sonoro em 27 de Outubro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

Fotografia de capa, Banda da Legião Portuguesa (Pinhel) - Ano de 1948, espólio da Casa do Povo de Pinhel.

*Professora de clarinete e saxofone na Academia de Música de Pinhel. Estudante de Mestrado.


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A humanização da necessidade e a liberdade necessária à realização pessoal e humana, por Alexandra M. Moreira do Carmo

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A humanização da necessidade e a liberdade necessária à realização pessoal e humana, por Alexandra M. Moreira do Carmo

por Alexandra M. Moreira do Carmo [1]

1. Introdução

Perante o actual desenvolvimento da ciência e da tecnologia e não se colocando já a problemática da escassez para a maioria das sociedades industrialmente avançadas, multiplicam-se as interrogações sobre a pertinência de abolir o trabalho imposto pela necessidade e a possibilidade de o substituir por actividades que visem mais a auto-realização. O horizonte deste questionamento será remetido, num primeiro momento, para um breve enquadramento histórico da noção de trabalho e dos argumentos que sustentam a sua abolição, desde Aristóteles e através de Karl Marx. Estará em causa a contraposição entre necessidade e liberdade cuja explicitação se desenvolverá, no contexto proposto, em torno da distinção que Hannah Arendt estabelece, em A condição Humana, entre labor, trabalho e outras actividades que escapam ao universo conceptual dos primeiros.

Num segundo momento, contrastar-se-á o pessimismo de Hannah Arendt com o optimismo de Karl Marx, relativamente à possibilidade de o ser humano se libertar da sua condição moderna de animal laborans – pese mais a sua utilidade na produtividade ou no consumo – por meio do desenvolvimento tecnológico. Concluo, discordando de Arendt, que a libertação em causa é possível mas esta não dependerá apenas do desenvolvimento da tecnologia. Partindo do pressuposto de que os critérios pelos quais se regulam as sociedades contemporâneas são ainda os da modernidade, entre outros, os da produtividade e consumo, utilidade e crescimento ilimitado, será a interrogação sobre a capacidade de a cultura contemporânea se libertar desses critérios que se mostra, na minha perspectiva, premente. Isto é, entre os diferentes apelos que a componente revolucionária da ciência e da tecnologia nos dirige, estará aquele que convida à ultrapassagem do modo como habitualmente se reduz, em nome do “progresso”, o domínio da existência ao da mera subsistência.  


2. Liberdade e necessidade


As circunstâncias da idade contemporânea estão já determinadas pela evolução da ciência e da tecnologia, gerando inquietações, mas também antecipando novas realidades como a que atende ao desejo secular de libertar os seres humanos do trabalho imposto pela necessidade. O enquadramento histórico-filosófico relativo à “abolição do trabalho” exige que se distinga entre subsistência e existência, remetendo a primeira para as acções, meios e o conjunto de coisas essenciais ao processo biológico, estabilidade e preservação da vida e a segunda para a dimensão ôntico-ontológica do ser humano, actividade e capacidades que lhe são específicas cujo aprofundamento não se esgota nas acções que atendem às necessidades vitais. Neste contexto, poder-se-á também distinguir entre trabalho imposto pela necessidade e aquele que visa a auto-realização.

Este âmbito conceptual não difere muito do pensamento que influenciou a cultura do Ocidente, nomeadamente o grego, que distinguia entre trabalho e outras actividades que não são trabalho, e cujo menosprezo pelo primeiro se fundamentava na oposição entre necessidade e liberdade, e a ideia de que esta só seria possível na ausência das actividades que se ocupam da subsistência. Entre os modos de vida conotados com a liberdade, isto é, libertos do necessário e do útil, Aristóteles refere a vida orientada para o prazer [2] ; a vida que se ocupa dos “assuntos da polis” [bios politikos: acção (praxis) e discurso (lexis)]; e a vida que se dedica à investigação e “contemplação das coisas eternas” [theoria] [3], equivalendo esta última à vida mais autenticamente humana e feliz [eudaimonia] porque, conforme ao logos, nela se actualizam as possibilidades próprias e mais excelentes do ser humano [ergon] [4]. Sobressai na singularidade do pensamento aristotélico a ideia de que a felicidade é uma actividade [5], passível de potenciar não tanto o ter mas o ser humano e será esta liberdade que o filósofo não encontra nas actividades constrangidas pela necessidade.

O desejo de abolir o trabalho imposto pela necessidade pertence à génese do pensamento e cultura do Ocidente; no entanto, Hesíodo é um dos raros autores, senão o único, que aparentemente enaltece as penas das actividades vinculadas à necessidade. Distinguindo entre trabalho [(ergon) - trabalho criativo, cujo esforço dignifica o homem] e labor [(ponos), labuta sofrida, extenuante] [6], Hesíodo procura em Trabalhos e Dias valorizar o sofrimento oriundo de ponos, relacionando-o com a justiça [Dike], que domina a insolência [7] e cujo carácter virtuoso é resumido pelo autor na frase ainda hoje proferida “o trabalho não é vergonha, vergonha é não trabalhar” [8]. Mas o labor correlaciona-se também com a decadência progressiva da humanidade como o Mito das Cinco Idades explicita [9]. Se, na Idade de Ouro, os homens viviam ao abrigo do mal, trabalhos e aflições, na Idade de Ferro, a humanidade é alvo de uma punição cósmica [10], que sobre ela recai sob a forma do trabalho servil. Assim, embora dignifique o labor, Hesíodo também o considera um mal que a par dos outros males evolados da Caixa de Pandora é imposto por Zeus aos homens como castigo pela traição de Prometeu. Subjaz então ao labor, aos cuidados e aflições que consomem a humanidade, um sentimento de culpa, expiação e conformismo relativamente aos quais a sinistra frase “O trabalho liberta” inscrita nos portões nazis de Auschwitz não terá sido indiferente.

Derivando do latim tripalium que designa o instrumento composto por três varas utilizado para prender animais e torturar seres humanos, o sentido depreciativo que durante séculos foi atribuído ao trabalho depreende-se sem grande dificuldade da sua etimologia. Mas é no âmbito da contraposição entre labor e trabalho, referenciada por Hesíodo e aprofundada por Hannah Arendt na sua obra A Condição Humana, que melhor se explicita a heterogeneidade conceptual relativa à noção de trabalho [11].

Embora releve do sentido mais originário de labor uma componente ecológica e de proximidade do ser humano ao meio natural, o labor é também sinónimo de sofrimento, patente nas tarefas monótonas e extenuantes que o animal laborans executa com o objectivo de suprir as necessidades mais básicas do seu ciclo vital e o da espécie. Historicamente relacionado com a escravatura e a servidão, é no labor que a existência humana mais se ressente do peso da vida. Por seu lado, o trabalho corresponde ao universo do artifício humano de que o homo faber se ocupa, livre e criativamente, equivalendo, portanto, esta actividade a um modo de vida mais digna do que a do labor [12]. Esta distinção tende a esbater-se com o decorrer do tempo, mas as razões pelas quais se agregou labor e trabalho num único conceito, o de “trabalho”, diferem na antiguidade e na modernidade e, por isso, o desaparecimento desta contraposição reflecte também o modo como estes dois períodos da cultura europeia conceberam o que habitualmente se designa por “mundo do trabalho”.

No âmbito do pensamento aristotélico, as diferenças entre labor e trabalho não são irrelevantes, nem é questionada a correspondência deste último a uma actividade mais digna do que a do primeiro. No entanto, pelo facto de o trabalho não estar totalmente liberto do necessário e do útil, ele sofre, como o labor, embora noutro grau, de um deficit de liberdade [13]. Assim, para Aristóteles, a contraposição mais relevante será entre labor/trabalho, de um lado, e as actividades absolutamente livres dos constrangimentos impostos pela necessidade, de um outro, consistindo esta libertação, no essencial, na realização do que é mais próprio e especificamente humano.

[1] para citar este artigo: *Carmo, Alexandra M. Moreira «A humanização da necessidade e a liberdade necessária à realização pessoal e humana», plataforma Mural Sonoro https://www.muralsonoro.com/recepcao, 22 de Outubro de 2018. Anexo [sugestão].

*Investigadora do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)

[2] Cf. Aristóteles, 2004: 1095b. Para o desenvolvimento do conceito de prazer no contexto aristotélico, veja-se na mesma obra: 1172 a -1176.

[3] Cf. Aristóteles, 2004: 1095b -1096 a.  

[4] O termo grego ergon traduz-se habitualmente por “função”, remetendo-se neste contexto para a especificidade da função humana, isto é, para a realização ou actualização das suas possibilidades próprias. (Cf. Martins,1994:185).

[5] Cf. Aristóteles, 2004: 1176b-1178b.

[6] Só o trabalho [ergon] deve-se à acção estimulante de Eris, o labor [ponos] constitui um mal, uma punição imposta por Zeus. (Cf. Hesíodo, 1990, vv. 20-26).

[7] Cf. Hesíodo, 1990: vv. 213-218.

[8] Hesíodo, 1990: v. 311.

[9] Cf. Hesíodo, 1990: vv. 109-201.

[10] Cf. Hesíodo, 1990: vv. 90-105.

[11] A língua grega distingue entre ponein e ergazesthai; o latim entre laborare e facere ou fabricare; o francês entre labourer (mais tarde travailler, do latim tripalium) e ouvrer; o alemão entre arbeiten e werken. Os primeiros de cada par são equivalentes de laborar, o verbo com o mesmo radical que labor, conotado com dor e penas, e que, por isso, refere os trabalhos mais pesados habitualmente executados por servos. [Cf. Arendt, 2001:159 (nota de rodapé)].

[12] Cf. Arendt, 2001: 9-21,107-117.

[13] Cf. Aristóteles, 1998: 1337b5.


3. Trabalho e modernidade


Na modernidade, labor e trabalho tendem também a reunir-se num único conceito mas pelas razões opostas às do espírito grego. A libertação dos grilhões da necessidade não é algo que preocupe o modo de ser moderno, pois será mais a vida orientada pelos critérios da utilidade, produtividade e consumo que aquele elegerá. Do conceito originário do labor, é sobretudo extraída a capacidade de trabalho árduo, mas desvalorizada a sua componente ecológica e de proximidade à terra, e o produto do trabalho artesanal do homo faber será absorvido pela indústria. No que diz respeito à contraposição entre o universo do labor/trabalho e o da vida teorética, a modernidade dará primazia ao primeiro. Há de facto, como Arendt refere, uma transferência do lugar antes ocupado pelo “animal rationale” para o “animal laborans[14] mas esta cedência de estatuto não corresponde a uma paixão desinteressada pelo labor power. À excepção de Marx, que estava genuinamente preocupado com o labor per se, a intenção da maioria dos modernos era a de incrementar nas sociedades a livre e ilimitada acumulação de riqueza. No alcance deste propósito, a capacidade produtiva do trabalho laboral é crucial, insubstituível e, por isso, a ideia de o abolir torna-se agora definitivamente utópica, indesejada.

Mas a ambição moderna de crescimento sem termo não só coloca o labor no topo da hierarquia das actividades humanas como as convidará todas a integrar o seu processo, com o propósito de aumentar exponencialmente a produção e o consumo. Se originalmente o trabalho do homo faber se focava na produção de objectos de uso que se distinguiam pela sua durabilidade, a actividade do animal laborans destinava-se à produção de bens perecíveis relativa aos dois estágios do “eterno ciclo da vida biológica”, o consumo e a produtividade [15] . Esta polaridade do labor remetida a um processo interminável da actividade seria aquela que melhor se adaptaria à ambição dos modernos de crescer sem limites, empenhando-se assim o jovem capitalismo, através da industrialização e produção em massa, na redução de objectos de uso (duráveis) à categoria de bens de consumo (perecíveis). Ora ao aproximar-se tanto quanto possível a efemeridade de um vestido da de um produto agrícola, o consumo e a produção de tudo incrementam-se necessária e interminavelmente, como se o artificialismo humano pertencesse de facto ao eterno ciclo da vida biológica. Esta criatividade patente na orgânica dos processos de produção torna-os exaustivos, mas sem ele não seria possível atender à ambição de riqueza. Por isso, o trabalho é, na modernidade, “glorificado”, segundo a expressão de Arendt [16], e o seu alívio considerado “irracional” diante da “necessidade” de crescimento infinito. Neste desígnio progressista que pretende envolver todos os cidadãos, intelectuais e artistas são respeitados mas remetidos para o estatuto de convivas ociosos e parasitários, como se toda a actividade que não enriquecesse o mundo fosse indigna.

[14] Cf. Arendt, 2001: 111.

[15] Cf. Arendt, 2001:124.

[16] Cf. Arendt, 2001:111.


4.  Produção, consumo e tecnologia

Os critérios pelos quais se regulam as sociedades contemporâneas são ainda os que se atêm à produtividade e consumo, utilidade e crescimento ilimitado. Todavia, o aperfeiçoamento sem precedentes da ciência e da tecnologia desafia alguns destes critérios, nomeadamente, o da utilidade dos seres humanos no processo produtivo. Mas podem as sociedades tecnologicamente avançadas prescindir do labor humano e simultaneamente manter intactos os objectivos que herdaram da modernidade?  

As sociedades hodiernas são já sociedades de abundância e a robotização que integra a componente da inteligência artificial, conectividade e mobilidade, pelas  competências que exibe, não constituirá uma ameaça para o processo do labor. Pelo contrário, os robôs não comem nem dormem, não reclamam direitos e, por isso, ao substituírem-se à mão-de-obra humana, responderão de forma mais eficaz à exigência de crescimento e alta produtividade, potenciando a abundância já existente.

Mas esta perspectiva de crescimento exponencial da riqueza não parece apaziguar os receios despoletados pela evolução da tecnologia, pela razão óbvia de que a robotização destrói empregos, retira o trabalho a quem dele depende para subsistir. No entanto, sob pena de a polaridade produtividade/consumo já não se sustentar, não é crível que se retire às pessoas os meios para adquirir as coisas que elas já não produzem, mas cujo consumo lhes é ainda destinado. Perante este problema, num volte-face que não deixa de ser irónico, argumenta-se que o trabalho imposto pela necessidade não desaparecerá, mas antes terá outra natureza, agora mais voltada para as áreas do conhecimento [theoria]. Sugerem-se simultaneamente soluções como a criação de um Rendimento Básico Incondicional (RBI) e a hipótese de os robôs contribuírem para o erário público, de forma a assegurar pelo menos a subsistência básica das populações. Estes argumentos suscitam, no entanto, algumas interrogações. A primeira dirige-se ao destino e propósito da ciência e da tecnologia, caso o processo do labor se aproprie destas, à semelhança do que fez na era industrial com a actividade do homo faber. Em contrapartida, nas propostas acima referidas, não é claro se a equidade distributiva da riqueza produzida e a da gestão dos recursos no planeta constituirão uma realidade passível de acompanhar o horizonte e o percurso revolucionário da tecnologia.

Precisamente, na modernidade, o caminho que a mecânica industrial trilhou nunca teve como horizonte o ambiente e a ecologia. A natureza estendia-se diante dos  olhos dos modernos como um vasto mar de ricos e ilimitados recursos, inspirando ambições de riqueza análoga nas sociedades que pretendiam edificar. Hoje, os altos níveis de degradação e desgaste do ecossistema contrariam essa visão, mostrando que é insustentável crescer infinitamente num planeta com recursos finitos. Ora, ao perpetuar-se as aspirações da era industrial do século XIX e sendo previsível que a robotização aumente exponencialmente a produção (e o consumo) de tudo, esses recursos finitos dos quais depende realmente a subsistência humana serão muito provavelmente aniquilados. Perante esta realidade, se a cultura civilizacional não priorizar modelos que visem mais a gestão de recursos em vez da predação infinita dos mesmos, se ela não humanizar as instituições que a fundaram, a revolução tecnológica em curso tornar-se-á um pesadelo e precipitará os cenários apocalípticos que muitos preconizam.


5. A tecnologia no contexto da abolição do trabalho


Mas abrem-se também novas janelas de esperança perante a possibilidade de a tecnologia atender ao desejo secular, embora adormecido desde a modernidade, de libertar os seres humanos do trabalho imposto pela necessidade. Assim, como recaía sobre os escravos da antiguidade o ónus da subsistência da polis, os robôs também poderiam libertar os seres humanos para uma realidade onde estes apenas se ocupassem de actividades que os realizasse. Mas, segundo Arendt,


“A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que não conhece essas actividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade [...] O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única actividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior” [17].     


O desaparecimento do trabalho numa sociedade de trabalhadores laborais significaria certamente o desmoronamento de um projecto de mundo. Mas de que desmoronamento se trata? Este constituirá certamente a derrocada de um mundo que, para se sustentar, recuperou absolutamente o universo mais sofrido do animal laborans, condicionou a maioria a uma “vida de trabalho” relativamente à qual a realização pessoal e felicidade são permanentemente desvalorizadas. Certa é também a análise de que as sociedades se transformaram em sociedades de operários que desconhecem tudo o que não se prende com a subsistência ou que relegam para segundo plano actividades para as quais já não se tem tempo nem motivação, porque deixaram de ser úteis. Certamente é também aí que falha a existência. Mas, discordando de Arendt, pior do que abandonar este estágio da cultura civilizacional humana será, certamente, perpetuá-lo.

O pessimismo de Arendt desenvolve-se em torno da sua crítica ao célebre trecho do Livro Terceiro de O Capital de Karl Marx, onde este afirma que “o reino da liberdade” [18] só começa quando de facto o trabalho deixa de ser determinado pela necessidade e por finalidades que lhe são impostas pelo exterior, embora o “reino da liberdade” somente possa florescer sobre o “reino da necessidade”, acrescenta o filósofo. Estas afirmações são habitualmente interpretadas ora como um recuo nas teses anteriormente desenvolvidas por Marx sobre a abolição do trabalho [19] ora como um elemento contraditório na globalidade do seu pensamento [20]. No entanto, para outros estudiosos da filosofia marxista, a afirmação aparentemente contraditória de que a liberdade tem por base a necessidade não significa abandonar a ideia de abolir o trabalho, mas antes sustentar que as actividades na sociedade pós-capitalista já não serão denominadas trabalho [21], isto é, essas ocupações já não se referirão à labuta sofrida, ao trabalho alienado, pesado e repetitivo. Como André Barata também defende, “[...] está aqui em causa uma reinterpretação do trabalho como processo que se passa entre homem e natureza, já não como natureza que se humaniza, mas antes, humanidade que se humaniza”[22].

Segundo Marx, as condições para superar o trabalho-valor, também referido como “actividade não livre” [23], trabalho forçado”, “imposto” [24] são as relacionadas com o desenvolvimento avançado da maquinaria e da ciência tecnológica, que substituiriam em algum momento o ser humano no processo de produção, reduzindo-lhe o tempo do seu labor e possibilitando, como se lê nos Grundrisse, a formação artística e científica dos indivíduos graças aos meios criados para benefício de todos [25]. Todavia, para Arendt, se fosse possível realizar a “utopia” da abolição do trabalho, não seria propriamente para essas “actividades superiores” que os trabalhadores das actuais sociedades se transportariam.


“O modelo que inspirava esta esperança de Marx era, sem dúvida, a Atenas de Péricles que no futuro, graças ao vasto aumento da produtividade do trabalho humano, prescindiria de escravos para se sustentar e se tornaria realidade para todos. Cem anos depois de Marx, sabemos quão falacioso é este raciocínio: as horas vagas do animal laborans nunca são gastas noutra coisa senão em consumir; e, quanto maior é o tempo que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites. O facto de estes apetites se tornarem mais refinados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida, mas pelo contrário visa principalmente  as superfluidades da vida, não altera o carácter desta sociedade; implica o grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objecto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo” [26] .


A revolução tecnológica em curso é passível de nos colocar no limiar de algo absolutamente novo, mas, se o palco da sua actuação for o mesmo dos últimos modelos civilizacionais, a análise de Arendt merece atenção. Pelo facto de não ter sido na liberdade, mas mais na necessidade, que a acção humana se tem concentrado, e por razões que muitas vezes ultrapassam a mera necessidade, o que remanesceu do amplo significado de liberdade exprime pouco mais do que a livre-circulação de pessoas (e bens), que, para todos os efeitos, quando circulam consomem e quando não circulam trabalham para que possam vir a consumir. Nesta espiral vertiginosa, já quase nada resta do horizonte humano a não ser o objectivo de “prover o seu próprio sustento”, que se tornou insaciável, e o de trabalhar, que garante o primeiro, tornando-se ambos, consumo e labor, as únicas actividades que a actual sociedade de operários conhece e lhe restam. Assim, na eventualidade de o labor se retirar da vida das sociedades, esse “vazio” seria colmatado pelo consumo, um consumo devorador do mundo, segundo Arendt.

[17] Arendt, 2001:16.

[18] “O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; portanto, pela própria natureza da questão, isso transcende a esfera da produção material propriamente dita [...] Mas este sempre continua a ser um reino da necessidade. Além dele é que começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a [sua] condição fundamental”. (Marx, 1986 : 273).

[19] “Os proletários, se pretendem afirmar-se como pessoas, devem abolir a sua própria condição de existência anterior [...] isto é, devem abolir o trabalho”. (Marx; Engels, 1974: 82).

[20] Arendt, 2001:128-129.

[21] “Apesar do aparente recuo teórico de Marx, creio que é possível harmonizar esta posição com a ideia radical de abolir o trabalho presente nas suas obras da juventude. Se o trabalho concreto for encarado como uma categoria historicamente específica, indissociável do trabalho abstrato, então a abolição deste – inquestionável em Marx – implicará a abolição daquele. Por outras palavras, o processo de (re)produção material da humanidade numa sociedade pós-capitalista, ou seja, as atividades da esfera da necessidade do Livro Terceiro de O Capital nunca poderão ser denominadas trabalho”. (Machado, 2017:23).

[22] Barata, 2015:32.

[23] Marx, 1993:168.

[24] Marx, 1993:162.

[25] Cf. Marx, 2011:28.

[26] Arendt, 2001:157.

6. Desafios e ambiguidades da cultura contemporânea


Mas não é apenas Arendt que coloca objecções à capacidade de a ciência e a tecnologia resolverem per se os problemas de fundo do nosso modo de habitar o mundo, a actualidade já nos diz alguma coisa sobre essa impossibilidade. Como Eduardo Lourenço sublinha,


“O que há de novo no mundo contemporâneo não é o facto nem mesmo o grau de inumanidade que a persistência da fome, da doença, da total exclusão de milhões de homens de um mínimo de dignidade ou até da hipótese de sobrevivência revela, mas a constatação de que esse fenómeno coexiste com o espectáculo de uma civilização aparentemente dotada de todos os meios, de todos os poderes, para a abolir”[27] .

Não é de facto necessário esperar por melhor tecnologia para resolver situações de inumanidade tão díspares como a da fome de quem não tem trabalho e a de quem o tem, mas mal existe para subsistir. A justificativa da escassez e a de falta de meios para combater as situações mais degradantes na esfera da subsistência, já pouca ou nenhuma relevância têm num mundo onde o desperdício se globalizou. Nas últimas décadas, tanto a carência como a necessidade do trabalho exaustivo têm sido artificialmente geridas, isto é, o modo de ser laborans cuja versão moderna é duplamente devastadora da existência preserva-se embora existam os meios e a tecnologia e outros “poderes” para abandonar esse modo.

Esta é também a constatação de Herbert Marcuse que, na sua obra Eros e Civilização, de 1955, conclui que os processos sublimatórios da energia humana em trabalho penoso e desagradável, mais do que necessários, são formas de “dominação organizada” [28], um modo de as sociedades contemporâneas e industrialmente avançadas exercerem sobre os seus membros um irracional e elevado grau de repressão. Se, para  Sigmund Freud, “o preço do progresso civilizacional é pago com a perda da felicidade” [29], para Marcuse, o preço actual desse “progresso” tornou-se insustentável para a existência humana e para o planeta [30]. Uma década depois, na sua fase mais pessimista, a crítica de Marcuse dirige-se sobretudo aos “membros-reprimidos” das sociedades acima referidas, pelo facto de estes terem perdido a oportunidade de usar a riqueza social em benefício da sua liberdade e por terem permitido que o fundamento lógico (e obsoleto) da dominação se reforçasse através de novas formas de controlo ainda mais eficientes, nomeadamente o consumo e a oferta de actividades ociosas que não exigem empenho mental, mas cuja eficácia é precisamente a de reprimir a necessidade de liberdade. Estas práticas de manipulação, que carecem de resistência e com que Marcuse se indigna, corroboram de algum modo a tese de Arendt de que os trabalhadores das actuais sociedades dificilmente conseguirão libertar-se da sua versão contemporânea de animal laborans, pese mais a sua utilidade na produtividade ou no consumo.  

Mas nem a existência se resume à luta pela subsistência nem as razões pelas quais o ser humano se retém nos horizontes mais estreitos da sua liberdade são inultrapassáveis. É incontestável que a necessidade condiciona a liberdade, mas é também verdadeiro que a humanidade pode mais do que essa condição lhe permite. E entre essas possibilidades, estão já as condições que ela mesma criou para eliminar ou, pelo menos, aliviar os constrangimentos que a necessidade lhe impõe.

O aperfeiçoamento da ciência e da tecnologia pode, de facto, assumir um papel determinante na solução de problemas como os da gestão e melhor distribuição dos recursos, contribuir para a redução do consumo de combustíveis fósseis e de outras práticas poluentes, substituir-se ao trabalho que não realiza, e apaziguar o quotidiano cada vez mais angustiado e frustrado consigo próprio. Permitirmo-nos existir no planeta sem grandes sobressaltos em termos de subsistência não significa que se fique desocupado ou se ocupe o tempo apenas com ociosidades entorpecedoras. Salvo certas condições e condicionamentos (artificiais ou patológicos), as estruturas da sensibilidade, percepção e cognição preservam o registo de abertura e alcance das primeiras fases do desenvolvimento do ser humano e nas quais, a troco de nada, não faltava de que se ocupar, aprender, experienciar e criar. Não é a fome nem a pobreza que são estímulos. Pode mais a leveza da liberdade.

Mas muito frequentemente se desconfia dessa liberdade de poder-ser. O horizonte das nossas representações está povoado por figuras mecânicas e deterministas como a de “homem-animal” e por referências como a de um Eu interior isolado, mas colocado perante um mundo exterior que se prontifica de imediato a gerir, reprimir, sublimar e aliviar na medida exacta os “instintos selvagens” e ameaçadores que assomam imprevisivelmente no primeiro. Esta autoridade exterior que é por nós eleita, mas na verdade em nenhum de nós confia, é constituída o nosso mais crítico e atento juiz, um superego culturalmente sofisticado que nos entretém e entretece em sentimentos de culpa e imobiliza, adia a decisão e a transformação, necessárias, quando um projecto de mundo aqui e ali se congela, o que pode dizer-se já ter acontecido com o do capitalismo moderno/contemporâneo.

Pode o regime democrático subsistir sem o capitalismo? Pode. O espanto consiste mais no facto de o primeiro ter conseguido sobreviver ao segundo, pois este ao orientar-se pelos critérios de utilidade e crescimento ilimitado, ele traz para a linha da frente a esfera da necessidade, mas sem a resolver, potenciado as superfluidades da vida que ensombram a esfera da liberdade, o domínio da auto-realização e o da humanização da necessidade defendidos pelos princípios da democracia.

Sobre o que fazer da existência quando a luta pela subsistência já não ocupar maioritariamente os nossos dias, nenhuma resposta será dada pela ciência, pois essa interrogação dirige-se mais à capacidade de assumirmos esse acontecimento transformador ao qual a ciência apela. Neste sentido, se a cultura contemporânea tardar em libertar-se da rigidez mórbida de critérios passados, o advento da ciência e da tecnologia será apenas mais um entre outros mecanismos de dominação e distracção, e o amplo significado da sua componente revolucionária escapará à cultura civilizacional assim como lhe tem escapado, nas últimas décadas, o sentido da existência.

[27] Lourenço,1999: 55.

[28] Marcuse, 1963: 42-44. Segundo Marcuse, « La domination est différente de l’exercice rationnel de l’autorité ». (Marcuse, 1963: 43).  

[29] Freud, 2008: 95.

[30] Sustentando-se em algumas das principais teses da metapsicologia de Freud, Herbert Marcuse questiona em Eros e Civilização, “[...] se os benefícios da civilização compensam os sofrimentos infligidos ao indivíduo [...]” (Marcuse, 1963: 15). Para Marcuse, o Princípio da Realidade específico da contemporaneidade é o “Princípio de desempenho” segundo o qual as actuais sociedades exercem um elevado grau de repressão sobre os seus membros. (Cf. Marcuse, 1963: 49-51).

Referências

ARENDT, Hannah ( 2001). A Condição Humana [The Human Condition, 1958]. Trad. Roberto Raposo. Lisboa: Relógio D’Água.  

ARISTÓTELES (2004). Ética a Nicómaco. Trad. e notas António C. Caeiro. Lisboa: Quetzal Editores.

ARISTÓTELES (1998). Política. Trad. António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Introdução e revisão científica Mendo Castro Henriques. Lisboa: Vega Editora.

BARATA, André (2015). “O trabalho, o hábito e a sua abolição”. Intervalo nº 7:18-33.

FREUD, Sigmund (2008). O Mal-Estar na Civilização [Das Unbehagen in der Kultur,1930]. Trad. Isabel Castro Silva. Lisboa: Relógio D’Água Editores.

HESÍODO (1990). “Trabalhos e Dias”. In Maria Helena Rocha Pereira. Helade. Antologia da Cultura Grega: 83-88. Coimbra: Instituto de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra.

LOURENÇO, Eduardo (1999). O Esplendor do Caos, Lisboa: Gradiva.

MACHADO, Nuno Miguel Cardoso (2017). “A aporia do conceito de trabalho em Marx: uma análise cronológica”. Acedido em 11-11-2017, em: http://lisboa.academia.edu/NunoMiguelMachado.

MARCUSE, Herbert (1963). Eros et Civilisation. Contribution a Freud [Eros and Civilization. A philosophical inquiry into Freud,1955].Trad. J.-G. Nény et B. Fraenkel. Paris: Les Éditions de Minuit.

MARTINS, António Manuel (1994). “A doutrina da Eudaimonia em Aristóteles”. Humanitas, 46: 177-197.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich (1974). A Ideologia Alemã – Crítica da filosofia alemã mais recente na pessoa dos seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão na dos seus diferentes profetas [Die Deutsche Ideologie,1845-46]. Lisboa: Editorial Presença.

MARX, Karl (1986). O Capital: Crítica da economia política. Livro terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista. [Das Kapital: Kritik der politschen Ökonomie (1967-1885-1894)].  Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Koth. São Paulo: Editora Nova Cultural.

MARX, Karl (1993). Manuscritos Económico-Filosóficos [Ökonomisch-philosophischen Manuskripte, 1844]. Trad.  Artur Mourão. Lisboa: Edições 70.

MARX, Karl (2011). Grundrisse. Manuscritos económicos de 1857-58. Esboços da crítica da economia política [Grundrisse der Kritik der Politschen Ökonomie,1857-58]. Trad. Mario Duayer e Nelio Scheneider. São Paulo: Boitempo Editorial.


Anexo [sugestão]

Sugestão Episódio 10, Podcast Mural Sonoro com Xana (Rádio Macau, intérprete, autora) a.k.a Alexandra M. Moreira do Carmo (investigadora)

Fotografia de capa (Soraia Simões): Pós-Pop, Fora do lugar-comum, Gulbenkian.

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Dossier RAProduções de memória, cultura popular, sociedade: José Falcão, 13/03/2016

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Dossier RAProduções de memória, cultura popular, sociedade: José Falcão, 13/03/2016

Dossier RAProduções de memória, cultura popular, sociedade

 

 

Estas  entrevistas são resultado de uma investigação científica que iniciei em 2012 no âmbito do Mural Sonoro. Nos anos de 2015 e 2016 o projecto RAPortugal 1986-1999 (proposta transdisciplinar que coordenei apoiada pela Direcção Geral das Artes durante um ano) congregou um conjunto de entrevistas dirigidas. Uma boa parte delas estão publicadas no audiolivro RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada: 1986 - 1996 (Editora Caleidoscópio 2017) e fizeram parte, com outras fontes e outros documentos e bibliografia de enquadramento, da minha investigação e da tese de mestrado na área de especialização em História Contemporânea defendida em 2019 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Os assuntos que orientaram esta proposta passam pelas temáticas da memória, da sociedade, da cultura popular, mas também --- sem querer/ter como objectivo delimitar a abordagem sobre a primeira geração do RAP feito em Portugal por via de um calendário político, dada a «natureza livre/independente» do género neste período ---, relacionando o tempo em que ele dá os primeiros passos no nosso país com acontecimentos como o (designado) cavaquismo, a imigração e a extrema-direita, os discursos do território e o das influências, o papel das primeiras mulheres a fazer RAP e as suas resistências num género que ainda se estava a afirmar, o sexismo, o racismo e as desigualdades económicas como almofada para o surgimento das primeiras RAPortagens de rua e líricas transferidas para as sebentas/cadernos diários que alguns/a me cederam, antes da chegada à indústria de gravação de discos. Há em vários momentos destas entrevistas um link com o presente, não nos esquecendo de que à ideia de transmissão de testemunhos e de memórias está ligado um processo/reconstrução a partir do presente, no qual as dinâmicas entre história da música, cultura, poder e sociedade silogizam entre um conjunto de discursos hegemónicos/«media» (que se alimentam da história e a história) e onde outros discursos, subalternos/invisíveis, não figuram nas equações argumentativas. Ora esses também alimentam, ou devem, a história.

Mais do que um dever, considero necessário transferir estas conversas e os assuntos que nelas levanto à sociedade, especialmente por não serem só entrevistas, mas um conjunto de memórias e de testemunhos que desde o início congregam por um lado, um conjunto de questionamentos que este trabalho tem levantado no seio da Música Popular: do seu impacto em determinados contextos históricos e sociais e por outro lado, porque a interpretação e análise verificada durante a intersecção dos vários diálogos estabelecidos nestes anos me foi remetendo para a existência factual de uma micro-história* que ao ganhar espaço na sociedade portuguesa da segunda metade da década de 1980 e princípios da de 1990 se foi lentamente inscrevendo, muito embora de modo invisível (algo que também procurarei, ao longo da partilha deste arquivo de campo, explicar) nos tópicos que levanto, em algumas das mais importantes transformações (do ponto de vista das ideias e dos comportamentos) na história das cultura e música populares neste último decanato do século passado e em última instância, por ser um domínio que continua a atingir as camadas mais jovens, a sociedade contemporânea tanto na sua diversidade cultural como nas suas afeições de ordem identitária e/ou hierárquica.

(c) Joseph da Silva. José Falcão com Soraia Simões

(c) Joseph da Silva. José Falcão com Soraia Simões

 

13 de Março de 2016
José Falcão
SOS Racismo
Recolha na sede da SOS Racismo


Entrevista a José Falcão (fundador SOS Racismo)

realizada a 13 de Março de 2016


Soraia Simões de Andrade: Decides criar a SOS Racismo em 1990. Porquê?

José Falcão: A seguir à morte do José Carvalho (1989) uma série de gente juntou-se para pensar o que fazer de forma a combater aquela onda de violência que começou, sobretudo, em 1986. Eles criaram-se a partir da claque da Juve Leo, em 1984. O pessoal quando foi da morte do Zé (José Carvalho, militante do PSR), já vinha a pensar nisto. Já tinha acontecido com o Oceano (Bar situado na avenida 24 de Julho; o actor João Grosso foi agredido em Maio de 1989) ataques vários, já tinham ido à sede do PSR (a concertos de música, desde 1983, todos os fins de semana). Mas havia dois anos que já não estavam a aparecer, nunca mais puseram lá os pés porque da última vez tinham sido corridos. E depois foram lá naquele dia para matarem alguém. Por acaso foi o Zé. Podia ter sido eu, estava ao lado dele. Podia ser o Pedro Carraca (actor), que também lá estava. E a partir daí surgiu um debate sobre o que fazer para combater esta situação (referindo-se a sucessivos ataques de integrantes de grupos de extrema-direita). Não nos estávamos a ver, apesar de termos as direcções deles, a ir a casa e aos sítios deles para bater. Isso estava completamente fora de questão (da retaliação e da vingança). Tinha de haver uma discussão política séria na sociedade portuguesa, sobre o porquê daquilo estar a acontecer. E foi isso que a gente fez. E o que se pensou foi criar uma associação que, depois de várias conversas, se formou oficialmente. A gente diz que é o 10 de Dezembro de 1990, porque foi o primeiro acto público de aparecimento da SOS. A legalização só foi em 1993. Mas fizemos uma série de actividades. Nessas, o primeiro dia foi uma reunião com o Sindicato dos Jornalistas e com a Comissão Deontológica do Sindicato dos Jornalistas. Foi uma segunda-feira (dia 07) que culminou no concerto dia 10. Dia 14 acabou num concerto grande. Fizemos o concerto no Pavilhão Carlos Lopes. Apareceu, a partir disso, a reflexão do que fazer e de como responder. O que a gente viu é que tinha de ser uma discussão política. Começámos a fazer coisas; produzir materiais; recolher informação, fazer denúncias; chatear a imprensa porque os skins eram completamente impunes. Até à morte do José Carvalho, já um grosso ridículo de queixas. Fizemos duas brochuras sobre a extrema-direita.

Soraia Simões: Começa com este episódio em concreto. Não era um episódio, aliás, eram vários. A canção começa a inscrever-se nessa dimensão. Poderá ser encarada também (a Associação SOS Racismo) uma plataforma para muitos miúdos e miúdas ligados à música que foram surgindo?


José Falcão: Era sobretudo um ponto de contacto. O pessoal estava na Cova da Moura, Pedreira dos Húngaros, etc, o Ermelindo (Quaresma) já tinha um grupo de RAP nessa altura (TWA). O SOS ainda não tinha sede (veio a ter um espaço em 1994). Estava numa casa emprestada, de vez em quando. As primeiras reuniões até foram no Moinho da Juventude (Associação Cultural Moinho da Juventude). Apareceu também um ano antes de nós. Já tinha espaço e íamos lá muitas vezes.

Soraia Simões: Até é mais malta que cresce na margem sul que me referenciou ao longo destes anos de trabalho de campo a SOS como uma das plataformas.

José Falcão: Sim sim.


Soraia Simões: Mas em que sentido?

José Falcão: É no sentido de contacto. De fazer coisas; estarem a ser convidados para coisas e participarem nos debates.

Soraia Simões: Inclusive darem concertos. Gravar algumas vezes.

José Falcão: Sim. Essa foi em 1999 (referindo-se à edição do fonograma Festa da Diversidade). Entretanto, já houve outro (registo discográfico editado pela Associação).

Quando conheci o General D (1991), estou a ter a imagem dele a passear (pausa), foi porque ele veio ter com a SOS para o primeiro contacto como Sérgio (nome real de General D: Sérgio Matsinhe).

Era sobrinho do pintor. Era nosso amigo e nós já nos dávamos há muito. Do pessoal do PSR, porque estes movimentos todos (quer o movimento gay, quer o movimento anti-racista) apareciam muito na sede do Bloco (Bloco de Esquerda) e das actividades culturais que havia lá. Agora é a sede do Bloco mas antes era do PSR. Os concertos eram dentro da sede. Depois havia coisas fora, quer os grupos rock, quer o pessoal que ia aparecendo. Nos anos 80 era, sobretudo, grupos rock. Mas depois houve essa substituição. Mais final de 80 e início de 90. O Sérgio (General D) veio ter connosco para fazermos qualquer coisa de comemoração de um aniversário do Malcolm X. Depois acabámos por não fazer isso mas ficámos juntos até agora. Tirando o espaço que ele desapareceu (entre 1999 e 2014 o rapper esteve fora de Portugal sem grande parte dos que o acompanharam saberem do seu paradeiro. Em 2014 daria um concerto no Largo do Intendente, integrado no Festival Lisboa Mistura, em Lisboa).

Soraia Simões: Foste tendo contacto com ele quando estava em Londres?

José Falcão: Não. Fui tendo contacto através de pessoas que me iam dizendo por onde ele andava a passear e à procura de trabalho.

Soraia Simões: Todos diziam que ele tinha um discurso mais «afro-centrista». Verbalizava mais também, nas suas intervenções musicais/nas letras em concreto, o racismo e a exclusão social sobretudo.

José Falcão: Sim. Mais coerente. Eles e depois aqueles que foram aparecendo depois disso. Algum pessoal, não tão famosos como o General D. Aliás, havia muita relação e contacto através disso. Da actividade que a SOS ia tendo e, como era lógico, essas pessoas estavam sempre a ser convidadas, e vice-versa. E as denúncias de violência iam aparecendo.

Soraia Simões: As denúncias também apareciam neste conjunto de primeiros rappers com quem falei?

José Falcão: Apareciam em concertos onde as pessoas estavam. A malta ia sabendo. Havia uma coisa que não era propriamente uma coordenação. A SOS era a única associação anti-racista que existia. Hoje o panorama, infelizmente, não é muito grande. Era lógico que as pessoas, entretanto, iam sabendo que a SOS existia por causa dos debates nas escolas, foi publicando materiais e fazendo os dossiers para as pessoas estudarem e trabalharem. O RAP é Uma Arma (Documentário de Kiluanje Liberdade) aparece assim. Nessa altura, a primeira sede que tinha era naquela rua que vai da Praça de Londres à Alameda.

Soraia Simões: Ao pé do Mexicana (café lisboeta).

José Falcão: Sim, exactamente. Essa sede era uma parte de cozinha de um sindicato. Nós fomos para aí em 1994/95. O RAP é uma Arma foi feito em 1995. A minha entrevista foi gravada nessa sede, porque aí havia vários colectivos que esse sindicato dos professores do ensino superior tinha.

Soraia Simões: Nesta sede houve obras?

José Falcão: Tudo. Fomos nós todos. Muito dinheiro. O Vereador da Câmara (2012) que, entretanto, já não é foi ele que me lembrou que também estava sediado na sede do Sindicato. Nessa altura, havia muita coisa. A malta quando começou a ir aos bairros, fomos apanhando a parte cultural que não era do RAP mas que era do teatro. Ontem estive no Chapitô, na ante-estreia da peça. Estava lá o Joaquim Nicolau a falar dessa altura, anos 80 e 90.

Soraia Simões: Depois o Joaquim Nicolau também se envolveu naquele filme do Leonel Vieira…

José Falcão: O Zona J?

Soraia Simões: Sim. Acho que o Joaquim entra aí.

José Falcão: Sim. O Joaquim Nicolau está. Como estávamos na Comuna e o Bando (grupo de teatro) estava lá sediado havia peças particulares. Eu entrava muitas vezes com eles. Eles fizeram uma peça que se chamava “E o Zé que Zé?”.

Soraia Simões: Lembro-me desse também.

José Falcão: Foi o Carretas (José Carretas) que encenou. Foi esta gente toda que entrou. Os nossos amigos.

Soraia Simões: Há uma série de coisas a acontecer na cidade de Lisboa. Cria-se a Associação SOS Racismo na primeira metade de 1990, Lisboa é capital da cultura em 1994, está  Jorge Sampaio na Câmara Municipal de Lisboa. A motivação poderá ter que ver com a criação desta e de outras organizações e com os problemas que levantavam, de certa forma «novos» (no apelo ao seu debate) para a cidade?

José Falcão: Os problemas eram os de sempre. A legalização, a discriminação racial e a extrema-direita.

Soraia Simões: Mas começaram naquela altura a vir cá para fora, tanto nas práticas artísticas como estando patentes no discurso da autarquia.

José Falcão: O Sampaio (Jorge Sampaio) tinha uma postura que não era a dos outros anteriores e posteriores. Apesar de serem amigos do partido. Mas o que estava a acontecer era os skins estarem completamente impunes.

Soraia Simões: E isso muda com os assassinatos de 1989 e 1995?

José Falcão: Começa aí com a abertura de inquéritos.

Soraia Simões: Estavas a dizer que não tinham subsídios. Na altura, vocês contavam com o quê além da vossa força de vontade?

José Falcão: Com a venda de material. No primeiro guia anti-racista fizemos 8 mil exemplares. Na altura, nem o Saramago andava a vender esses disparates. Agora toda a gente vende 100 mil e 200 mil.

Soraia Simões: Onde é que vocês vendiam?

José Falcão: Na rua e nas bancas. Andava com ele (o saco) como nós agora andamos. Eu tenho no meu saco as agendas deste ano para vender.

Soraia Simões: Não havia um sítio específico onde vender? Muitas escolas vendiam. Eu lembro-me de comprar alguns em escolas.

José Falcão: Mas isso é porque a gente ia lá. A gente sempre que ia aos debates deixava lá. Foi como na música, tirando a tipografia e a aparelhagem de som, tudo o resto é à pala.

Soraia Simões: Isto é, tudo pro bono?

José Falcão: Tudo. E as pessoas sabem que isso é para ser vendido para a SOS. Como sabem perfeitamente, e como a relação sempre foi diária e quotidiana. Mas depois se eu não lhes chateio, eles dizem: “Então? Já não gostas de mim?”. A todos os níveis a malta tenta gerir o plantel. Tentamos fazer uma rotatividade para não estar sempre a chatear as mesmas pessoas.

Soraia Simões: Porque não podem contar com recursos extra?

José Falcão: Não temos nenhum. Então, vamos chateando.

Soraia Simões: Voltando aos anos 90, quando a SOS é criada, estávamos a falar de Jorge Sampaio (pausa). Tu não sentes que há pelo menos uma tentativa de incremento de algumas políticas reformadoras na CML face ao que estava a acontecer?

José Falcão: Quando a SOS aparece as pessoas o que diziam era que não havia racismo se não fossemos nós. Nós é que inventámos o racismo. Ainda hoje, ainda há um parvalhão qualquer que diz esse disparate. Mas nessa altura era a política, não havia racismo. Nós somos um país de brandos costumes. Fizemos tudo e mais alguma coisa e tratámos muito bem toda a gente que vinha de África (e os que lá estavam). Durante estes 500 anos, tratámos sempre bem. A nossa história não contava que no Brasil também dávamos índios aos cães.

Soraia Simões: Havia uma linguagem dominante esmo quando Jorge Sampaio estava na Câmara de Lisboa?

José Falcão: Sim, claro. Quer dizer, esse discurso nessa altura que aparece o Cavaco (1985-1995) no poder e o Sampaio na Câmara, não houve (mudou) grande coisa. A onda de direita estava aí. Conservadora. E a violência policial imperava.

Podia haver mais alguma coisa ou outra, mas não. Aliás, o Sampaio quando vai para Presidente da República portou-se muito mal em algumas coisas, como as leis de imigração (2000/2001). Quando ele foi eleito em 2001, houve uma lei que estava para ser assinada e que ele escondeu que ia promulgar. Todos os partidos de esquerda perguntam: “Como é que é? O que é que vai fazer à lei de imigração?” Ele já tinha promulgado e a seguir, depois da eleição, mandei vir com ele.

Soraia Simões: Essa lei foi votada no ano de?

José Falcão: Foi votada em 2002. E ele andava a esconder que ia promulgar. Se estava tão à vontade tinha dito: “eu vou promulga-la”. Mas não o disse. Podia ter mandado para trás. Estamos a falar de um governo de direita. Nesta altura era o Sr. Barroso. Tinha um presidente mas teve o Cavaco até 1995. O (António) Guterres entrou em 1995. Foi quando o Alcindo (Alcindo Monteiro) foi assassinado no Verão de 1995. E eu sou preso  três meses depois (Mercês), em Outubro, quando o Guterres ganha as eleições. O Dias Loureiro já tinha saído mas ainda estava em funções, porque tinha passado uma semana das eleições de 2005. A onda não variava muito. Havia uma ideologia, no discurso neo-colonialista e conservador, dos «brandos costumes».

Soraia Simões: A maioria da malta que forma o SOS vinha do PSR. Consideravam-se uma organização apartidária?

José Falcão: Uma das coisas que a SOS faz é mostrar que as pessoas por serem de partidos não estão com uma doença transmissível.

Pelo contrário. Toda a gente que estava na SOS sabia que não tinha problemas em ser ateu; cristão; muçulmano; branco; amarelo; cigano; preto; Benfica; Sporting; PSR ou do PSD. Porque havia gente, inclusive destes partidos, que não eram. E sobretudo eram gente independente. Não tinha nada a ver com os partidos. Era militante do PSR há muito tempo e já aparecia na imprensa por ser dirigente e um dos fundadores. Quando a SOS aparece eu continuo na mesma. Não sou como aquelas pessoas que dizem: “Eu vou tirar a minha camisola.” Não preciso de tirar camisolas nenhumas por estar na SOS.

Soraia Simões: A lei da discriminação racial é inoperacional?

José Falcão: A lei discriminação racial não funciona. Mas existe uma lei. Isso é como as outras. É como tu não teres os mesmos direitos que as pessoas homens. A Constituição diz que sim, mas não tens. Tens de trabalhar dez ou vinte vezes mais do que os gajos.

Quando surgem a primeira vez, no Público (2007), duas páginas a dizer que nós estávamos em segundo lugar na política de acolhimento a imigrantes, três dias antes tinha saído um texto mais sério num cantinho e sem chamada de atenção a dizer que éramos o pior país a integrar. Desde 2007, nós continuamos em segundo lugar. É uma chatice! Nunca mais passamos à frente da Suécia! A Suécia que tem 10% de votos na extrema-direita. E eu pergunto: Que raio de critérios é que são estes? Não sei porque estão preocupados. Houve problemas no bairro da capital da Suécia por causa das mortes e dos motins a propósito da questão da imigração. Que rankings são estes? Ao menos da UEFA e da FIFA a gente sabe que se ganha passa para primeiro e se perde desce. Aqui é uma invenção. É o que convém. Isto tem algum sentido? Este (Joseph da Silva) foi agora condenado por causa dos acontecimentos no Bairro de Santa Filomena. Nesse processo, eu próprio, ele e outras pessoas fomos com familiares à Igreja da Amadora perguntar se havia uma casa. Nunca tem havido casa para estas pessoas todas. Mas agora há uma lista em todas as freguesias do país para recolher refugiados que finalmente começam a aparecer desde Agosto. Contas no banco para os refugiados que só agora começam a aparecer. O que é isto? Onde está o acolhimento das pessoas? Até agora, a quota de refugiados que este país tinha era completamente ridícula comparando com todos os países da Europa (até com a Hungria). Antes da crise dos refugiados, 30, 20 ou 40 era a quota. Os 40 que vieram agora neste processo, era a quota de 2014, que já devia estar cá.

Soraia Simões: E o papel da comunicação social aqui?

José Falcão: Evidente que no Verão isto «foi óptimo para refugiados e a invasão» (referindo-se às publicações da imprensa). Toda a gente fala em crise dos refugiados. Mas qual crise? Com quase 3 milhões de refugiados na Turquia. A Jordânia e o Líbano têm mais condições do que nós para atender os refugiados! Não brinquemos. E estamos a discutir 160 mil em 500 milhões (UE); 1 milhão em 500 milhões; 4 mil em 10 milhões (Portugal). O Líbano tem mais refugiados do que pessoas autóctones. Isto é ridículo! Eu dizia ao Rui Marques: “Qual é a diferença entre o que aconteceu na Líbia e o que está acontecer na Síria? Explica-me.” Ele: “O que queres dizer com isso?” “Estou eu a perguntar. Também se viam crianças mortas. Pior, viam-se pessoas na praia a banhar-se com mortos ao lado. Isso não choca? Porque é que tu não estiveste tão preocupado em fazer contas na altura? É a cor. Não dás conta?” Ele: “Não vás por aí!”. “Não vou? Então explica-me lá. Na mesma reportagem onde tu falaste sobre esta questão dos refugiados, passaram vídeos na imprensa que todos os pretos eram barrados para entrar nos comboios e ir para a Alemanha. Os brancos entravam e nem lhes pediam papéis. Explica-me! É o quê’’? Isto tem cor e há discriminação racial. Aqui é que se vê  nestas coisas.

Haver uma sociedade racista e xenófoba, não quer dizer que são todos, mas de facto há uma política de neo-colonialismo, eurocentrismo, racismo e xenofobia latente. O Estado é responsável por isto. Claro que não é só. Também podemos sair de casa quando não estamos contentes. Se quisermos sair do bem-estar e aceitarmos todas estas ideias feitas que nos convém. Os ciganos são maus, está-se mesmo a ver. Nós somos muito melhores do que os alemães. Nós não matamos tanto. Como se isto tivesse alguma contabilidade, os mortos da escravatura e os do Hitler tivessem comparações.

Soraia Simões: Fala-se também muito em “políticas integracionistas”, há activistas africanos que contestam esta, entre outras, expressões.

José Falcão: Sim. Inserção é o que deve ser. E multiculturalismo então é escandaloso.

Nós denunciámos isso e depois a filosofia dos Escolhas mudou na «3ª geração». O Edmundo foi para a frente do Instituto e é ele que nos chateia. Estávamos na Ameixoeira e agora aquilo é um ninho para ganhar dinheiro.

Soraia Simões: É também uma espécie de dormitório da cidade…

José Falcão: Eram todos os bairros sociais. Foi para onde a gente foi.

Soraia Simões: Ali ao pé do Lumiar?

José Falcão: Sim, à direita. Na Quinta da Torrinha (Ameixoeira).

Soraia Simões: Estás-me a dizer que desde esta altura que estou a retratar nada mudou?

José Falcão: Que muitas das coisas mudaram para pior, porque a lei de imigração tem mudado sempre e sempre para pior. Neste momento estão a decorrer reuniões para apresentar um caderno reivindicativo para as questões da imigração, como fizemos com o Sócrates em 2005. Foi feito pelo movimento associativo, só que em 2005 fazia manifestações com 2/3 mil pessoas (essencialmente imigrantes na rua). Desde essa altura, coisa que o PS não percebe, o que o Vaz Pinto fez foi alocar meios para poder comprar tudo isto e sanear quem lhe apetecia. Tentou sanear a SOS das duas comissões. Não conseguiu. Saneou de uma e da outra não conseguiu, porque a lei mesmo assim ainda protegia a nossa participação naquela comissão. Mas ele fez isso e meteu-me em tribunal por difamação. Exactamente porque eu denunciei estas coisas. Denunciei como tinha que denunciar e ele não gostou. Depois cortou-se quando viu que as minhas testemunhas eram a sério. Mesmo no Tribunal do Porto ele baixou a bolinha e desistiu da queixa. Não foi a julgamento. Esse senhor o que fez foi exactamente montar todo o sistema, que agora existe, continua e que se mantém. É o que eu digo ao PS: Não percebo! Como é que é possível que aquela elite esteja no serviço dos refugiados? Todos vieram dali. O Vaz Pinto, a Rosário Farmhouse e o Rui Marques. Agora este não sei se passou pelos Serviços (Jesuíta) dos Refugiados, mas era o Director Nacional dos Escolhas (o actual Alto-Comissário). Durante estes anos todos, aquilo não mudou absolutamente nada. Se hoje se entendem (a apresentação das queixas) quando antes ninguém percebia nada daquelas reuniões de comissões, porque aquilo estava apresentado de uma forma completamente estúpida. Em 2008, a Rosário Farmhouse despede o gajo que estava à frente dessa coisa. E eu disse: “Mas isso não é problema dele. Isso é política vossa que não quer que isto funcione.” O que apresentava e fazia seguir as queixas, um assessor, foi corrido. Por nossa pressão? Não. O que a gente pediu foi: isto tem que estar bem. Aquilo não estava bem. Continua na mesma até agora. E só agora (neste mandato) é que eles apresentam aquilo de forma perceptível. Mas, mesmo assim davam-te os números e as percentagens todas a cada reunião. Há tantas queixas que foram para tribunal e depois, no outro lado, baralhavam os dados todos. Tu não conseguias perceber nada. Em vez de ser uma coisa tão simples. Eu passei dez anos a dizer-lhes como fazer: “A queixa entrou. Onde está? Quem apresentou?”. Por exemplo, no tempo de Vaz Pinto nós apresentávamos queixas, elas desapareciam completamente, sobretudo as queixas de Alberto João Jardim; Maria José Nogueira Pinto; o Presidente da Junta de Freguesia de Benfica e os comandantes da polícia. Não há nenhuma queixa daquelas que tenha seguido para a frente, além das outras pessoas comuns.

Soraia Simões: Mas a queixa entrava.

José Falcão: Nós entregámos as coisas e nem sequer lá estão. Já denunciámos isso à imprensa várias vezes, mas é secundário. Nem sequer apresentar a queixa a dizer: «entrou em tal dia, foi por isto, a vítima», etc. Não está assim. Não se percebia durante anos e anos a fio. Nós a dizer como é que tinham de ser feitos. A Mónica Ribeiro (SOS Racismo) a fazer uma grelha, nós próprios a apresentámos em 2008. O PSR já tinha feito um trabalho sobre todas as queixas e o SOS não existia em 1989, quando o José Carvalho é assassinado. Nós não temos dossiers disso mas o PSR tinha quando apresentou à Procuradoria-Geral da República uma queixa contra o MAN. Em 1991, os skins são condenados. Um fugiu e eles não se chatearam nada com isso. Até que ele se entregou e continuou com a mesma pena, nem sequer foi condenado com mais.

Soraia Simões: E qual foi a pena dele?

José Falcão: Foi 12 anos.

Soraia Simões: Já cumprida então.

José Falcão: Sim. Há muito tempo. Foi em 1989.

Soraia Simões: Estás a dizer que ele fugiu? Então não cumpriu.

José Falcão: Não. Depois de um ano e tal entregou-se. Também não se preocuparam muito em procurá-lo.

O que se passou no Alto-Comissário serviu para montar um sistema que calou as pessoas. Na prática, deixou de haver manifestações. As leis foram piorando. Aliás, o Vaz Pinto cometeu uma ilegalidade e por isso é que eu queria ir a julgamento (recordando a queixa por difamação interposta a José Falcão). Ainda disse às minhas testemunhas e ao advogado que o que era bom era que aquilo fosse a julgamento. Eu podia ser condenado, mas ao menos a lei era questionada. Porque o gajo suspendeu a demissão e esqueceu-se que a lei do Durão Barroso (2002) tinha que ir a uma reunião daquela comissão. Todos podíamos dizer unanimemente que não. Mas tinha de haver uma reunião a pronunciar-se.

Soraia Simões: Tinha de ser revista?

José Falcão: Tinha de haver uma posição sobre ela, como tem que haver dos governos civis.

Soraia Simões: Neste caso não houve. Caiu?

José Falcão: Não caiu. A comissão esteve um ano e meio sem existir. Por exemplo, ele tomou posse em Março e a lei foi promulgada no ano a seguir. Ele estava num dilema: as comissões que tinham sido suspensas tinham de reunir. Fez uma reunião de uma Comissão que no fundo já não existia e a gente disse: “Fixe! Finalmente! Quase um ano depois, isto vai começar a funcionar.” Não, ele fez a reunião de uma Comissão que não existia. Eu considerava-me fazendo parte da Comissão. O Pedro Bacelar a mesma coisa. Ele fez a reunião só, e apenas, porque tinha que haver uma reunião daquela comissão sobre a lei, porque senão não podia ser promulgada. Imediatamente a seguir, as pessoas tomaram posição sobre a lei e depois nunca mais houve reunião.  Eu já não fazia parte daquela Comissão, porque ele já tinha corrido comigo e nós não sabíamos. As Comissões estavam suspensas. Ele reuniu e eu chamo-lhe o que tenho de chamar, porque ele mentiu às pessoas.

Soraia Simões: Queres dizer que ele fez isso “à má fila”?

José Falcão: Completamente! Ele precisava de reunir aquilo.

Soraia Simões: Quais foram as associações que se mexeram nessa altura?

José Falcão: A SOS, a Amnistia, o CPR, entre outros. As que estavam na Comissão. A CGTP também e algumas personalidades que faziam parte da comissão. Fizemos esse processo, mas houve poucas porque o movimento associativo começou a ser calado nessa altura. O ACIDI serve para calar as associações. Depois há outras coisas que se continuam a perpetuar até hoje. Vou-te contar a história que aconteceu em Dezembro do ano passado. Foi apresentado um livro, na Assembleia da República, já com o Pedro Calado como Comissário. Eu vou com o livro da Ana Cristina Pereira para vender-lhe o livro. Ele vinha com o Pedro Lynce. Ainda foi antes das eleições.

Soraia Simões: 2013?

José Falcão: 2014. Eu vou vender-lhe o livro. E ele: “Desta vez vais-me dar o livro.” E eu: “Desculpa? Vou-te dar o livro porquê? Tu nunca me deste nada.” E ele: “Não te dei nada? Então e os Escolhas?” Não sabia que os Escolhas (programa governamental de âmbito nacional, criado em 2001, promovido pela Presidência do Conselho de Ministros e integrado no Alto Comissariado para as Migrações – ACM) eram para arranjar dinheiro para as associações. Para já, têm uma conta particular, à parte, e não pode haver absolutamente nenhuma transmutação de dinheiros dos Escolhas. Há Escolhas que estão sediados nas associações, mas o dinheiro não é para a SOS. E ele: “Pois, isto é para capacitar os jovens dos bairros.” E eu: “Ainda bem que vens com essa da capacitação dos jovens, porque durante seis anos andamos a capacitar dois anos de Escolhas e agora, para a 5ª Geração, foi apresentado o mesmo projecto igual ao que apresentámos durante duas gerações, mas a única coisa que mudava era que os responsáveis eram os jovens do bairro; os parceiros eram os mesmos; a SOS deixava de ser o responsável e passava a ser um dos apoiantes e havia capacitação dos jovens. E o que tu fizeste? Deste o coiso a um consórcio. Isto é a capacitação"?

Soraia Simões: Pois, estava lá mais gente?

José Falcão: Estava lá o Pedro Lynce. Ele estava a querer fazer brilharete com o Pedro Lynce. Nunca está à espera que as pessoas digam as coisas na cara. Sabes o que fizeram para a «5ª Geração»? As pessoas que são dirigentes associativos não podem estar como coordenadores dos Escolhas. Porquê?

Soraia Simões: Isso é muito estranho.

José Falcão: Não é estranho. Eles não querem pessoas que percebam o que andam a fazer. Querem é empregados. Têm de ser pessoas que as associações contratem entre aspas.

Todas as pessoas que estão nos Escolhas são da SOS e dos outros. Nós continuamos a ter no Porto e deixámos de ter em Lisboa. Porque depois há dinheiro para comprar saquinhos. As pessoas que estão a trabalhar nos Escolhas, e que não têm mais nada, podem estar três, quatro, cinco e seis meses sem receber. Eu já perguntei aos Altos-comissários: “Vocês estão seis meses sem receber? Há problemas de tesouraria mas vocês não recebem o salário no dia? Então porque nos Escolhas as pessoas não recebem?”

Soraia Simões: Recuando à morte do Alcindo (Monteiro)…

José Falcão: Quero recuar ao Tribunal Constitucional porque é aqui que, para mim, está a actuação chave. O Tribunal Constitucional tinha as mãos sujas de sangue do Alcindo Monteiro porque resolveu não condenar o MAN, por se ter dissolvido. Eu perguntava: ‘’Eu posso chegar a casa de alguém, matá-lo e depois ir ao notário mudar de nome e já não me fazem nada’’? Foi o que o Tribunal fez. O Teixeira da Mota também criticou duramente o Tribunal Constitucional dessa altura. Em Janeiro de 1994, o tal processo da morte do José Carvalho, que nós fizemos um dossier sobre a extrema-direita. Toda a parafernália de casos dos skins e do MAN, porque não mataram só o José Carvalho. A polícia é que não investigou outras mortes. No fim-de-semana anterior já saia na imprensa que não ia acontecer nada. Nesse dia houve ataques dos skinheads, como quem diz: ‘’ganhámos’’! Ainda não havia a leitura oficial da sentença mas já saído no jornal.

Soraia Simões: Isso foi por aí? Mais ou menos.

José Falcão: Foi em Janeiro de 1994. Recusou-se extinguir o MAN porque, segundo o Ministério Público, excedeu-se no mau sentido, esclareça-se: não porque houvesse obrigação de extingui-lo, mas sim por outros motivos. Constituiu uma solução absolutamente hábil para evitar uma questão profundamente política. Numa notícia publicada no Jornal Expresso, no passado sábado, veio-se a confirmar a extensão de tal artifício. Eventualmente a extingui-lo preferiram descobrir que já estava extinto. Em vez de extinguir, não é? E eles mudaram de nome. Nesse fim-de-semana, anterior à sentença do tribunal, houve agressões. O namorado da Andrea Peniche foi agredido em Vila do Conde. Ela foi dirigente do PSR. Os skins nessa altura faziam isso. Iam todos os fins de semana para o Porto e quando vinham chegavam no comboio e iam atacar o povo. Foi para comemorar a sentença que já vinha no jornal. Nessa altura, os skins tinham feito uma série de barbaridades até à morte do José Carvalho e ao Faustino (colocado na linha do comboio). Houve ali um período em que os ataques dos skinheads estiveram directamente relacionados com oito gajos que estavam presos e quinze em julgamento.

Soraia Simões: Foram os mesmos que depois estiveram envolvidos na morte do Alcindo?

José Falcão: Alguns sim, de uma maneira ou de outra. Aliás, há gajos como o Francisco Mascarenhas que ainda agora no Vasco da Gama aparece nos comentários (facebook). Não é o Francisco Mascarenhas, porque esse foi absolvido no processo. Era um gajo que era o dono do Chaveiro em Almada. Fernando Gabriel Oliveira Martins Pimenta. Isto foi um trabalho de investigação que nós fizemos para um relatório. Havia uma associação internacional, o CERA (Centro Europeu de Pesquisa e Acção sobre o Racismo e Anti-Semitismo), que fazia um relatório sobre a extrema-direita todos os anos sobre diferentes países. Durante dois anos o Eduardo Dâmaso fez esse relatório. Ele é que fazia a parte de Portugal. Ele disse que não fazia o relatório que ia sair em 1998. Pedem ao SOS para fazer. Recebemos uma incumbência para fazer um relatório em três semanas. Esses gajos que fazem o relatório não gostaram do que nós fizemos e fazem sugestões para alterar. Acontece que, durante esse período, já estavam programados debates e eu já estava no programa. ‘’Então e agora? Saiu do programa? Não aceitamos a chantagem. Eles são muito importantes. Nós alteramos o vosso texto e vocês assinam. Ou então, nós fazemos outro’’. Conseguimos fazer uma brochura a correr para o dia da apresentação. Os gajos disseram que isto era muito mau para Portugal e o governo português. Nós dissemos que até final de Março não conseguíamos entregar e eles não aceitaram. E eu pergunto: ‘’Gostaríamos de saber se os académicos do CERA encomendam trabalhos desta envergadura em tão pouco tempo?”. Mas mesmo assim não fomos dos últimos. O que relatamos são factos, números, acontecimentos, e para isso socorremo-nos de diferentes núcleos da SOS espalhados pelo país, de muitos jornalistas responsáveis pelos arquivos de alguns jornais, que se prontificaram a ajudar-nos e a ajudar o CERA, dada a emergência da incumbência. Um dos gajos veio ter comigo para ir lá falar. Depois «levou» no debate.

Soraia Simões:  Conhecias o Alcindo Monteiro? Curiosamente era primo de dois dos Karapinhas (grupo de músicos que acompanhava General D: Djone Santos e Tutin di Giralda).

José Falcão: Não. O pai trabalhava no Hospital de Almada. Era amigo de um amigo meu. Eu não o conhecia. O que estava a acontecer era uma onda de violência porque ficaram impunes. O Tribunal Constitucional fez com que os skins estivessem à vontade para fazer. Os skins faziam sempre alguma coisa a 10 de Junho. Nesse ano foram atacar o Bairro Alto. Eu estava na Feira do Livro porque tínhamos bancas. Nessa noite, o José Carlos Tavares e outros foram à Feira do Livro. Depois íamos para as Catacumbas beber copos e eu a fazer contas da banca. Mas eu como estava a morrer de fome porque estive a fazer a banca o dia todo, não fui com eles imediatamente para o Bairro Alto. Fui à Cachupa e fiquei a ver um filme. Fiquei a ver na cozinha com os gajos da Cachupa e a comer. Cheguei ao Bairro às 3h00 da manhã. Aquilo estava em polvorosa. O pessoal diz que os gajos tinham matado um gajo e o Zé Carlos diz: ‘’tiveste muita sorte em não ter vindo connosco, porque eles passaram pelos skins quando foram para o Bairro’’. No dia a seguir, no domingo, as notícias que saíam do Alcindo eram: “Está sob observação no Hospital”. E que os polícias tinham metido 40 e tal pessoas dentro. Durante o dia, imediatamente de manhã, uma fonte do hospital disse-me: “o Alcindo está ligado à máquina”. À imprensa eu disse: “Vocês perguntem ao S. José (hospital) qual é a situação dele, porque ele está morto. E se eles não dizem que ele está morto, e se isto amanhã vai ao Tribunal de Instrução Criminal (TIC), eles saem todos cá para fora.” Porque uma coisa é bater com a cabeça e ficar sob observação e outra coisa é o gajo estar ligado à máquina.

Soraia Simões: Eles tinham ordens?

José Falcão: Claro. Porque é que o gajo está a levar porrada e toda a gente sabe e está sob observação e ninguém chateia? A partir daí, os skins estavam muito contentes e o culminar disso foi a morte do Alcindo. Depois ficaram parados mais uma vez.




consulta dossier Alcindo Monteiro durante pesquisa

consulta dossier Alcindo Monteiro durante pesquisa

 Biblio/fontes

1) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.

2) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.


RAPublicar.jpg
fixar o invisivel capa.jpg

https://arquivos.rtp.pt/conteudos/comunidades-africanas-em-portugal-temem-skinheads/


Fontes
[1] Sérgio Matsinhe (General D) entrevista completa em RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada: 1986 - 1996, Editora Caleidoscópio.
[2] Simões, Soraia, Matsinhe, Sérgio: História Oral Mural Sonoro on-line, Europenana Sounds, recolha de entrevista, 3/07/2014, http://www.muralsonoro.com/qd-intro/.
[3] Fotografias várias durante trabalho de campo para tese entre 2012 - 2016

[4] Simões, Soraia, coordenação, Debates e Conferências RAPortugal 1986 – 1999 (7 de Setembro de 2016 a 14 de Janeiro de 2017): Rosas, Fernando; Falcão, José; LINCE, “RAPoder no Portugal urbano pós-25 de Abril”. On-line.

*Micro-história – parto da ideia de “micro-história” criada pelo historiador britânico Edward Thompson (Oxford, 3 de Fevereiro de 1924 – Worcester, 28 de Agosto de 1993), que demonstrou em vários dos seus trabalhos a relação entre história social e o desenvolvimento de alguns dos temas fundamentais da micro-história: a preocupação com a constituição dos grupos sociais, o significado cultural da acção dos grupos sociais, e as consequências, positivas e negativas, da transformação social.

** Rappers e outros/as: Agradeço os testemunhos durante este longo processo de General D, Makkas (Black Company), KJB (Black Company), Bambino (Black Company), Francisco Rebelo (Cool Hipnoise, baixista Black Company, Mind da Gap, Boss AC, Ithaka), Marta Dias (General D&Os Karapinhas), Double V (Family), Maimuna Jalles (General D&Os Karapinhas), Lince (New Tribe), M (New Tribe), Tiago Faden (produtor executivo RAPública), Hernâni Miguel (manager, animador cultural, produtor colectânea RAPública), José Mariño (autor dos programas de rádio Novo RAP Jovem e Repto), Jazzy J (Zona Dread), Jaws T e MC Nilton (Líderes da Nova Mensagem), Ithaka, Sweetalk (Djamal), X-Sista, Jumping (Djamal), Ace (Mind da Gap), NBC (Filhos de 1 Deus Menor), Tutin di Giralda (músico General D&Karapinhas), Djone Santos (músico General D&Karapinhas), João Gomes (músico Cool Hipnoise e General D&Karapinhas), Janelo da Costa (Kussondulola), Zj /Zuka (Divine), Dana - Dane (Divine), Chullage, Biggy (Afroblood, Guardiões do Movimento Sagrado), José Falcão (SOS Racismo), Maze (Dealema), Karlon (Nigga Poison), Kilu, Fernando Rosas (historiador). 

Breves notas úteis que integram a pesquisa:

MAN:  Movimento de Acção Nacional (MAN). O líder do MAN percebe que os skin podem representar a base de militância que o MAN nunca conseguiu congregar. Razão pela qual os materiais do MAN começam a circular no meio skin. Em conversa com o historiador Riccardo Marchi, cuja investigação está relacionada com as direitas radicais, ele afirma que o meio skin era bastante impermeável porque os skin principalmente os das periferias (margem Sul nomeadamente) não queriam ser controlados por ninguém, nem estavam muito interessados em política, apenas em cultura suburbana (música, copos, pichadas nas paredes, confrontos violentos de rua).

Hammerskin e  Blood&Honour: redes internacionais de extrema-direita que surgiriam na década de 1990, PHS, criado por Mário Machado (acusado da morte de Alcindo Monteiro) em 2004/5.

Simões, Soraia, 2009. Punked*, Rua De Baixo

No dia da morte de Alcindo Monteiro  decorria o concerto de um dos grupos de Vanda Gonçalves (Dogue Dócil, Kassefazem), em 2009 numa entrevista à vocalista*, ela referia que «não conseguia controlar a afluência de skinheads aos concertos da banda» (...) «Este facto fez com que muita da comunicação social, mas não só, fosse abafando o meu nome e a minha imagem». Vanda recordaria nessa entrevista que depois de convidada para vocalista do grupo Peste e Sida (na altura da eminente saída de João Almendra/vocalista), chegou a fazer alguns espectáculos da digressão denominada “Portem-se Bem”, como vocalista a par de João Almendra e a entrar num trabalho de composição do novo disco “Peste e Sida é que é” tendo, entretanto, saído João Almendra. O seu nome durante muito tempo associado à cumplicidade com o caso do assassinato do dirigente político do PSR fez igualmente com que  Luís Varatojo e João San Payo (ambos membros do grupo Peste e Sida com o qual colaborava) lhe pedissem para mudar de nome e de imagem. A vocalista acabaria por sair.

Créditos
Pesquisa, Entrevista, Captação de Som: Soraia Simões de Andrade.
Fotografias: Soraia Simões de Andrade e Joseph da Silva (SOS Racismo)
Design de som e sonoplastia de entrevistas no audiolivro: João Megre.


 

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RAPRODUÇÕES DE MEMÓRIA, CULTURA POPULAR E SOCIEDADE: GENERAL D

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RAPRODUÇÕES DE MEMÓRIA, CULTURA POPULAR E SOCIEDADE: GENERAL D

Notas

 


2) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986 - 1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.

3) Simões, Soraia 2016 RAPortugal 1986 - 1999. Ciclo de Conferências e Debates no âmbito de projecto parcialmente financiado. Direcção Geral das Artes.

4) Simões de Andrade, Soraia Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.

5) Colóquio Reinventar o discurso e o palco: o RAP entre saberes locais e olhares globais, Maputo.

 

General D nasceu na ainda Lourenço Marques, hoje Maputo, Moçambique, no ano de 1971.

Sérgio (Matsinhe), o nome escolhido entre uma lista de outros nomes pelos pais por imposição externa em tempos de políticas repressivas exercidas entre as populações nativas das ex-colónias, sucumbiu com a chegada de General D e a força da sua actuação no contexto particular da  «cultura hip-hop» e na sociedade portuguesa no período cavaquista pelos debates e discussões públicas em que se envolveu. 

Explicita nesta entrevista os vários espaços geográficos (incluindo aquele de onde é oriundo) por onde passou até se fixar no Barreiro, mas também outros aspectos, como: a primeira ligação às palavras e posteriormente à escrita,  resultado dos discos que ouvia incentivado por aquilo que o irmão mais velho e a mãe escutavam,  como Maria Bethânia, Chico Buarque, Bonga e UHF,  algumas lembranças que retém de um modus operandi dentro do hip-hop  quando a «cultura» ainda se estava a formar em Portugal, a sua chegada à indústria de gravação e edição fonográfica, os temas expostos nas suas letras que ainda hoje o inquietam, sendo o racismo aquele no qual mais atenção é dispendida no seu discurso (o institucional como aquele que, também fruto disso, é praticado no dia-a-dia), entre outros.

Tornou-se um activo defensor dos direitos das minorias, chegando mesmo a ser candidato a deputado ao Parlamento Europeu pelo Movimento Política XXI e Porta-Voz da Associação SOS Racismo, organizou no ano de 1990 o primeiro festival RAP em Portugal, em Almada (na Incrível Almadense) e foi o primeiro rapper em Portugal a assinar um contrato discográfico, com a EMI-Valentim de Carvalho. Em 1994 foi editado o EP PortuKKKal É Um Erro, disco que incluía três temas e que contou com a participação do grupo coral cabo-verdiano Finka Pé, deu alguns concertos em Inglaterra e passou com frequência em rádios locais fortemente dinamizadoras do hip-hop, registou alguns espectáculos de relevo no nosso país, nomeadamente no Festival Imperial, na cerimónia de entrega dos Prémios do jornal Blitz e na Festa do Avante. Em 1995 foi editado o seu álbum de estreia intitulado Pé Na Tchôn Karapinha Na Céu, gravado por General D & Os Karapinhas e produzido por Jonathan Miller, no qual participaram convidados como Marta Dias, Sam ou Boss AC, entre outros.
Participou em Timor Livre, resultado da gravação de um espectáculo no Centro Cultural de Belém de solidariedade para com o povo de Timor, onde participaram Delfins, Rui Veloso ou Luís Represas, e em que General D interpreta dois temas. Após dois anos de concertos dentro e fora de Portugal, General D ainda editou Kanimambo (1997), que contou com a produção de Joe Fossard.

No ano de 2014, a 28 de Junho, integrado no Festival Lisboa Mistura  deu um espectáculo que encheu e que marcou o seu regresso aos palcos. Precisamente o ano em que se assinalou a comemoração dos 40 anos decorridos da Revolução de Abril de 1974 e que simultaneamente marcou os 20 anos decorridos da sua primeira edição discográfica.

com General D, Agosto de 2014, em Miratejo, numa gravação em vídeo

 

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RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade: Makkas (Black Company)

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RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade: Makkas (Black Company)

 

Notas

1) RAP (Rithm And Poetry) é a prática sonora e/ou musical, um dos eixos da «cultura hip hop», assim entendida pelos precursores. Esta cultura integra ainda a vertente visual intitulada graffiti ou  muralismo (ouvir Nomen neste dossier) e a vertente coreográfica denominada breakdance.
Ao hip hop, que se formou nos bairros do Bronx ou Nova Iorque, e se tornou pouco tempo depois numa cultura urbana e de consumo entre as comunidades juvenis passou a atribuir-se o nome de «movimento» ou «cultura», tendo posteriormente quer o RAP como o hip-hop (enquanto cultura agregadora das várias vertentes ‘’artísticas de rua’’) assumido outras denominações locais, como aconteceu  no contexto português onde há uma corrente dominante que o apelida de hip hop tuga ou rap tuga, à qual se tem oposto uma outra corrente que questiona o significado dessas categorizações afirmando, antes, que se trata de um RAP feito em Portugal e não só em português. Crítica encontrada, por exemplo, no rapper Chullage, que usa ora o português ora o crioulo de Cabo Verde nas suas criações. 

2) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986 - 1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.

3) Simões, Soraia 2016 RAPortugal 1986 - 1999. Ciclo de Conferências e Debates no âmbito de projecto parcialmente financiado. Direcção Geral das Artes.

4) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.

5) Colóquio Reinventar o discurso e o palco: o RAP entre saberes locais e olhares globais, Maputo.

6) Fotografia de capa: Helena Silva, Outubro de 2014, LARGO Residências.

 

Paulo Jorge Morais, conhecido por Makkas, nome a partir do qual integrou a  cultura hip-hop há cerca de vinte anos, nasceu no ano de 1976 em Angola, mas foi em Miratejo que cresceu.

Makkas já estava ligado, a partir da Moita, ao universo hip-hop, mas foi quando integrou o grupo Black Company que saiu da invisibilidade. Do grupo, criado na década de 1980, composto pelos rappers Bantú (agora Gutto), Bambino e Makkas (que o integraria no ano de 1988) seria anteriormente formado, ainda, pelos Dj´s KJB e Soon.

Vários rappers da área metropolitana de Lisboa, como General D e Ivan Cristiano (Beat boxer, que curiosamente integraria mais tarde o grupo de Almada UHF, com a função de baterista) passaram por Black Company.

Na colectânea Rapública, editada em 1994,  ''Nadar'', um tema que surgira espontaneamente e que seria o primeiro tema em português do grupo, integrou o disco.
 

O álbum  Geração Rasca,  de 1995, bem como Filhos da Rua,  de 1998, tornaram o grupo reconhecido no panorama nacional, o sucesso alcançado pelos seus integrantes tornaram o grupo uma referência para outros rappers, bem como um estímulo para várias comunidades, especialmente de jovens, oriundas dos mesmos espaços e/ou com experiências sociais e culturais semelhantes. A participação em Racismo Não, editado pela AMI (Assistência Médica Internacional), foi disso exemplo. 

Actuaram em Cannes, no festival MIDEM, na noite Atlântica, no Brasil, entre outros.

A 8 de Setembro de 2008 seria lançado Fora de Série, com dezasseis temas, do qual fez parte o  single  "Só Malucos", um tema que reafirma o cariz intervencionista do grupo junto dos seus pimeiros seguidores. Cariz esse durante muito tempo invisível, devido à forte difusão e aceitação de ''Não Sabe Nadar'' que tornaria, para a maioria da recepção, sinónimo de uma descontinuidade dos seus papéis de denúncia das realidades circundantes.

À data em que esta entrevista aconteceu (Outubro de 2014),  Makkas encontrava-se em estúdio na finalização do seu mais recente fonograma, de nome Rotina já com o seu novo grupo: The Raw Sample Project.

 

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Miratejo, Agosto de 2014, com Makkas (Black Company) e General D

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A vida por um fio estreia de José Ricardo Pinto para a RTP2

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A vida por um fio estreia de José Ricardo Pinto para a RTP2

Reflexão audiovisual sobre o teatro de Marionetas, realizada por José Ricardo Pinto [1] com a colaboração da companhia alcobacense S.A. Marionetas

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Documentário de José Ricardo Pinto sobre o teatro de marionetas português, que nos conta a História de homens e mulheres que passavam tradições através de fantoches. Um teatro que, prescindindo de actores de carne e osso, animava serões - de norte a sul do país - e cruzava a oralidade com o engenho da imaginação. 

Actualmente, a manipulação das marionetas é uma arte cuidadosamente preservada. Diversas são as companhias que se dedicam a esta arte, investigando, construindo e divulgando o Teatro de Marionetas. 
O documentário vai ao encontro desses homens e mulheres que, puxando os fios, dão vida a bonecos inanimados. O dia-a-dia, as técnicas, o engenho, a criatividade e a capacidade de fazer rir, chorar e sonhar.
«Talvez a vida não seja uma coisa poética. Mas tento encontrar poesia na vida», Henrique Delgado (1938-1971), importante historiador da marioneta em Portugal.

[1] José Ricardo Pinto, é realizador e documentarista, integra a Associação Mural Sonoro.

[2] Estreia dia 6 de Junho pelas 23.10. Mais em RTPlay Programação.

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(Des) normatizar

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(Des) normatizar

Dossier proposto por André Samora Pita em Janeiro de 2018 à Associação Mural Sonoro para publicação, realizado pelo próprio, e publicado no portal Mural Sonoro. Conta com duas entrevistas exploratórias em Junho do mesmo ano. Tem  Afonso Miguel Guerreiro (actor, encenador e ex bailarino) e Emerson Pessoa (investigador) como interlocutores.

 

 

O presente dossier tinha como tópico base retratar percursos de atores, atrizes e outros géneros que a língua portuguesa não permite assim expor. Pessoas cujos únicos traços unificadores são a sexualidade e identidade de género não normativas.

“Tinha” porque, por motivos pessoais, não o poderei retomar. Do modo como termina conta com duas entrevistas: a Afonso Guerreiro e a Emerson Pessoa.

Afonso Guerreiro deteve um itinerário emblemático na vida cultural portuguesa, nomeadamente nos palcos, primeiro como bailarino e, depois, como ator. Contudo, nesta primeira entrevista, para além da sua vida profissional também revelou uma perspetiva daquilo que era a vida de um homossexual nos primeiros tempos da democracia portuguesa e os contrastes e continuidades com o tempo presente. A audição desta entrevista irá, sem dúvida, contribuir para quem querer compreender um pouco mais do que era esta realidade, especialmente em Lisboa.

Contrastando com a experiência artística de Afonso Guerreiro, surge a análise académica de Emerson Pessoa. Este explora as realidades de mulheres transsexuais brasileiras e as suas dificuldades na transição para o “velho continente” em busca de melhores condições, mas também de ascensão social. O seu contributo neste dossier revela igualmente como perceções sociais e culturais diferentes moldam o percurso de pessoas não normativas, sendo reforçados vários pontos que podem não ser logo aparentes. Sendo este áudio uma “convalescença” do seu trabalho, recomendamos a leitura daquilo que tem vindo a produzir em torno destas temáticas.

Com isto encerramos este dossier. Um projeto sincero que termina antes de explorar outras realidades (como as trans, as femininas e tantas outras que desafiam rótulos), mas mesmo assim uma tentativa de trazer outras questões para discussão. Agradeço aos dois entrevistados pela colaboração e aos que foram apoiando este trabalho quer com o seu interesse, quer com as suas críticas.

Obrigado.

André Samora Pita

 

Afonso Guerreiro iniciou o seu percurso em 1987 na Companhia Dança do Tejo, nele além da transmissão da sua vasta experiência, está, com certeza, uma parte da História da Cultura Popular de Lisboa e Almada dos anos 80 e 90 e é também disto que fala esta primeira entrevista.

Da chegada dos fundos europeus ao cavaquismo, dos primeiros anos no Conservatório de Dança e de Teatro ao Teatro de Revista, do 'boom' dos espectáculos de transformismo no Bairro Alto à importância de um conjunto de casas nocturnas, de que é exemplo o Frágil. De Passa por Mim no RossioMaldita Cocaína ou What Happened to Madalena Iglésias [1] (como escolas de crescimento artístico e pessoal) às experiências como bailarino, intérprete, actor, coreógrafo. Do teatro dito «erudito» e «sério» ao denominado «popular e de massas», onde o jocoso e político tiveram palco, marcando uma viragem para um conjunto numeroso de bailarinos, intérpretes e actores em Portugal, de áreas distintas, que confluíram nesses anos.

Também as questões relativas à sua vivência enquanto homossexual não são ignoradas. Tanto nas transformações sofridas na cidade de Lisboa, e a forma como as comunidades LGBTQ+ são agora interpretadas pela sociedade portuguesa, como ainda o impacto dos movimentos sociais na dinamização da mudança.

Créditos
Indicativo/música de Nuno Pereira; 
Captação musical de Soraia Simões para Mural Sonoro (arquivo);
Fotografia de Alicia Gomes;
Entrevista conduzida por André Samora Pita.

Notas

[1] peças de teatro

 

 

Emerson Pessoa é um Antropólogo e Investigador brasileiro, nacido em Paulicéia-SP. Mestre em Ciências Sociais e professor na Universidade Federal de Rondônia. Neste momento encontra-se a fazer o seu doutoramento no ICS - ULisboa.

Nesta recolha de entrevista fala do que tem sido a sua pesquisa no seio das questões de identidade de género, direitos, capitais culturais, simbólicos e sociais no mercado de trabalho (como o da prostituição) no contexto de migração das mulheres trans, violência transfóbica e inclusivé policial, mas também no universo da construção de visibilidades da comunidade LGBTQ+ e invisibilidades.


Créditos

Fotografia de António Pedro

Entrevista conduzida por André Samora Pita;
Indicativo/música do dossier de Nuno Pereira; 
Captação musical para o indicativo de Soraia Simões para Mural Sonoro (arquivo).

(c) 2018 Direitos Reservados Associação Mural Sonoro, dossier (Des) normatizar

 

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Hugo Ribeiro (1925 - 2016): narrar e gravar o invisível, por Soraia Simões de Andrade

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Hugo Ribeiro (1925 - 2016): narrar e gravar o invisível, por Soraia Simões de Andrade

 

Amália: repertórios (in) visíveis

«Eu estive lá em casa nessa noite! A Amália, como nunca tinham editado um disco com o nome dela na autoria, metiam o nome de um outro qualquer, convidou o Varela para aparecer como compositor daquele fado, que era da Amália (referindo-se a ''Estranha Forma de Vida''). A Amália fez, mas ainda estava naquela vergonha de aparecer como poetisa. Depois editou livros e tudo, mas naquela altura haver uma mulher que se assumisse como autora não era bem visto».

 

Hugo Alves Fernandes Ribeiro, nascido  em Vila Real de Santo António, na Miguel Bombarda às três da tarde do dia 7 de Agosto, como fez questão de frisar ao longo da nossa conversa ocorrida em Setembro de 2015 na sua casa de Lisboa, um dos nomes incontornáveis da música gravada em Portugal, estando directamente ligado a Amália, Marceneiro e a tantos outros.

Quando falamos de um dos mais importantes espaços para a indústria musical, nomeadamente na gravação e reprodução de fonogramas, a Valentim de Carvalho, falamos invariavelmente do trabalho que desempenhou ao serviço dos estúdios em Paço de Arcos. A história individual de Hugo Ribeiro é uma parte importante da história da música produzida neste país, mas também da sociedade e sistemas organizacionais e políticos que a acolheram, como manifestou o nosso diálogo gravado.

O seu trajecto profissional na editora Valentim de Carvalho começou em 1945, primeiro na secção de músicas e mais tarde na secção de discos. A sua ligação quer laboral como afectiva manteve-se até ao final da sua vida. Mesmo após a sua última gravação, na década de 90, Hugo Ribeiro continuou a ser uma presença assídua  em Paço de Arcos.

Foi precursor de metodologias e técnicas de gravação quando os estúdios ainda contavam com recursos primários, assistindo ao seu desenvolvimento.

Rui Valentim de Carvalho convidou-o para a Valentim de Carvalho, confiou-lhe trabalho e amizade, Hugo Ribeiro tornou-se o primeiro técnico da Valentim de Carvalho com uma produção notável e um dos mais célebres e reconhecidos engenheiros de som portugueses, uma referência para uma geração seguinte de técnicos e engenheiros de som.

Das centenas de músicos  que gravou em distintos formatos físicos destacam-se  referências de vários universos da música popular como Amália e Celeste Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, Maria Teresa de Noronha, Carlos Ramos, Tristão da Silva, Hermínia Silva, Beatriz da Conceição, Fernanda Maria, Max, Fernando Farinha, Carlos do Carmo,  Carlos Paredes, António Variações, Rui Veloso, entre tantos outros.

Faleceu no dia 3 de Dezembro de 2016, aos 91 anos, esta conversa, cujo conteúdo sonoro (parte dele) aqui publico pela primeira vez, realizou-se em Setembro de 2015 na sua casa de Lisboa, no Largo Camões, no âmbito de um convite que me foi endereçado pela direcção do suplemento/revista do Jornal do Algarve nesse ano, suplemento que esteve dedicado a várias personalidades algarvias que se destacaram na sociedade portuguesa.

 

Neste excerto, de uma conversa de cerca de quatro horas, Hugo Ribeiro contava como Amália antes do 25 de Abril tinha receio de registar as letras de sua autoria deixando-nos, com esta narração do que presenciou, algumas ideias sobre a conjuntura sociocultural em que Amália gravitava e a partir da qual se notabilizou: «uma mulher que escrevesse não era bem vista no Fado», relataria também o «truque» usado quando gravava Carlos Paredes, sessões de estúdio longas nas quais o som da respiração 'sobre' a guitarra se encontra muito presente, podendo isto 'verificar-se' na respectiva obra discográfica.

 

Amália: repertórios (in) visíveis

Eu estive lá em casa nessa noite! A Amália, como nunca tinham editado um disco com o nome dela na autoria, metiam o nome de um outro qualquer, convidou o Varela (Alberto Varela Silva, autor, director de teatro e cinema e encenador português) para aparecer como compositor daquele fado, que era da Amália (referindo-se a «Estranha Forma de Vida»). A Amália fez, mas ainda estava naquela vergonha de aparecer como poetisa. Depois editou livros e tudo, mas naquela altura haver uma mulher que se assumisse como autora não era bem visto.

 

A inscrição de autorias nos discos até meados dos anos de 1970 não era uma constante, muitas autorias individuais eram remetidas para o colectivo, seja no caso de discos enquadrados em períodos históricos de alguma conturbação político-social (pré 25 de Abril) seja no caso de músicos cujo contexto em que se inseriam e o discurso que os veiculava, e em que se queriam fixar, se situava no espectro do associativismo e/ou sindicalismo na esteira do 25 de Abril e nomeadamente durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC).

 

No universo do Fado o papel da mulher como autora não era, segundo Hugo Ribeiro, algo que fosse motivo de orgulho.

«Assisti a coisas verdadeiramente injustas com a Amália, produto de uma sociedade patriarcal e profundamente machista (...).

Quando era autoria dela não aparecia. Mas, a música do Alfredo Marceneiro era mais ou menos conhecida, agora a letra não. E a letra era dela! Ela pediu ao Varela por tudo e ele nem queria, mas ele acabou por assinar como autor da letra. Se uma mulher naquela altura escrevesse para Fado diziam logo mal. Também diziam mal dela por tudo e por nada.

Eu um dia disse-lhe, isso é um sucesso tão grande, os discos vendem-se aos milhares e tu não queres dizer que a letra é tua? Fomos à Sociedade Portuguesa de Autores, apesar dela ir muito contrariada. A Amália não quis que a gozassem. Até diziam, veja lá, que ela tinha ido à Argentina (pausa). Parecia um daqueles filmes da Idade Média. Bem, diziam tudo e mais alguma coisa, até dava vontade de rir. Diziam que ela levava num anel veneno para pôr no copo e matar Humberto Delgado. Há coisas que a gente ainda acreditava, mas há outras que não se acreditava mesmo nada. Ainda mais a Amália, uma medrosa como ela era. O que ri com esse boato».

Hugo Ribeiro foi, e continuará a ser, uma das figuras mais respeitadas por músicos, orquestradores, compositores e outros técnicos igualmente respeitados (à altura em que esta conversa aconteceu, José Fortes, técnico de percurso consolidado no nosso país, ligava-lhe) que integram a História da Música e ainda o contactavam à altura em que decorreu esta nossa última conversa para trocar ideias e pormenores daquele e deste período da gravação musical e sonora.

O estúdio de gravação de música no qual desenvolveu a sua profissão foi responsável pelas mais variadas edições discográficas de sucesso ao longo de cerca de seis décadas, no ano de 1991, quando muda a sua fixação geográfica, Rui Veloso é quem estreia as novas instalações registando aí Auto da Pimenta  (1991), numa altura em que as instalações originais seriam reconvertidas para estúdio de televisão.

 

Várias foram as orquestras de destaque a gravar em Paço de Arcos. A Valentim de Carvalho representaria o culminar de um caminho no universo da gravação e edição de música em Portugal que iniciara na década de 30.

 

Hugo Ribeiro assistiu e fez parte de todo o processo, numa época em que as gravações eram directas para o disco e o resultado das mesmas seguia no dia para Inglaterra e as provas demoravam cerca de duas semanas a chegar, embora os discos demorassem mais tempo vindos de barco.

Num tempo no qual a indústria fonográfica vivia um período de experimentação e adaptabilidade e onde sucesso seria sinónimo de venda de cópias, Hugo Ribeiro protagoniza um dos períodos mais marcantes da história cultural do país. A fábrica de discos que a Valentim de Carvalho tinha no Campo Grande, dedicada à prensagem de discos de 78 rotações cresceu e começou a pensar na sua expansão sendo para isso necessário não só gravar com melhores e mais sofisticados meios como mais e foi por isso que Rui Valentim de Carvalho foi a Londres em busca dessas máquinas onde Hugo Ribeiro acabaria por gravar cá em Portugal. Os estúdios de Abbey Road foram a paragem. Com marcas como a EMI ou a Magnetophon faziam-se gravações na Rua Nova do Almada e na sala do Clube da Estefânia pejada de inconvenientes como relembra Hugo «além das mesas de bilhar, as gravações às vezes estavam a correr muito bem e os pavões de um jardim lá ao lado começavam a fazer um barulho insuportável e tínhamos de parar tudo e começar de novo».

Mas, o espaço novo acabaria por chegar, o estúdio da Costa do Castelo, que funcionava onde posteriormente se fixou o Teatro Taborda, no ano de 1951 veio a assinalar um momento crucial na História da Música, e da sua gravação em particular, em Portugal.

Notas

[1] Artigo do Magazine/suplemento do JA impresso, 5 de Novembro de 2015, on-line, aqui.

[2] Fotografias de Marta Reis, durante entrevista em casa de Hugo Ribeiro, Setembro de 2015.

[3] Captação de som, edição, texto: Soraia Simões

[4] Fotografia a preto e branco cedida do arquivo de Hugo Ribeiro (autor/a desconhecido/a).

[5] ''Varela'': Alberto Varela Silva (Lisboa, 15 de Setembro de 1929 - Lisboa, 15 de Dezembro de 1995) foi um actor, autor e encenador português.

[6] gravação usada: Carlos Paredes em «Balada de Coimbra»

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Fixar o (in)visível: papéis e reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989 - 1998)

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Fixar o (in)visível: papéis e reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989 - 1998)

Cadernos de Arte e Antropologia

Vol. 7, No 1 | 2018
Juventudes e Músicas Digitais Periféricas

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Artigo para leitura completa aquiPara citar este artigoReferência do documento impressoSoraia Simões, « Fixar o (in)visível: papéis e reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989 - 1998) »,&nbsp…

Artigo para leitura completa aqui

Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Soraia Simões, « Fixar o (in)visível: papéis e reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989 - 1998) », Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 7, No 1 | -1, 97-114.

Referência electrónica

Soraia Simões, « Fixar o (in)visível: papéis e reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989 - 1998) », Cadernos de Arte e Antropologia [Online], Vol. 7, No 1 | 2018, posto online no dia 01 abril 2018, consultado o 03 maio 2018. URL : http://journals.openedition.org/cadernosaa/1397 ; DOI : 10.4000/cadernosaa.1397

 

Autora

Soraia Simões

Universidade Nova de Lisboa, Portugal

muralsonoro.soraiasimoes@gmail.com

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Por falar em Luís Monteiro

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Por falar em Luís Monteiro

 

Represento aquela esquerda indignada que se indigna com a própria esquerda (Luís Monteiro)

 

A contra-cultura só existe enquanto estiver fora do radar da capitalização.

Por vezes, foram homens e mulheres, que, nunca colhendo frutos de nenhuma militância, embora seminais nas opções de outros a quem se reconhece poder na margem (poder conferido pela alimentação mútua com o poder do centro de forma a produzir narrativas de concórdia, heterogeneidade, e abertura, precisas para a manutenção de ambos), peças principais para desbloquear uma engrenagem que passou a ser visibilizada tendo como almofada um discurso de margem.

Tudo começou há uns meses, quando Ana Deus (intérprete: Ban, Três Tristes Tigres, Osso Vaidoso) leu uma das conversas com José Mário Branco (JMB) na Mural Sonoro, cuja transcrição se encontra no Memórias da Revolução [1] e me ligou alertando para o facto de  uma das  principais referências evocadas por JMB ser seu vizinho, hoje com 85 anos, Luís Monteiro.

Mais que coleccionador, estudioso e entusiasta das músicas e culturas. Esteve vinte e sete anos ao serviço na Emissora Nacional a partir do Porto — tarefa-motor da curiosidade pela música e um estímulo à expansão da sua colecção discográfica —,  e em simultâneo desenvolvia um interesse pela leitura de natureza musicológica, etnográfica, linguística e historiográfica, que o levou a fazer e a refazer anotações das suas teorias sobre música e a partilhá-las, como se mostrará aqui.

Mas foram mais as vezes, além dessa conversa, em que José Mário Branco sublinhou a importância de Luís Monteiro no guião da sua vida musical. Como no decorrer de um debate com o título Música e Sociedade, realizado pela Mural Sonoro em 2013 a convite do Museu da Música.
Foi na Parnaso que JMB conheceu Jorge Constante Pereira, outro dos beneficiários dos conhecimentos passados por Luís Monteiro.


A 1 de Agosto de 1935 a Emissora Nacional foi oficialmente inaugurada, nessa fase experimental a programação procurou distanciar-se dos programas mais ligeiros que preenchiam as rádios privadas, alterando com programas musicais de natureza erudita e misturando mensagens ditas-pedagógicas com propaganda do regime.
A primeira Lei Orgânica da Emissora Nacional (Setembro de 1940) autonomizou-a prevendo a organização dos serviços, a execução do Plano de Rádio Difusão Nacional e a criação de emissores regionais no Porto, Coimbra e Faro. Foi na Emissora Nacional na cidade do Porto que Luís Monteiro permaneceu mais de duas décadas. Com uma visão crítica normal seria que procurasse intercalar o ofício com outras descobertas e redescobertas; e um conjunto de questões de natureza linguística e sonoro-musical, mas também política, procedente da sua agitação, emergisse. Como me disse quando cheguei ao Porto: ainda hoje represento aquela esquerda indignada que se indigna com a própria esquerda. O áudio dessa conversa, sem guião definido, como quase todas as anteriores, estará aqui


Um testemunho é parte de uma acção que se tornou real; está além do acontecimento registado de modo inalterável e muito menos oficial. É a particularidade, o detalhe que, sendo relevante para o detentor dessa memória, pode lançar outros olhares, permitindo decerto que a história esteja mais próxima de quem a partilha.
Como mencionava Paul Veyne (2008) [3], a importância dada a uns factos em detrimento de outros mostra uma escolha por parte de quem investiga e escreve, não uma grandeza que lhes seja inerente. Ou, melhor, eles são-no, providos de magnanimidade, para quem investiga e escreve, por isso decide tirá-los da penumbra. Se assim não fosse, pautada por essa selectividade, que tese ou reflexão diferenciadoras, em temáticas ou cronologias fetiche da contemporaneidade, emanariam?


Por acreditar que as páginas da Mural Sonoro também podem servir para fomentar reencontros, e através deles fixar outras linguagens, vivências, com as quais tenho a sorte de me cruzar; um lado que a História da Música merece inscrever no caderno de memórias, onde vivem especialmente afectos, tensões, sociabilidades, sem os quais não existiria: fui conhecer Luís Monteiro e desafiei os seus ex-alunos a escrever sobre ele.
É, então, de Luís Monteiro que há mais de quarenta anos JMB não via, embora tão significativo no seu caminho artístico, que José Mário Branco e Jorge Constante Pereira aqui escrevem. 
Pretende ser uma homenagem ao que operou nas vidas de vários jovens que despertavam no Porto para a música, para a poesia, para as discussões de natureza política, sessões onde tudo isto se misturava. Ao homem que acolheu Giacometti no Porto, e dele conta que foi um homem bom, porque se interessou por recolher aquilo que lhe permitiu cruzar teorias e anotações.

 

Soraia Simões de Andrade

Lisboa

Abril de 2018

 

Obrigado, Luís Monteiro

 

Tenho uma imagem quase mítica do Luís Monteiro, certamente por razões que nem ele suspeita. Essa imagem resulta da importância que ele teve na minha formação, num tempo em que, com outros jovens apaixonados pela música, pela poesia, pelas artes, eu estava intensamente disponível para as ideias
novas e os sons novos que ele nos deu a conhecer.

Chamado a ter conversas com um grupo de alunos da recém-aberta Escola Parnaso do Prof. Fernando Corrêa de Oliveira, no Porto, o Luís Monteiro deu-nos a conhecer, com os seus discos e as suas explicações, dois tipos de música bem diferentes que eram as grandes paixões da sua vida.
Sendo um simples funcionário da delegação da Emissora Nacional na Rua Cândido dos Reis, tinha em casa uma gigantesca discoteca onde predominavam esses dois tipos de música:
- a música tradicional e erudita dos povos de todo o mundo, onde sobressaía o gamelang (música erudita da Indonésia), e
- a música erudita europeia pós-Schoenberg: Webern, Stockhausen, Dallapiccola, os concretistas Pierre Henri e Pierre Schaeffer, e ainda Boulez, Ligeti, Penderecki, etc.


A memória que dele tenho é a de alguém que procurava relações entre tudo. No campo das músicas tradicionais — a que éramos particularmente sensíveis através de Lopes-Graça e Giacometti —, ele ensinou-nos que a música nasce da vida dos povos. Esboçava mesmo alguma teorização sobre o papel das músicas tradicionais enquanto preciosa informação sobre a evolução das línguas, as migrações dos povos, e até as variações dos climas, das paisagens, dos modos de sobrevivência.


Falando de coisas tão grandes e importantes, ele tinha sempre um ar modesto e marginal, quase inadaptado.
Os nossos encontros com o Luís Monteiro —  que nem sequer foram muitos —  marcaram-me para sempre, e estão entre as mais belas memórias que guardo da minha juventude.


Por esse homem, que quase ninguém conhece, e a quem nunca foi dado o devido valor, eu nutro uma profunda gratidão.
Sem ele, eu não seria quem tento ser.


José Mário Branco
Lisboa
Abril de 2018

 

 

 

Por falar em LUÍS MONTEIRO, por Jorge Constante Pereira [2]

 

Armadilhas da memória

 

Falar sobre alguém com quem convivemos de perto há cinco décadas é uma tarefa muito arriscada, sobretudo quando o relator não é um escritor. A memória talvez ajude mas as emoções podem pregar-nos partidas, inquinar as nossas percepções, adulterar as nossas interpretações. E o tempo é, de facto, um canibal.

 

Feita esta declaração de interesses – que não é certamente novidade para uma investigadora como a Soraia Simões – temos que entrar no assunto. E o assunto é, a meu ver, aquilo que o Luís Monteiro nos trouxe desde os anos sessenta com a sua enorme informação musical e a sua persistência em temas ligados à musicologia comparada.

A minha tarefa de escrever sobre este grande amigo de há muitos anos – e que eu perdi de vista também há tempos – está muito facilitada pela entrevista muito esclarecedora que o José Mário Branco deu ao Mural Sonoro da Soraia Simões de Andrade [4], entrevista em que, entre outros assuntos da sua vivência como músico e cidadão, fala do Luís Monteiro e relata eventos que com ele partilhámos, em parceria com outros cúmplices, durante alguns anos de juventude.

Assim, vou limitar-me a focar alguns episódios que o José Mário poderia não conhecer, nomeadamente porque me implicaram com um papel que resultava sobretudo da minha actividade à época como estudante de piano e composição no Conservatório de Música do Porto e também como educador musical na Escola Parnaso dirigida pelo professor Fernando Corrêa de Oliveira nessa época (vide A Escola Parnaso por Joana Resende).  

 

A discoteca do Luís Monteiro

 

Para nós era, à época (cerca de 1960), um assombro! Como estudante que era no Conservatório de Música do Porto – tão conservador nesse tempo como a designação sugere – o contributo do dodecafonismo de Corrêa de Oliveira com a sua abertura ao serialismo  musical, bem como a discoteca do Luís Monteiro, foram duas pedras basilares da minha formação musical, como compositor e como educador musical.

 

O Luís Monteiro trabalhava no arquivo musical da então chamada Emissora Nacional, e só encomendava discos que não existiam nesse   arquivo e por isso o que ele encomendava era mesmo muito restrito e sofisticado, sendo ele conhecido no mercado dos discos como um consumidor de discos especial e muito exigente; tive a confirmação disso uma vez que, numa ida minha a Paris, ele me pediu que fosse à sua loja de discos – nessa época chamava-se discoteca, isso agora tem outro significado –, o que fiz com algumas consequências aborrecidas à chegada ao berço, por (des)virtude das chamadas importações  alfandegárias ilícitas de bens culturais, que eram mais vasculhadas e taxadas na fronteira do que as bebidas alcoólicas. Enfim, umas piadas sem graça do regime.

Por acidente – que não por desforra! – algum tempo mais tarde foi o Luís abordado pela polícia política na sequência das actividades  de militância política em que muitos de nós estavam envolvidos – que o José Mário Branco descreve na já referida entrevista –, uma vez que o regime estipulava que todas as reuniões de mais que um eram proibidas; o Luís Monteiro, funcionário de uma das ferramentas do Estado Novo, a EN, reunia-se connosco para fins de cultura musical e mais nada, mas isso não o livrou de ser interrogado pela PIDE e de a sua discoteca ser vasculhada – grande susto dele! –,  não fosse ter lá alguma versão da Internacional ou, pior, ainda discos proibidos com cantos heróicos do Lopes-Graça!

A etno-musicologia vista pelo Luís Monteiro

 

Voltemos então ao nosso assunto principal: o papel do Luís Monteiro nas nossas  AEC’s – actividades de enriquecimento curricular.

No que diz respeito a Schoenberg, Alban Berg,  Webern, Messiaen, Stockhausen e tantos outros, ficámos todos mais informados graças ao Luís Monteiro e à sua discoteca, autêntica preciosidade com especial destaque para a música do século XX – o Luís confessou-me um dia  que só saiu verdadeiramente da adolescência depois de ouvir a Sagração da Primavera de Igor Strawinski – e para a música tradicional de todo o mundo.

Particularmente apaixonado pela musicologia comparada, o Luís lia – e partilhava com os amigos – tudo o que conseguia arranjar de musicólogos e antropólogos como Curt Sachs, André Schaeffner e outros; não perdia os boletins editados ou patrocinados pelo CIM - Conseil International de la Musique, organização não governamental parceira da UNESCO que dedicava particular atenção à diversidade cultural em todo o mundo, e devorava as publicações do Musée de L’Homme de Paris – e tanta outra bibliografia, tanta que é difícil inventariá-la toda a esta distância.

Ao longo de alguns anos de convivência e partilha, tivemos momentos notáveis, de entre os quais vou referir dois, um mais pessoal e outro mais colectivo.

Primeiro exemplo. Com um interesse especial pela música indiana, que ele considerava ser como a mãe musical do mundo, o Luís convenceu-me a tentar, ouvindo os ragas e outras formas de música indiana, extrair e notar, para benefício das suas pesquisas, os modos que eram usados na construção musical; como eu tinha ouvido e sabia escrever música, ele usou e abusou: da música indiana passou para a africana e, mais tarde, para a americana. Bem, não estou a queixar-me; foi um bom treino de ditado musical e uma boa aprendizagem sobre a música oriental. Sugiro que aproveitem, vale a pena.

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O outro exemplo é diferente.

O Luís Monteiro acedeu em fazer várias palestras, na Escola Parnaso, sobre música do mundo – não é bem a world music da MTV mas tinha de facto um âmbito muito universal. Só que quis mudar o mundo! E mudou. Com a nossa ajuda. Ou seja, não se pode dizer que o mundo mudou de sítio, antes foi ele que mudou o sítio do mundo!

Durante alguns serões, com muito papel cenário e vários pincéis e tintas, fabricámos um Planisfério que serviu de cenário às suas palestras. O único “pormenor” inovador foi a troca de orientação! No planisfério que usámos entre nós, temos no meio a Europa, e depois a Ásia a Este e as Américas a Oeste.

Mas o mapa do mundo do Luís Monteiro tinha que ser visto “do outro lado do mundo”, porque a cultura musical teria passado, em seu entender, de Oriente para Ocidente através do Estreito de Behring (ou perto disso).

E pronto; foi assim que o Luís Monteiro mudou o mundo. E nós ajudámos, com muito gosto!

Disse Yoko Ono:

One can do alone, but he always needs a friend

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O mundo era assim antes do Luís Monteiro o virar e ficou muito melhor depois disso! Ou não?

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Uma coisa é certa: foi bom estar aqui “na companhia” do Luís Monteiro. Obrigado por isso, caro Amigo! Obrigado por isso, cara Amiga Soraia Simões! Até sempre, e faço votos de que a Mural Sonoro continue, com Rap e tudo o que a música de gente nos puder trazer.

Jorge Constante Pereira

Porto

Março de 2018

 

Somos vizinhos[5] do Luís Monteiro. Vizinhos de baixo, do lado oposto, mas mesmo assim ainda conseguimos ouvir, na casa de banho, ecos das músicas que escuta.

Temos décadas de conversas sobre música, interrompidas e continuadas como episódios, de elevador.

O Luís não gosta da minha música mas eu até gosto «das dele», que são todas as «puras» que procurou e coleccionou pela vida fora. Músicas ainda mais impossíveis agora que tudo comunica.

Quando as Fnacs ainda eram lojas francesas, o Luís voava até Paris só para comprar discos. Não visitava museus nem assistia a espectáculos, porque todo o tempo era precioso e escasso para as suas buscas, disco a disco, nos escaparates das lojas. Com o lanche num saquinho plástico, mas sem água ou outra bebida, para não ter de perder tempo em idas ao wc, procurava as suas preciosidades, raras e voltava mais ou menos feliz dependendo das aquisições, fechando-se em casa para ouvir os discos, só saindo rapidamente para comprar comida e vinho branco.

Quando as idas à Fnac, entretanto em Portugal, deixaram de ser proveitosas ajudei-o a encomendar via Amazon alguns cds, mas também dvds de filmografias eróticas-exóticas e livros sobre teorias várias, de luz e cor, genética. Tudo do mais relevante que há.

As estórias dele e com ele são muitas, a maior parte delas impossíveis de partilhar com estranhos, mas aqui vai um exemplo de quão exemplar é este meu vizinho preferido. Encontrei-o no momento seguinte ao de uma tentativa de assalto na rua...ao fulano que se lhe atravessou no caminho o Luís terá berrado com largos gestos e indignação - Não me chateie pá! Você acha que eu tenho tempo para isso! O que deixou o larápio baralhado tendo desistido da acção.

Lembro já agora, também, o dia em que no Café da rua fomos abalroados por um polícia que andava à nossa procura, por questões parvas que felizmente já não são questão com a nova legislação. Durante a identificação, mais busca em bolsos e bolsinhas, chega o Luís Monteiro que ignorando completamente a situação e o polícia nos começa a falar acaloradamente do seu último interesse ou descoberta como se nada se passasse. Polícias e ladrões são invisíveis para o Luís Monteiro. Apenas importa o que importa.

Viva o Luís Monteiro!

Ana Deus

Porto

Abril de 2018

 

Notas

Fotografias: José Fernandes

Registo em Vídeo: Amarante  Abramovici


[1] proposta do Instituto de História Contemporânea com a RTP que se destina a evocar os dias entre o 11 de Março de 1975 ao 25 de Novembro de 1975, contando para isso com um número grande de documentos de arquivo, passados em revista durante um minuto na RTP: frases, canções, imagens que se fixaram na história do dito Verão Quente de 75. Convite feito à Mural Sonoro para integração de parte deste arquivo sonoro e um conjunto de ensaios dele decorrentes.

[2] Jorge Constante Pereira é compositor e dramaturgo. Do seu trabalho como compositor musical e autor de textos para teatro e televisão recordo A Árvore dos Patafúrdios (1984) e Os Amigos do Gaspar (1986) em colaboração com Sérgio Godinho.

Professor de Educação Musical no Conservatório de Braga (Escola Calouste Gulbenkian de Música), assistente universitário no Curso de Ciências da Educação da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo Técnico de Intervenção Precoce do Centro Regional de Segurança Social do Porto, mas também terapeuta da Psicomotricidade no Centro de Higiene Mental Infantil e Juvenil do Porto  e posteriormente no Centro de Observação e Orientação Médico-Pedagógica em Lisboa.

[3] Veyne, Paul 2008. Como se escreve a História. Edições 70. Lisboa.

[4] Entrevista referida por Jorge Constante Pereira a José Mário Branco, aqui.

[5] Ana Deus e Paulo Ansiães Monteiro.

 

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«Cidade Cidadã», Portugal Smart Cities

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«Cidade Cidadã», Portugal Smart Cities

Quem não conseguiu estar saiba que pode ouvir aqui a comunicação de breves minutos (consegui fazê-la, parecia-me impossível, em menos dos 8 pretendidos pela organização) e em português no âmbito da sessão «Cidade Cidadã» que teve lugar hoje de tarde no evento Portugal Smart Cities com o título «RAPresentar a cidade (In) visível no arranque do hip-hop em Portugal»

Comunicação em português no âmbito da sessão «Cidade Cidadã» que teve lugar esta quinta-feira entre as 16.00 e as 18.00 no evento Portugal Smart Cities.

Sessão presidida pela Secretária da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Maria Fernanda Rollo e moderada por Miguel de Castro Neto (Sub Director  Nova Ims - Information Management School).

Notas

Fotografia 1) Sessão «Cidade Cidadã», Portugal Smart Cities, Centro de Congressos de Lisboa. 12 de Abril. 2018.

Fotografia 2) material cedido por Jumping (Djamal) durante trabalho de pesquisa. Concerto de Djamal, primeira parte de GNR. 1997.

Fotografia 3) recolhas durante trabalho de pesquisa. Exposição de Ithaka (Darin Pappas).

Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adia (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.

Simões, Soraia 2018/9 no prelo Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.

 

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RAPRODUÇÕES DE MEMÓRIA, CULTURA POPULAR E SOCIEDADE: NOMEN

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RAPRODUÇÕES DE MEMÓRIA, CULTURA POPULAR E SOCIEDADE: NOMEN

 

Notas

Fotografia [cedida por Jazzy J em 2015, durante trabalho de campo]: graff de Nomen de 1992, no interior da Escola Secundária de Carcavelos, "2mad".

Tema: «Só queremos ser iguais». 1994. Zona Dread. Colectânea RAPública. Sony Music.

Certeau, Michel de 1980. L'Invention du quotidien - la arts de faire.

Simões, Soraia. coorden. 2016. Ciclo de debates RAPortugal 1986 - 1999. DGArtes. Lisboa.

Simões, Soraia. 2018. RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril. As margens, o centro, paradoxos e contradições do RAP em Portugal. Esquerda.net.

Biblio/fontes

1) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.

2) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.

Onde encontra as obras mencionadas:

Editora Caleidoscópio

Almedina

FNAC

Bertrand

Ler por aí… 

 

Dossier RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade

[excerto de conversa com Nomen, Julho de 2016 no audiolivro (1)]

 

Como já  aflorado neste dossier as primeiras referências oriundas do contexto internacional influenciaram a criação de grupos de RAP em Portugal, o aparecimento de breakdancers (b-boys e flygirls) e writers.

Outro dado interessante foi percepcionado durante o ciclo de debates organizado (Simões 2016), ao longo dessas sessões constatou-se que quer a música como as poesias RAP foram  transversalmente descritas pelos presentes como modelos de expressão, dentro da «cultura» (hip-hop), mais próximos dos desfavorecidos e excluídos economicamente, ao passo que actividades como o djing ou o muralismo precisaram de um maior investimento de capital financeiro.

Nesta conversa gravada em Julho de 2016, Nomen, um dos primeiros writers portugueses, explica como o RAP influenciou a sua actividade como artista urbano, deixando pistas acerca da transformação verificada em ambas as práticas  da «cultura hip-hop» e a dissociação/não complementaridade que ao longo dos anos foi sendo possível verificar em ambas as actividades.

 

   
 As relações estabelecidas por  comunidades juvenis de características distintas com as geografias urbanas, e vice-versa, calcularam diferentes formas de transitar e intervir  nos espaços urbanos. Esses modos distintos de circulação traduzir-se-iam quer na própria constituição, organização ou disposição da cidade como em ''novos'' circuitos inventados por estes jovens nos quais recriaram e reforçaram dinâmicas de significação e valoração dos locais, inventando e reinventado os seus guiões e discursos quotidianos ou, readquirindo a proposta de Certeau (1980), outros «circuitos» e «mapas». 

As mediações entre os protagonistas da «cultura hip-hop» e o mundo urbano foram  a base do nascimento e da estruturação desta prática cultural. A cidade seria não mais do que um lugar de outros «circuitos» que funcionou como motor de criação e contribuiu para uma auto-encenação expressa no RAP (nas suas letras e poesias) bem como nas suas performances.


Nesses circuitos convergiram ideologias, histórias locais e translocais, influências, biografias e um conjunto semelhante de referências sonoras e musicais. Em simultâneo, com a massificação do hip-hop, as representações socioculturais da juventude urbana de final dos anos 80 e dos anos 90, apropriar-se-iam desta cultura dando aos seus praticantes por um lado um sentido ainda maior para as suas actividades ou práticas criativas, por outro lado um espaço maior de representação ideológica e de reivindicação fora do universo de origem, marcado pela imigração, a diáspora e o processo de retorritorialização, dando aos jovens das e nas margens novos paradigmas de actuação, de protagonismo social, assim como novos lugares de pertença sociocultural.


Porém, nestas mediações cresce quer nos grupos como nos sujeitos uma preocupação e exigência cada vez mais reclamada: a referente à sua «identidade».


O questionamento acerca da sua identidade, a sua permanente reafirmação, o sentimento de pertença de um «movimento» ou «cultura», o posicionamento num universo discursivo, ou a fixação numa comunidade com lutas aproximadas ou afinidades de natureza política ou afectiva tornar-se-ia uma exigência dentro do meio hip-hop em todas as suas vertentes, mesmo estando este baseado numa «cultura de retalhos» (Simões 2017).

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Luiz Caracol (músico, compositor)

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Luiz Caracol (músico, compositor)

111ª Recolha de Entrevista
Quota MS_00094


Luiz Caracol é um músico e compositor português nascido em 1976.

Faz parte de um conjunto de outros músicos e autores cujos percursos profissionais iniciaram na primeira metade dos anos de 1990, no seu caso especialmente ao lado de Sara Tavares, com quem trabalhou durante oito anos. O seu primeiro instrumento musical foi a viola, que passou a funcionar, principalmente, como acompanhamento das suas composições musicais.  Ao longo de cerca de duas décadas foi colaborando com um leque variado de outros músicos e compositores (Uxia, Zeca Baleiro, Jorge Palma, Tito Paris, entre outros) e integrou um agrupamento (Luiz e a Lata) que também deixaria dois discos, porém o seu primeiro registo discográfico a solo surge só em 2013 (Devagar) ao qual junta Metade e Meia (2017) — uma edição que contou com o apoio do fundo cultural da Sociedade Portuguesa de Autores. É da edição discográfica a solo tardia que parte esta conversa, das razões para tal, para depois se centrar em parte do seu processo de escrita musical, da composição, do modo como os percursos biográficos da sua família, vinda de Angola em 1975, se entrecruzam com a sua produção musical, os repertórios em concreto, etc.


Fotografias: José Fernandes
2018 Perspectivas e Reflexões no campo

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RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade: Maze (Dealema)

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RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade: Maze (Dealema)

Dossier RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade

[conversa com Maze 1 e 2]

 

O momento em que a prática do RAP deu os primeiros passos em Portugal foi também o momento de afirmação de outras manifestações do «movimento hip-hop» como a dança (breakdance) e a pintura de murais (grafitti, muralismo). Foi ainda o momento em que esta prática assumiu uma missão na cultura popular que outras práticas musicais não haviam representado até então: a de fazer a reportagem das ruas e dos bairros (denominada pelos protagonistas de RAPortagem) alertando para aquilo que era um conjunto de problemas distintivos de uma primeira geração de filhos de imigrantes ou de afrodescendentes nascidos em Portugal, como o do racismo, da exclusão social, da pobreza, da xenofobia. Mas, este primeiro momento de afirmação foi também marcado por um conjunto de outras desigualdades, como as relacionadas com a condição feminina, também aqui exercidas, o que deu azo a uma desvalorização e/ou falta de atenção para os  assuntos relatados nos repertórios e discursos falados das primeiras rappers, como a violência com base no género e o sexismo.
Apesar de tudo, por colocarem no centro, no corpo poético-literário de uma grande parte das suas criações, grupos de população invisibilizados do meio social, os agrupamentos RAP das décadas de 1980 e 1990 constituem hoje um património interessantíssimo para analisar uma parte da história contemporânea portuguesa do período pós-colonial.

O RAP constituiu ainda um relevante objecto de análise às lógicas de actividade verificadas entre os grupos culturais mais vulneráveis no âmbito discográfico e de entretenimento, especialmente aos seus paradoxismos. O  modo como estes actores e estas actrizes despontaram e como, apesar da crítica expressa nos seus discursos falados à conjuntura social e ao modelo de funcionamento das indústrias da música dialogaram e dependeram delas permitiu reforçar um questionamento mais lato sobre uma retórica por demais «romantizada» acerca deste pioneirismo.

Maze, foi um dos integrantes de Dealema — um dos primeiros grupos de RAP que nasceram nas cidades de Gaia e do Porto —, a faixa usada neste excerto de uma conversa maior, realizada no âmbito desta investigação, faz parte do primeiro fonograma gravado, com o título O Expresso do Submundo (1996).

Dealema seria fruto da junção dos colectivos Factor X (Mundo e Dj Guze) e Fullashit (Fuse e Expeão) aos quais se juntaria Maze e deixariam seis registos discográficos.

Nesta conversa informal fala-se, entre outros assuntos, de secundarizações, retóricas visíveis e invisíveis que têm orientado e difundido a primeira década de gravação sonora deste domínio sonoro e cultural em Portugal.

Fotografias

Helena Silva

Notas

Simões, Soraia 2018. « Fixar o (in)visível: papéis e reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989 - 1998) », Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 7, No 1 | -1, 97-114. Brasil.

Simões, Soraia. 2018. RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril. As margens, o centro, paradoxos e contradições do RAP em Portugal. Esquerda.net.

Biblio/fontes

1) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.

2) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.

1) RAPublicar. Editora Caleidoscópio 2017

1) RAPublicar. Editora Caleidoscópio 2017

2) Fixar o (in) visível, Editora Caleidoscópio 2019

2) Fixar o (in) visível, Editora Caleidoscópio 2019

 

Onde encontra as obras mencionadas:

Editora Caleidoscópio

Almedina

FNAC

Bertrand

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Liberdade e luta ideológica na revista Mundo da Canção, por João Vasconcelos e Sousa

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Liberdade e luta ideológica na revista Mundo da Canção, por João Vasconcelos e Sousa


por João Vasconcelos e Sousa [1]


O Mundo da Canção (MC) foi a primeira revista portuguesa exclusivamente dedicada à música popular. Fundada no Porto em 1969, e de periodicidade mensal, foi mantida por jovens estudantes que tinham em comum o gosto pelas sonoridades pop e uma visão crítica do Estado Novo. Como tal, desprezavam o “fatalismo” do fado e o “mau gosto” do chamado “nacional-cançonetismo”, estilos que conotavam com o regime. Em oposição, deram a conhecer à juventude do país os chamados «baladeiros» ou «cantores de intervenção», onde se incluíam nomes como José Afonso, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira ou Sérgio Godinho. O MC também divulgava as últimas «tendências» da pop estrangeira, como os Beatles, os Rolling Stones ou os Pink Floyd, e esteve nas primeiras edições do festival de Vilar de Mouros e do festival de Jazz de Cascais, ambas em 1971. Dois anos mais tarde, um número inteiro da revista foi apreendido pela PIDE e impedido de ir para as bancas. Este artigo aborda os dois primeiros números após o 25 de Abril de 1974, data que marca o início da liberdade de expressão em Portugal mas, também, o começo de disputas políticas insanáveis no MC.

 

Aquelas palavras com que poluíamos o papel eram sempre palavras cruzadas. Passavam bastante ao largo da verdade directa mas não mentiam. […] Quem servíamos? A verdade, ainda que camuflada. E só nós sentíamos como era duro combater com «armas» tão distantes do alvo que visávamos.

É desta forma que a revista Mundo da Canção (doravante MC) se refere, no primeiro número depois da queda do Estado Novo, às limitações até aí impostas pela Censura. Nesse artigo de Maio de 1974, assinado por Mário Correia, também se exalta o facto de ter passado a ser possível escrever “com uma liberdade desconhecida mas desejada”. Assim se celebrava, na publicação portuense fundada em Dezembro de 1969 por Avelino Tavares, a queda da ditadura de António de Oliveira Salazar e de Marcello Caetano.


Mas a conquista da liberdade de expressão também trouxe uma mudança de fundo na orientação da revista: até aí conotada com uma oposição apartidária, o MC radicaliza o discurso, na linha do momento político que se vivia na sociedade portuguesa, e passa a advogar a defesa do socialismo, propondo-se “construir uma revista popular”. É esse, aliás, o título do editorial do número 39, o primeiro escrito após a queda do regime, que abre com o então director António José Fonseca a citar Mao Tsé-Tung. Em forma de autocrítica, o jornalista declara que o MC “foi sempre uma revista reaccionária”, “onde uns poucos intelectuais pequeno-burgueses davam largas à sua imaginação provocatória”. Realçando que “a arte serve sempre uma determinada classe”, António José Fonseca considera que “é preciso subordiná-la a uma política justa” para “iniciar a construção de uma nova revista finalmente ao serviço dos interesses revolucionários da classe operária e das massas trabalhadoras suas aliadas”.


Esta nova orientação do MC foi, naturalmente, impulsionada pelo fim da censura, que “determinou a transformação radical do sistema de comunicação social” e abriu caminho a que o jornalismo passasse a estar, uma vez liberto das amarras do regime, “em conformidade com a orientação dos diferentes projectos políticos que se foram erguendo na sociedade”. As mudanças de fundo fizeram-se notar, antes de mais, logo na capa da revista, que já não trazia a habitual fotografia de um cantor ou grupo pop, mas sim um comunicado do recém-formado Colectivo de Acção Cultural, composto por nomes como José Afonso, José Jorge Letria, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira ou Luís Cília, e que advogava a paz imediata nas colónias, a “terra a quem a trabalha”, a luta “contra o imperialismo internacional” e a garantia de liberdade.


Talvez devido à azáfama dos dias pós-Revolução, o número 39 traz apenas quatro textos originais, sendo todos os restantes retirados de outras publicações. Ainda assim, um dos artigos produzidos pela redacção da publicação portuense dá bem conta da sensação de se poder escrever, pela primeira vez na vida, sem o sentimento de coacção imposto pela sombra da censura. Mais aliviado do que propriamente eufórico, o jornalista Mário Correia deixa um desabafo no texto com que se abre este artigo: ainda que não mentissem, as palavras do MC pré-Revolução “passavam bastante ao lado da verdade directa”, fazendo com que fosse “duro combater com «armas» tão distantes do alvo que visávamos”.

Número 39: cedido por Avelino Tavares durante o trabalho de pesquisa

Número 39: cedido por Avelino Tavares durante o trabalho de pesquisa


De resto, e apesar de, à primeira vista, a antologia de artigos de outras publicações, que o MC resolveu incluir neste primeiro número em liberdade, parecer limitar um pouco a percepção do que foi a revista durante este período, na verdade ela dá-nos uma ideia bastante precisa da realidade do jornalismo português durante estes dias iniciais do PREC. Desde logo, a vontade, expressa pelo jornal República - e partilhada pelo MC através da publicação do texto – de sanear os meios de comunicação social, e particularmente a rádio, acusados de colaborar com “um regime que acorrentou a informação”.


Entrado numa fase de grande destaque dado aos temas políticos, e marcado “por uma escrita adjectivada, por uma linguagem ideologizada” e, por vezes, “maniqueísta”, é sem surpresa que o MC inclui um texto, desta vez do Jornal de Notícias, que conota Amália Rodrigues com o fascismo. Até então, a revista tinha-se constituído como clara opositora do fado, mas esta era a primeira vez que estabelecia uma ligação explícita entre a mais famosa intérprete deste estilo musical e o regime do Estado Novo. Embora o artigo do JN ressalve que, segundo um porta-voz das Forças Armadas, Amália “não teve jamais qualquer ligação com a PIDE ou a DGS”, não deixa de a classificar como intérprete da “obra-prima do masoquismo nacional” – uma vez que, segundo o musicólogo Rui Vieira Nery, o fado tinha sido apropriado pelo regime e passado a exaltar frequentemente valores como “o nacionalismo e o bairrismo primários” ou os “méritos espirituais da pobreza”. O artigo reproduzido pelo MC lembra que Amália tinha dito, antes do 25 de Abril, que “não há ninguém mais português do que eu! Cheiro a sardinha…”, e conclui chamando-lhe oportunista e atirando: “Cheira a sardinha, D. Amália? Ou cheira a outra coisa?”. Ainda que, num contexto de mudança de regime, se entenda a reacção popular contra o fado, José Mário Branco, um dos mais proeminentes cantores de intervenção, já não pensa assim. À distância de mais de quatro décadas, o músico aprendeu a apreciar este género musical e justifica, numa entrevista feita no âmbito da tese de mestrado que originou este artigo: “no fado, como em tudo, há o bom, há o mau e há o assim-assim. Só que a ditadura, em geral, só nos mostrava o mau”.


Voltando a 1974 e ao MC, a revista contrapõe ao desprezo pelo fado a aclamação da chamada música de intervenção. Através da publicação de um artigo do República sobre o I Encontro Livre da Canção Popular, ocorrido no Pavilhão dos Desportos do Porto a 6 de Maio de 1974, a redacção mostra apoio incondicional a cantores como José Afonso, José Jorge Letria, Francisco Fanhais, Manuel Freire, ou os exilados políticos recém-regressados José Mário Branco e Luís Cília. Agarrando finalmente a oportunidade de poder exaltar a canção de teor político, que sempre protegera e divulgara nos tempos do Estado Novo, o MC cita um texto onde se fala de um público portuense em apoteose, “de punho cerrado no ar”, e a exibir “uma gigantesca bandeira do Partido Comunista Português” que “percorreu várias partes do pavilhão” e que se tornou, assim, prova física “de uma liberdade recentemente conquistada”. Na linha da “refundação cognitiva” que fez a imprensa do pós-Estado Novo recorrer frequentemente “ao clássico pastone, que mistura opinião e informação no mesmo texto”, é importante notar que o artigo não se limita a descrever os acontecimentos e toma um partido claro – por exemplo, ao declarar que o actor Vasco Morgado e o cantor Paco Bandeira, presentes no pavilhão, foram recebidos “como mereciam: com vaias e apupos”, por supostamente terem colaborado com o fascismo.


Crescem as tensões ideológicas na revista


No entanto, apesar de todos os jornalistas do MC partilharem os sentimentos de alegria motivados pelo fim do regime, o ambiente na redacção estava longe de ser harmonioso. A conquista da liberdade de expressão e de associação também contribuiu, no seio da sociedade portuguesa, para um extremar de posições relativamente aos diferentes projectos políticos defendidos para o país, e ao qual a revista também não foi alheia. No caso do MC, a disputa interna deu-se devido a divergências sobre qual o modelo de socialismo a defender, e colocou em conflito partidários do PCP e do MRPP. O número 39 já deixava antever algum mal-estar entre a redacção – por exemplo, quando António José Fonseca escreveu, no editorial já aqui citado, que ocupa “uma posição isolada” na revista, fruto “dos profundos antagonismos que me separam do restante corpo redactorial”, ou quando António Vieira da Silva declarou estar confinado à secção de correspondência da revista, e que a única razão que o fez não abandonar o MC foi o gosto de dialogar com os leitores. Mas, no número seguinte, a situação de ruptura tornou-se ainda mais evidente: em pleno período revolucionário, destacou-se um artigo de três páginas com o título “Mário Correia: Um miserável provocador”. O texto, assinado por António José Fonseca e Octávio Silva, coloca a dupla maoísta em confronto com Correia, militante do PCP, e dá bem conta da realidade vivida nas redacções – e na do MC em particular - durante este período histórico.


A situação que precipitou esta troca de acusações pública foi uma reunião, ocorrida em Agosto de 1974, em que participaram os cinco redactores de então e onde se discutiu o novo rumo da revista. Apenas surgiu uma proposta, vinda dos maoístas, que caracterizava o MC como uma revista feita por “ideólogos pequeno-burgueses” que traíam a luta de classes porque “exaltavam ideais neutros como o pacifismo, a lucidez [ou] a honestidade”, ignorando “a demarcação entre reaccionários […] e progressistas”. Também se acusava a publicação de desprezar o povo, ao desdenhar “dogmaticamente as suas manifestações de arte”, e de produzir textos onde sobressaía a “utilização de linguagem complicada”, que impedia a revista de “viver no seio das massas”. Perante este cenário, dois dos jornalistas – António José Campos e António Vieira da Silva - alegaram “falta de convicção” ideológica para fazer parte do novo MC e abandonaram o projecto.


Sobrou, portanto, Mário Correia, que num primeiro momento aceitou as condições. Tudo se alterou, contudo, no início de Setembro, quando o jornalista explicou ao director Avelino Tavares, por carta, que tinha reflectido e decidido, também ele, abandonar o MC, justificando com as “profundas e iniludíveis desavenças” que o separavam da dupla Fonseca/Silva. Pedindo ao director para informar os colegas da decisão, Correia acusava-os de terem adoptado uma “fachada revolucionária” quando, na verdade, não eram mais do que pequeno-burgueses e “farsantes a fingir fazer história”. Ironizando acerca da proximidade de António José Fonseca e de Octávio Silva ao MRPP ao chamar-lhes “marxistas achinesados”, Mário Correia considerava que a dupla vivia no conforto e que, por isso, não podia ter pretensões de falar pelo povo. Nesse sentido, concluiu com aquilo que considerava ser o quotidiano dos seus antagonistas: “fazer a revolução, sair para as ruas defender o povo e retirar para o conforto do lar burguês, recompondo-se da luta com marisco! Bonito!”.


Se, à distância de mais de quatro décadas, as acusações de Mário Correia podem parecer inauditas e até cómicas, a resposta de António José Fonseca e Octávio Silva não o é menos. Ambos reagem às acusações de forma crispada e classificam Correia como “provocador”, “racista”, “burguês” e “extremamente reaccionário”, considerando que o militante do PCP quer “apoderar-se do controle da revista” e “manter erguida a rota bandeira da opressão, do analfabetismo [e] da cultura podre da burguesia”. Apelando aos leitores para demonstrarem “o seu vivo repúdio perante as manobras contra-revolucionárias” do jornalista em causa, António José Fonseca e Octávio Silva concluem o artigo de três páginas em apoteose: “OS REACCIONÁRIOS DEVEM SER CASTIGADOS! APOIEMOS A IMPRENSA PROGRESSISTA! CALEMOS A VOZ AO MISERÁVEL MÁRIO CORREIA E A TODOS OS LACAIOS DA BURGUESIA! A LUTA CONTINUA! [sic]”.

Número 40. Cedido por Avelino Tavares. Luís Cilia na capa.

Número 40. Cedido por Avelino Tavares. Luís Cilia na capa.


Tendo em conta o tempo que nos separa do período histórico em que tudo isto se passou, é compreensível que a primeira reacção de quem lê esta discussão em 2018 se situe entre a incredulidade e, como já dissemos, até um certo divertimento. Contudo, estes números 39 e 40 do MC, ambos publicados em 1974, são um testemunho precioso acerca dos tempos do PREC, no sentido em que recordam aquilo que estava em causa no pós-Revolução dos Cravos. E a verdade é que, em Portugal, que Salazar descreveu como sendo um país de “brandos costumes”, discutia-se, escassos meses após a queda do Estado Novo, se o caminho era manter o modo de produção capitalista ou abraçar o socialismo – e, como o caso do MC tão bem demonstra, havia até debate ideológico sobre qual a melhor forma de construir a sociedade sem classes. As posições estavam tão extremadas que, por estes dias, o MC deixava a música para segundo plano e transformava-se num espaço de disputa política entre gente que, até bem pouco tempo antes, era camarada de redacção – e, é bom não esquecer, com um passado comum de oposição ao fascismo.


Batalha ideológica: se houve vencidos, também teve de haver vencedores


Todo este cenário aconteceu devido às “décadas de desinformação política, ideológica e cultural” durante o Estado Novo, antítese total da realidade que o 25 de Abril de 1974 inaugurou. Muito antes de se conhecer o desfecho do PREC, com a derrota das facções à esquerda do PS e a emergência da chamada “normalização política”, já a população – incluindo, como se constata, os jornalistas do MC – entrava num período de intensa luta ideológica, tantas vezes simplista e incoerente, fruto do estado de quase “virgindade cívica” que imperava em Portugal e de que fala o historiador António Reis, mas que abalou e pôs em causa os pilares da sociedade.


Não se nega, bem pelo contrário, que boa parte dos textos publicados no MC após o 25 de Abril são, como se viu, precipitados, maniqueístas, intolerantes e profundamente sectários – na linha, de resto, da “manifesta disposição psicológica de jornalistas e intelectuais no sentido de se distanciarem do passado recente”. Contudo, se é ponto assente que a revista era, por estes dias, um projecto marcadamente ideológico – e não se defende, neste artigo, que jornalismo e ideologia tenham de ser conceitos necessariamente separados – julgamos oportuno e até necessário colocar algumas questões.


Com o fim do PREC e a promulgação da Constituição de 1976, o MC continuou a ser uma revista com uma linha editorial marcadamente posicionada à esquerda, por oposição a publicações entretanto surgidas como o Musicalíssimo, o Música & Som, o Se7e ou, um pouco mais tarde, o Blitz (jornal). Num país que tinha encontrado na adesão à Comunidade Económica Europeia a grande razão de ser da sua existência pós-revolucionária, e que queria enterrar em definitivo o ano e meio conturbado em que se falou de socialismo, nacionalizações, ocupações e reforma agrária, a canção de intervenção foi deixando de ter espaço nas rádios, jornais e revistas. Uma das poucas excepções foi precisamente o MC que, até à extinção, em 1985, continuou a dar espaço a nomes como José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho. Nesse sentido, lança-se a pergunta: não terá essa progressiva exclusão dos “baladeiros” do espaço mediático sido também motivada por questões ideológicas? A este respeito, José Barata-Moura declarou, em 1978, que “o facto de a canção política […] não ter o lugar que merece na rádio e na TV é uma lacuna cultural extremamente grave e que tem muito a ver […] com a luta de classes”. E dois anos antes, em 1976, indagava:


A que horas podemos ser de ‘esquerda’? Pergunta do novo ‘marketing’ que se chama ‘pluralismo’ na rádio. Às horas mortas […] pode-se ser um pouco mais de esquerda, mas não muito. Assim, às quatro da matina, põe-se um pouco de José Afonso, Sérgio Godinho, Adriano, Letria […] e daí não vem mal ao ‘pluralismo’. Pelo contrário, ficamos bem vistos, com ‘dados concretos’ para apresentar em contestação, tal e qual como diz a técnica do ‘marketing’.


De igual modo, José Mário Branco também considerou – mais recentemente, em 2016 - existir uma “’macdonaldização’ da expressão artística”, no sentido em que as vozes críticas na música começaram, no pós-PREC, a ser substituídas pelo “diktat da produção disfarçado pela aparência de possibilidade de escolha”. Já José Afonso reagiu desta forma, ao ver o seu álbum Cantigas do Maio ser distinguido pelo Se7e, em 1978, como o melhor de sempre da música portuguesa:


A marginalização do canto de intervenção, que nem o fascismo conseguiu ou teve a coragem de impor, era o fim pretendido. Queriam, no meu caso, colocar-me na prateleira do museu. Mas de uma forma bonita e que sossegasse a consciência desses críticos cor-de-rosa, aliás, sociais-democratas. A forma encontrada foi a de prestarem um culto aparente a um indivíduo cuja actividade antes e depois do 25 de Abril eles próprios propositadamente ignoraram. […] Querem-me fazer uma festa de despedida onde, para gáudio deles, eu teria de dar voltas à pista, agradecer e, para maior prazer da assistência, retirar-me.


Conclui-se, portanto, lançando novas questões: se é verdade que o MC foi um projecto marcada e assumidamente ideológico, sobretudo durante o PREC, não terá sido também ideológica e premeditada a decisão de afastar dos media os cantores de intervenção a partir da segunda metade dos anos 1970? Não terá sido a chamada “normalização política” de 1975/76, no fim de contas, também o triunfo de uma determinada concepção ideológica, neste caso avessa áquilo que muitos dos chamados ''cantores de intervenção'' defendiam nas suas músicas e vida pública?


Mais do que dar resposta a estas interrogações, julgamos pertinente sobretudo formulá-las, no sentido de lançar o debate sobre se a escalada ideológica inaugurada em 1974 foi exclusiva dos sectores posicionados mais à esquerda, tal como diz a narrativa dominante, ou se, por outro lado, não terão existido dois pólos opostos, cada um com uma determinada concepção do panorama cultural e artístico, e ambos a disputarem o mesmo palco. Um deles saiu vencedor, e não foi o pólo em que se situava o MC. No entanto, o legado que a revista deixa é da maior importância para quem quiser compreender como a primeira publicação portuguesa especializada em música viveu aquela que é, ainda hoje, a última Revolução da Europa Ocidental.

 

 

* [1] para citar este artigo: Sousa, João Vasconcelos e, «Liberdade e luta ideológica na revista Mundo da Canção», plataforma Mural Sonoro https://www.muralsonoro.com/recepcao, 9 de Março de 2018.

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RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril: As margens, o centro, paradoxos e contradições (O Independente, Jornal Blitz), por Soraia Simões (parte II)

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RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril: As margens, o centro, paradoxos e contradições (O Independente, Jornal Blitz), por Soraia Simões (parte II)

 

RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril, parte II, por Soraia Simões de Andrade

[publicado originalmente no Esquerda Net]
 

A história do início do hip-hop em Portugal consolidou-se em tópicos que realçaram a sua racialização, a sua estigmatização social e a sua etnicidade. Neste período este enquadramento foi especialmente usado nas condições de exclusão  mencionadas na primeira parte deste artigo. Isso permitiu reforçar mecanismos de identidade que viriam a dar um maior enquadramento aos percursos biográficos da maioria dos/a pioneiros/a.

A notoriedade atribuída pelo hip-hop a um conjunto de realidades vividas no bairro foi dando sentido à causa e ao modo de viver próprios de uma juventude fortemente estigmatizada pela sociedade dominante (Campos: 2007) quer nos EUA como em Portugal. No entanto, quando o RAP deu os primeiros passos no seio editorial, de gravação e de espectáculos iniciou-se também uma retroalimentação com a cultura do centro, alguma de direita, ambivalente, que se tornou a cultura dominante nesses anos (Araújo: 2014), como tal a que difundiu o género com um alcance maior entre a comunidade jovem.

   

Pese embora o facto da contestação estar presente no arranque do hip-hop em território português, e no caso das músicas e poesias RAP ser a opção tomada por muitos, existiu paralelamente a criação de repertórios onde a conotação política ou ideológica não esteve tão presente. O que até se pode justificar facilmente pelo facto desta prática musical dentro desta «cultura urbana» se iniciar, à semelhança do que aconteceu nos EUA, na rua e nela se inspirar, e a rua condensar em si todas as realidades que estimularam e ultrapassavam os seus próprios imaginários criativos, como a discriminação racial (General D. 1994. Portukkkal é um Erro. EMI.), a exclusão social (Zona Dread. 1994. «Só queremos ser iguais». RAPública), o machismo (Abram Espaço. 1997. Djamal. BMG.), mas também a festa (Family. 1994. «Rabôla Bo Corpo». RAPública), o encontro (Black Company. «Nadar». 1994. RAPública), a partilha de referências musicais (Boss AC&Cupid. «Generate Power». 1994. RAPública) e a sociabilização (Black Company. Geração Rasca. 1995. Sony Music; Líderes da Nova Mensagem. 1997. Kom-tratake. Vidisco.) conseguida pela troca de experiências comuns (Simões: 2017).

Os principais actores estabeleceriam uma relação directa com os lugares de onde eram oriundos ou dos quais descendiam, reflectindo a sua experiência ou a do meio cultural onde se inseriram e afastando-se aos poucos do capital cultural americano, que lhes tinha sido referencial numa fase primeira. A reprodução de um estilo «americanizado», onde algumas realidades sociais retratadas se tocavam, próprios de um RAP ainda em gestação deu lugar a um recém-nascido RAP — específico, territorial —, que inscreveu a sua duplicidade nacional, as raízes, ou a natureza das suas lutas nas primeiras produções em forma de verso. Fê-lo de modo mais e menos claro (metafórico) registando as suas músicas, nomeadamente os seus repertórios poético-literários, ora nos quadros históricos onde permaneciam duras memórias colectivas, como os da Guerra Colonial e da Descolonização, ora no campo dos acontecimentos ou ocorrências provindos da vida no bairro ou (mesmo que na cidade) nas franjas mais vulnerabilizadas da, apelidada comummente pela imprensa deste período (1984 - 1998), «segunda geração». Nestas ocorrências, assuntos como o capitalismo vs as desigualdades sociais, ou a presença do corpo negro, do corpo imigrante, do corpo feminino — subalterno dos subalternos —, na sociedade portuguesa do pós 25 de Abril de 1974 ressoaram, conquistaram ouvintes e estimularam outros jovens em condições de vida ou de afirmação social semelhantes numa fase primeira, e numa fase posterior um conjunto de jovens da mesma geração destes sujeitos, sem uma relação aproximada a essas vivências ou experiências. Ao mesmo tempo que se introduziram o quimbundo (Tá-se Bem. Kussondulola. 1995. EMI), o crioulo de cabo-verde (Boss AC, Cupid, Djoek Varela, TWA ou Teenagers with Attitude, Nigga Poison, Chullage), sons (tambores africanos de modelos variados, batuque), vestuário africano (General D) e símbolos ou alusões a referências políticas locais e translocais conectadas com a luta contra o racismo mundial ou a Guerra de Libertação no caso português (Martin Luther King, Malcom X, Amilcar Cabral, Agostinho Neto).

Não era apenas uma nova expressão cultural, especialmente a partir da área metropolitana de Lisboa, que era criada no circuito cultural e social pós revolução era também um  lugar de difícil definição para estes jovens, que resultou naquilo que Fradique (2009) procurou definir como «in-between», um lugar de dupla descendência, que se afirmou igualmente como sendo uma nova «identidade cultural», através da qual emergiram novos repertórios musicais e que General D com os Karapinhas emitia no tema «Raíz Desenraízada» (Pé Na Tchon Karapinha Na Céu. 1995. EMI) cuja letra na sua primeira estrofe versa Sou filho sem nação/Sou segunda geração/ Eu sou aquele filho que sentiu a solidão/ Eu sou aquele homem que cresceu sem saber/ Se era africano ou se africano queria ser/ Boca, canhão,Palavra, munição/ Cresci, aprendi e me desenvolvi/ Mas raiz africana eu ainda trago em mim/ Mas raiz africana eu ainda trago em mim.

Ao mesmo tempo, na área metropolitana do Porto estruturou-se uma prática musical com contornos estéticos e sonoros semelhantes, embora os guiões quotidianos e/ou os repertórios literários dos seus primeiros actores fossem distintos dos de Lisboa (Mind da Gap: 1993, MatoZoo: 1995, Dealema: 1996). Não obstante as distâncias de natureza quer empírica como geográfica, a troca de ideias e de testemunhos encontrar-se-ia num contexto principal charneira entre o RAP feito em Lisboa e o que era feito no Porto —  um encontro de improviso em tempo real em Miratejo (freestyle) entre Ace (Mind da Gap, grupo do Porto) e vários grupos de rappers do sul, alguns que gravariam na colectânea RAPública (1994), no qual seria gravado um dos primeiros vídeos com General D e os restantes precursores, transmitido posteriormente em televisão (Pop Off: 1990 - 1993. RTP2).

Filhos e filhas na sua larga maioria de imigrantes, no limiar da insatisfação face à sua condição histórico-social encontraram brechas de esperança (Bloch: 1959. 483) mesmo num universo pautado por coexistências e paradoxos: por um lado, uma tentativa de afirmação na cultura popular e na indústria de gravação de discos e media, por outro lado uma retórica de resistência face a uma cidade em mudança e (in) aceitação lenta (s).

É certo que neste compasso (1986 - 1998) o RAP conseguiu reunir um conjunto de jovens,  praticantes e seguidores, de origens diversas e não exclusivamente afrodescendentes ou  imigrantes, mas também se tornou evidente, depois das entrevistas realizadas (Caleidoscópio: 2017), que para a maior parte dos/a visados/a a aceitação e o reconhecimento no meio RAP eram atribuídos a montante internamente, isto é, pelo próprio grupo ou «movimento», a quem se destacasse pelas qualidades líricas, rítmicas, técnicas (skills) e isso, muitas das vezes, esteve ligado à condição social e até ao espaço geográfico ao qual pertenciam (Simões. 2017. QR-Code. História Oral).

 

As margens, o centro, paradoxos e contradições (O Independente, Jornal Blitz)

 

Todavia, a afirmação no campo musical e cultural português esteve no arranque desta prática em Portugal, à semelhança do que sucedera nos EUA, fortemente marcada por uma conjuntura histórica. Cá, esse facto resultava, por um lado da permanência de um regime político (cavaquismo) que  no campo das artes e da cultura no geral não conseguiu reunir simpatizantes nem de uma fileira progressista nem de uma ala conservadora, por outro lado pelo desenrolar de um movimento cultural que cresceu nas margens e paulatinamente se afirmou no centro (hip-hop), ao mesmo tempo que um movimento do centro se afirmava gradualmente nas margens: o de uma indústria de novas publicações de conteúdos, especialmente audiovisuais (Correio da Manhã Rádio/CMR: 1983 - 1993, SIC: 1992, SIC Radical: 2001, TVI: 1993) e escritos — jornais, revistas e semanários (Jornal Blitz: 1984 - 2006, semanário O Independente: 1988 - 2006, Revista K: 1990 - 1993) —, que curiosamente se assumiu como  um contraponto de natureza conservadora, mas simultaneamente «culta» e «liberal», junto das esferas urbanas e elitistas, às publicações de esquerda que prevaleciam desde o pós 25 de Abril.

Uma «cultura de direita» assomava adeptos e leitores junto dos sectores culturais, da esquerda à direita, e tornou-se um dos canais privilegiados para a difusão do hip-hop, tendo-o destacado com traços tão dúbios como marcadamente díspares. A demonstra-lo para memória futura ficará a capa escandalosa do nr 277 do O Independente, publicado a 3 de Setembro de 1993, na qual Gonçalo Pires Marques dava nota (páginas 2 a 5) do «Relatório Secreto sobre os Gangs» ilustrando-o com o título «Alta Tensão. Serviços Secretos investigam gangs negros e violentos na margem sul. O relatório é assustador» e uns macacos desenhados, um deles vestindo uma camisola com a palavra «RAP», seguida cerca de dois anos depois de uma publicação do mesmo semanário onde se destacava a entrevista na redacção com o grupo Black Company na qual se promovia o disco Geração Rasca (1995: Sony Music) que sucedeu a edição da colectânea RAPública (1994: Sony Music) que os tinha já projectado, com o célebre tema «Nadar», para o campo mediático nacional. Esse disco contaria com produção de André Roquette e Tó Ricciardi, reconhecidos quer pelo meio social próximo em que estas publicações  gravitavam como cultural, e com um teledisco que apresentava a faixa um do respectivo disco de estúdio («Abreu») realizado por Edgar Pêra que à época colaborava com o O Independente.

INDEPENDENTE

   

O semanário O Independente teve um alvo claro, Cavaco Silva e o cavaquismo, que o levou a ser definido numa recente publicação como «um projecto político com um jornal de fora» (Valente; Santos Costa: 2015), mas foi, tal como o Jornal Blitz — e outros pertencentes ao grupo de comunicação Impresa (arranque com o jornal Expresso: 1972) fundado por Francisco Pinto Balsemão (um dos fundadores, no pós 25 de Abril, do PPD, actual PSD, com Francisco Sá Carneiro e Joaquim Magalhães Mota e ex primeiro ministro: 1981 - 1983) —, um produto e o resultado do contexto político em vigor, sem o qual possivelmente o impacto causado pelas suas presenças não teria sido tão eficaz.

Este foi o ambiente cultural em que os primeiros discos de RAP foram produzidos e difundidos em Portugal, período no qual os primeiros protagonistas do hip-hop em território nacional assinaram os primeiros contratos discográficos, com editoras já consolidadas (EMI Valentim de Carvalho, Sony Music, BMG, Vidisco) e deram as suas primeiras entrevistas. Um período que atravessou duas décadas (desde 1985/6 até ao fim da década de 1990).

 

O sítio onde eu estava era onde paravam todos os músicos e estes miúdos começaram a aparecer por ali, muitos deles com o Boss.

— Para além de fazer animação cultural tinha alguma ligação a eles como manager?

Não. Era amigo dos músicos que paravam no meu bar, como o Zé Leonel. Só mais tarde agenciei alguns destes rappers, miúdos e miúdas.

— O primeiro vocalista de Xutos (Xutos e Pontapés)?

Sim. Também me dava com o Zé Pedro, o Pedro Ayres de Magalhães, o Pedro Oliveira, o Rodrigo Leão ou o Miguel Ângelo. Entre outros.

— O pessoal que ia ao Rock Rendez-Vous também passava no seu bar?

O Rock Rendez-Vous já foi depois do meu bar. Mesmo antes disso. No início dos inícios de 80. Esta malta parava ali. Havia pessoas da Avenida de Roma, dos Olivais, de Almada e de outras bandas. Depois havia uns grupos de rock, de punk, parava tudo ali e dava- -me bem com todos. Aliás, eu e o meu saudoso amigo José Guiné (Zé da Guiné) devíamos ser das pessoas mais transversais da cidade de Lisboa.

— Mais cosmopolitas?

Também. Mas, em termos das “culturas urbanas” eramos muito transversais. Dava-me bem com alfarrabistas, jornalistas, desenhadores.

— E com músicos de todos os domínios da música popular, pelo que me conta. Do rock ao hip-hop.

Exacto. Tinha amigos da música clássica também.

— Estaria no epicentro dessas confluências? Por ser um homem da noite, estar pelo Bairro Alto, etc?

O Bairro Alto tem sido todos anos. Só agora é que deixou de ser.

— Há uns 10 anos?

Talvez, sim. Agora é outro Bairro Alto. Era o sítio da noite com a maior expressão em Lisboa, ao contrário do que muitas pessoas possam dizer.

— O que é que as pessoas “podem dizer”?

São outras pessoas e há outra geração, mais nova, porque os que iam nos anos 80 já têm 50 anos. Não há nenhum bar onde eles sintam hoje que estão em casa, como no tempo do Café Concerto, do Frágil, do Rock House, do Artis e a do Ocarina.

— Não se sentem identificados? Será pela idade ser outra e o tempo que a acompanha?

Eu acho que tem muito a ver com os locais em questão, porque eles já não existem.

— Mas também é uma altura em que há economia do espaço e dinheiro. Nunca tem uma ligação como manager. Isso vem depois? Quando começa?

Só mais tarde. Essa ligação deve ter começado em 1984/85, com uma banda que eu tive de música africana. Espere (pausa). 1985 ou 1987.

— O que o leva a aproximar-se destas pessoas que ainda não tinham uma representação discográfica nem cultural de alcance?

Já ouvia RAP desde os anos 70. Olhe, ainda ontem levei para casa um dos “discos sagrados” de The Last Poets. Desde esse tempo que ouço RAP. Gostando de música e sendo uma pessoa que estava no sítio certo, na hora certa e conhecendo a indústria discográfica, na altura em que a (colectânea/compilação) RAPública aparece já tinha duas ou três bandas, foi fácil agilizar tudo quando me fizeram o convite para organizar e reunir uma série de cantores.

— Quem lhe faz essa proposta? A Sony? O Tiago (Faden)?

É o Tiago Faden. Numa conversa tida no meu bar, como muitas que existiram. Em determinada altura eu digo-lhe que era pena não haver um projecto de hip-hop e RAP neste país. Ele calou-se e passado um tempo perguntou-me se eu queria fazer isso. Eu disse que queria e ele disse para me organizar. Cada banda teve dois dias para gravar, o que foi ridículo.

— Em estúdios diferentes.

Sim. E com produtores diferentes. Ninguém tinha preparação e nenhum produtor sabia o que era gravar hip-hop. Felizmente, para a causa, aparece o tema “Nadar” que, não sendo o melhor tema de hip-hop, torna-se a sua bandeira e consegue fazer com que aquilo tenha uma tremenda visibilidade. Apesar de tudo, a Sony, tirando o facto de não nos ter dado mais tempo e condições, era independente, ao contrário da Norte-Sul, onde estava o General D, que estava sempre dependente da Valentim de Carvalho. Eu acho que eles não acreditavam muito naquilo que deveriam e foi uma questão economicista.

— Não disponibilizar o estúdio por tanto tempo?

Não, de forma nenhuma. Escolheram um estúdio simpático e o técnico era bom homem e olhou para aquilo com alma e coração (pausa). Podíamos ter tido melhores condições e podia ter sido outra coisa.

— Recorda os impactos que a colectânea foi tendo nesses anos? Nas rádios, nos espaços culturais, na noite, etc?

É o disco do ano.

— Mas o que se reserva na memória colectiva nacional da RAPública é o “Nadar”.

Tem razão. É o “Nadar”. Mas, reserva-se outra coisa fantástica. São músicos a cantar e a escrever em língua portuguesa, quando se dizia que era muito difícil. Na altura, salvo algumas excepções, os grupos não cantavam em português. Os miúdos começaram a perceber mais tarde que não precisavam das editoras. O Boss AC e o grupo Mind da Gap existem por causa disso. Começou a existir a “cultura MTV” e aquilo começou a abrir. O “Nadar” é o tema que abre aquilo tudo.

 

excerto de entrevista a Hernâni Miguel (Simões: 46 - 48).


 

De facto, aqueles anos de 1993/94 foram importantes nesse sentido, porque ao haver uma crise antes, foi a primeira vez que as pessoas começaram a viver com alguns subsídios, havia algum Estado social e alguma redistribuição na área da saúde e da educação, como por exemplo os livros à borla. A mim o que me fazia impressão é que parecia que estava tudo bem. Eu estava muito bem porque estava numa multinacional e ganhava bem, não me preocupando com as condições sociais e materiais dos outros (pausa). Tinha um departamento para gerir, com uma dezena de pessoas, assim como um budget para fazer. Não estava muito disponível para experiências.

— Isso quer dizer que no contexto da multinacional em questão, produzir a colectânea RAPública podia ser uma  experiência, mesmo que falhasse? Ou seja, o que a motivou foi o facto da editora estar num momento financeiramente bom e o género estar a alcançar algum sucesso lá fora?

Isso mesmo. Mas eu tinha essa liberdade da empresa (Sony Music) para fazer algumas experiências.

— Mas esta colectânea foi uma experiência?

Eu diria que foi duas coisas (pausa). Do ponto de vista pessoal que me trouxe pouco. O facto de, hoje em dia, algumas pessoas estarem surpreendidas por eu ter sido o autor intelectual deste projecto, conta pouco. Eu fiz isto por motivação pessoal e interesse. Fui músico nos anos 80 (integrante do grupo Radar Kadafi — 1984 - 1987 —, como baixista, que se apresentou no Rock Rendez Vous uma década antes e deixou dois discos editados pela Polygram) e estas questões não me passavam ao lado. Também fiz isto por uma questão de oportunidade e negócio, mas o negócio foi sempre muito pouco.

— Mas porque estas pessoas estavam a ter expressão na cidade de Lisboa?

Não. É importante fazer esta ponte porque eu tive a noção desta situação quando falei com o Hernâni. O meu desafio foi embarcar neste projecto e ele ir à procura dos artistas. O Hernâni é que foi o verdadeiro produtor.

— O General D não entra na colectânea Rapública.

O General D não entrou porque estava a preparar o seu primeiro EP, que saiu no princípio desse ano. Lembra-te que o EP do General (Portukkal é um Erro) saiu dois ou três meses antes da Rapública. Ele deverá ter sido aconselhado pela editora (Valentim de Carvalho) para não entrar na compilação. Normalmente as editoras fazem isso. É uma questão de exclusividade. Se ele pode ser uma figura emergente e estiver exclusivo é melhor. Lancei o desafio ao Hernâni em 1993. Depois contactámos as pessoas, definimos um budget para gravação, escolhemos o repertório dos grupos e íamos para o estúdio gravar. Fez-se o processo normal. A situação que gerou sempre uma controvérsia foi a questão do tempo para os músicos gravarem.

— Já me disseram. Foram 2 dias e em estúdios diferentes.

2 dias? Por amor de Deus! Nos anos 80 gravei um disco em dois dias.

— Também eram as condições do momento. Mas eles não gravaram todos no mesmo estúdio de gravação. Gravaram em vários. Daí também se notarem as diferenciações sob o ponto de vista sonoro na gravação, não há equilíbrio nisso.

Sim, mas não foram 2 dias para todos. Tiveram muito tempo. A questão era que a maior parte deles eram personagens imberbes na música. Chegavam ao pé de mim a dizer que dois dias era pouco, mas se lhes desse mais não sabiam como o usar.

— Sem experiência de estúdio, queres tu dizer?

Principalmente sem grande experiência do ponto de vista musical. Tinham a experiência do ponto de vista do spoken word, mas não tinham capacidade de operacionalizar e informar sobre uma música, porque não tinham acesso às máquinas que eram caras.

— Alguns tinham a QY10. Outros usavam o computador, como no caso de Líderes da Nova Mensagem. À maquinaria mais cara não teriam com certeza...Mas, há outra perspectiva. Que alguns deles já me disseram também, a de que a indústria de gravação e as editoras em Portugal não conheciam naquela fase inicial RAP e por isso não sabiam como trabalhar um domínio daqueles, por não haver experiência a esse nível. Queriam que eles trabalhassem no mesmo 'molde' que grupos de pop rock...

As pessoas da Rapública usaram o RAP na sua forma original, ou seja, na versão negra do punk. Mais nada.

— O “Do It Yourself” e o faz tu mesmo com os recursos que tens. Uma fotografia do momento....

Sim. E rompe com as barreiras. Eu vejo que, no final dos anos 70, o RAP emerge nos EUA associado ao street art. É conjunto. O RAP apropria-se do punk, que tinha existido na Europa e transita para Nova Iorque. É a resposta negra a um insurgimento na sociedade, tal como o punk foi uma resposta branca. E é isso que o hip-hop já não é, nem nunca será.  Acho que a beleza do RAP está na sua dureza. Aquela geração de miúdos sentia uma grande revolta e necessidade de sair de um “colete-de-forças”. Nós sentimos isso com o contacto que tivemos com eles. Quando eu lhes perguntei o que eles queriam para a capa, um dos grupos disse que queria duas kalashnikov. A capa acabou por ser feita pela Célia, mulher do Hernâni. Havia um grupo ou dois no Porto, mas não achámos que eram significativos. Entendemos que isto era sobre a área metropolitana de Lisboa e que uma forma de conseguir mostrar uma nova música, que estava a ser feita, era através da tensão que ela poderia significar. A Rapública, contrariamente ao que dizem alguns branquelas que depois se meteram no movimento RAP e no hip-hop,  que foi um “falso tiro de partida”, a verdade é que foi um arrastão artístico. A única coisa que penou é que não tinha uma street art, com um mínimo de qualidade, que pudesse ser, com a parte musical, o match (ponto de partida). Foi isso que não conseguimos fazer e, mais tarde, começa a aparecer. Quando quisemos fazer o vídeo do “Nadar” vimo-nos aflitos para encontrar sítios icónicos. Precisávamos de sítios de street art e não havia. Os sítios que haviam eram de muito fraca qualidade, mais do que a própria música.

 

excerto de conversa com Tiago Faden (Simões: 66. QR-Code).


 

Fundado em 1988, tendo como directores Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas e subdirector Manuel Falcão, que tinha fundado quatro anos antes (Novembro de 1984) o Jornal Blitz, do qual no arranque fizeram parte também Rui Monteiro e Cândida Teresa (directora gráfica até ao fim da década de 90) e João Afonso, o qual permanecera apenas um ano na publicação, quer o semanário O Independente como o Jornal Blitz assinalaram, em extensas reportagens, e promoveram, em entrevistas e notas de opinião, o lançamento de discos e espectáculos de vários universos musicais de matriz urbana, o RAP não foi excepção.

 

O historiador António Araújo no decorrer de uma fundamentada  intervenção oral no colóquio «O estado das direitas na democracia portuguesa» (ICS-UL: 2012) questionava como pôde a direita ser liberal na economia e conservadora nos costumes, ou vice-versa? O resultado desta comunicação seria partilhado num longo ensaio (Malomil: 2014), no qual procurou traçar os itinerários socioculturais de uma cultura de direita que emergiu, tomou o poder e se foi fixando na sociedade portuguesa   desde o período colonial até à actualidade na imprensa e audiovisual, sobretudo.

Nessa abordagem aflorava de um modo explícito a natureza «iconoclasta, narcísica, com um sentido de superioridade intelectual, urbana, relativista nos costumes, liberal na economia, conservadora em política, diletante, hedonista, cosmopolita, terrivelmente snobe» que norteou, não todas as publicações, mas grande parte delas e, especialmente, o ambiente vivido nesse período.

Um dos exemplos dados no extenso ensaio, resultado da comunicação de Araújo, é o de Agostinho da Silva, que fora «descoberto» e convertido num personagem envolto por uma aura de misticidade e profecia «de espírito franciscano que sonhava com um Quinto Império e que nem sequer tinha bilhete de identidade». A transversalidade, a presença e a elevação, em distintos sectores políticos e ideológicos, da figura de Agostinho da Silva é parte de uma transverberação de posições, comportamentos e aparente (des) alinhamento do estatuto destes «novos intelectuais» que se vão afirmando na indústria de publicação de conteúdos escritos e audiovisuais. O individualismo em detrimento da sua inscrição «num grupo», que poderia ser vista como uma «cedência» ou como uma «perda de independência» (Araújo: 2014) marcou (ainda hoje marca) a notabilidade ou mediatismo dos principais protagonistas (opinion makers) destas publicações, mas antes de tudo o «estatuto» que almejavam. Serem «intelectuais» e ressentirem «a pequenez da terra onde tiveram a desventura de nascer» (Araújo: 2014). Aos poucos, verificaram que tinham alcançado «um lugar seguro no mercado nacional das ideias». Esse lugar, atribuído pela internacionalização dos seus percursos, resumia no entanto um paradoxo contínuo: o de uma confluência entre duas realidades à primeira vista contraditórias: o vanguardismo cosmopolita e o saudosismo nacionalista, que fez com que esta «direita urbana e sofisticada», com tendência para valorizar o «autêntico», o «antigo», o «nacional» (Araújo: 2014) permanecesse no poder, em vários sectores culturais (do humor ao jornalismo, entre outros) até hoje.

Apesar de tudo, por estas publicações passariam vários nomes e personalidades de quadrantes ora políticos ora socioculturais distintos mantendo-se ainda hoje esta ideia de que periódicos como os referidos eram consumidos da esquerda à direita. A qual seria, igualmente, confirmada pelos precursores do hip-hop durante as entrevistas realizadas (Simões: 2017. 61. QR-Code).

Pelo Jornal Blitz passariam nos primeiros anos da sua existência nomes como António Pires, António Sérgio, Luís Vitta, Manuel Cadafaz de Matos, Ana Cristina Ferrão, Rui Pêgo (que fora director do Correio da Manhã Rádio, uma extensão do diário que terminaria no ano 1993), ou os fotógrafos  Alfredo Cunha e Luís Vasconcelos e com o semanário O Independente colaboraram Agustina Bessa Luís, Vasco Pulido Valente, António Barreto, João Bénard da Costa, Maria Filomena Mónica, Pedro Ayres Magalhães, Rui Vieira Nery ou Edgar Pêra, entre outros.

Possivelmente sem o modelo de crescimento económico implementado durante o cavaquismo (2016: Rosas. debate FCSH NOVA) neste período e sem a adesão à CEE (Simões: 2017), esta elite que reforçou «o seu estatuto de superioridade devido à 'informação privilegiada' que detinha pelos seus canais próprios de acesso ao estrangeiro» (Araújo: 2014) não teria tido espaço e palco para se afirmar sob os pontos de vista cultural e social, talvez até o modo como o primeiro período do hip-hop em Portugal foi difundido nas massas não se tivesse verificado. Tal demonstra também que as peças e edições realizadas na época, mais do que fontes de um contexto social e político particular são uma extensão do modo de agir e pensar de um conjunto de agentes de poder no momento em que os/a primeiros/a rappers se apresentaram à sociedade portuguesa, não devendo significar mais do que isso e demonstrando a necessidade que há em interpretar essas fontes cruzando-as, no recurso à história oral, com as dos intervenientes vivos no campo musical em questão.

 A ideia de privilégio de uma elite que «informa» e «cultiva» o gosto do «povo» (Araújo: 2014) permitiu um consenso que firmou o cavaquismo e foi favorável às suas maiorias absolutas.

 Neste período, do mesmo modo que semanários como O Independente, foram contribuindo para o desgaste político do cavaquismo, e General D com os Karapinhas 'cantavam'  «Cavaco quer kumbu*», alimentou-se o lado recreativo e uma percepção de bem-estar tangível e intangível entre classes e grupos distintos da sociedade – «das classes médias e médias-altas até à juventude das mais variadas origens sociais» (Araújo: 2014) –,  que foi relevante para os sucessos políticos de Cavaco Silva.

O RAP foi talvez das práticas musicais de matriz urbana que, ironicamente, nos primeiros anos da sua existência mais se tornou um produto  daquilo que censurou: o modus operandi das indústrias musicais e de publicação e do contexto social e económico em questão. Porque deles dependeu e com eles negociou modos de acção e impacto na cultura popular, num momento em que o estúdio ainda não estava no computador e a (inter) dependência do processo (gravação, promoção, difusão, aceitação) era mais notória. Talvez por isso poucos/a desse primeiro grupo que nesta época se afirmou hoje resistam.

 

Notas

parte I do artigo, Esquerda Net, Cultura.

*kumbu: dinheiro.

ARAÚJO. António. «A Cultura de Direita em Portugal». Fevereiro de 2012. Colóquio O estado das direitas na democracia portuguesa. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Lisboa. Consultado texto que suportou a intervenção oral em 17 de Janeiro de 2014 no blogue Malomil.

BLOCH. Ernest. 1959. O Princípio Esperança em 3 volumes. Sujet-objet. 483.

CAMPOS. Ricardo Marnoto de Oliveira. 2007. Pintando a cidade. Tese de Doutoramento. Universidade Aberta. 10.1.4.

FRADIQUE. Teresa. 2003. Fixar o movimento: representações da música rap em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

ROSAS. Fernando. RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril. coordenação: SIMÕES. Soraia. Ciclo de debates projecto RAPortugal 1986 - 1999. FCSH NOVA. Setembro de 2016.

SIMÕES, Soraia. 2017. RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada 1986 - 1996. Editora Caleidoscópio.

VALENTE, Filipa, COSTA, Filipe Santos. 2015. O Independente. Edição Matéria Prima.

 

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Rui Júnior (Tocá Rufar)

Rui Júnior (Tocá Rufar)

113ª Recolha de Entrevista
Quota MS_00096

 

Rui Júnior nasceu em Vila Nova de Gaia no ano 1956.

Iniciou o seu trabalho discográfico no ano 1983 com o fonograma Ó Que Som Tem? seguido de Ó Tambor (1996), mas é com o projecto de percussões Tocá Rufar criado  para apresentar um espectáculo na Expo'98 integrado na Programação Prioritária Nacional, que se destaca e inicia um caminho centrado no instrumento ao qual  tem dedicado a maioria do seu tempo e do percurso: o tambor e a prática do bombo em especial.

Foram vários os espectáculos com os quais colaborou e os discos nos quais participou, com músicos/a compositores/a como José Mário Branco, António Pinho Vargas, Sérgio Godinho, Jorge Palma, Amélia Muge, Janita Salomé, entre outros/a.

Excertos dos seus álbuns foram utilizados pela Companhia Nacional de Bailado em Canto Luso, com coreografia de Dave Fielding, Rui Lopes Graça e Armando Maciel (1998) ou em Mazurca Fogo  pela Tanztheater Wuppertaler , com coreografia de Pina Bausch para o Festival dos 100 dias integrado na Expo'98.

É o  responsável pela viragem significativa no meio musical português que a prática de bombos alcançou. Condenada ao esquecimento, ou às suas funcionalidades e especificidades nas regiões do Douro, Fundão (Lavacolhos) ou Beiras ela ressurgiria a partir da dinâmica deste grupo, na área metropolitana de Lisboa, e sem o pendor quase exclusivamente masculino que a caracterizara anteriormente. No final da década de 90, após a participação no palco Sony da Expo 98, o projecto que se tornou também uma Associação Cultural reuniu um conjunto de tocadores e de tocadoras e inaugurou um capítulo novo na história do bombo em Portugal, que trouxe até si cada vez mais jovens, tornando-se um satélite e/ou fonte de referência para um conjunto de outros grupos que se foram criando, primeiro na margem sul, sede da Associação Tocá Rufar (Seixal), e depois um pouco por todo o país, reanimando outros agrupamentos ou colectivos e a actividade de alguns construtores, entidades dinamizadoras e praticantes.

Fotografias: Alicia Mota

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