RAPromoção e publicações de conteúdos nos anos 1990

Comment

RAPromoção e publicações de conteúdos nos anos 1990

A terceira sessão do Ciclo de Conferências e Debates no âmbito do projecto RAPortugal 1986 - 1999 aconteceu no dia 11 de Outubro no LARGO Café Estúdio. A sessão teve como título ''RAPromoção e publicações de conteúdos nos anos 1990''. À conversa com Soraia Simões estiveram  José Mariño (autor durante este período dos programas Novo RAP Jovem e ReptoDjoek Varela (rapper que inicia o seu percurso durante este período cantando maioritariamente em crioulo de Cabo Verde) e António Pires (chefe de redacção do então jornal Blitz onde se iniciou em 1986 e permaneceu durante vinte anos).

Ciclo de Conferências e Debates no âmbito do projecto RAPortugal 1986 - 1999 financiado pela Direcção-Geral das Artes
Reportagem fotográfica de Pedro Gomes Almeida 

Nesta sessão falou-se da relação entre a promoção e divulgação de conteúdos no domínio da rádio e da imprensa nacional e o RAP e ''cultura hip-hop'', de relações de proximidade e resistência.

 

As sessões anteriores, temas e convidados, podem ser consultados aqui: http://www.muralsonoro.com/qd-intro

 

 

Comment

RAProduzir: da QY10 ao estúdio de gravação

Comment

RAProduzir: da QY10 ao estúdio de gravação

A segunda sessão do ciclo de Conferências e debates do projecto RAPortugal 1986 - 1999 decorreu no Centro Cultural Juvenil de Santo Amaro - Casa Amarela, no Laranjeiro, dia 28 de Setembro pelas 18.00. Acarinhado e apropriado pela comunidade juvenil, o Centro Cultural Juvenil de Sto. Amaro é também conhecido por Casa Amarela, nome adoptado pelo público em geral. A sessão teve como tema "RAProduzir. Da QY10 ao estúdio de gravação".  Participaram na sessão, a convite de Soraia SimõesFrancisco Rebelo (Cool Hipnoise) e Virgilio Varela (Double V/Grupo Family, Colectânea RAPública, 1994). Além  do enquadramento histórico inicial a cargo de Soraia Simões, houve demonstrações e partilha de algumas das possibilidades, limitações e histórias que a máquina "rainha" para um grupo de jovens rappers no início da década de 90 ofereceu.

Evento aqui

A sessão de abertura deste ciclo decorreu no pátio da FCSH no passado dia 7 e teve como convidados Lince (grupo New Tribe, na colectânea RAPública de 1994), Fernando Rosas (IHC/FCSH NOVA), José Falcão e a moderação de Soraia Simões (IHC/FCSH NOVA, Associação Mural Sonoro). 

Comment

CONFERÊNCIA, Biblioteca Municipal de Penacova - Novos Processos de Preservação e Divulgação do Património Imaterial, 1 de Outubro, 11.45, Soraia Simões

Comment

CONFERÊNCIA, Biblioteca Municipal de Penacova - Novos Processos de Preservação e Divulgação do Património Imaterial, 1 de Outubro, 11.45, Soraia Simões

1 de Outubro - 11.45, Biblioteca Municipal de Penacova - Novos Processos de Preservação e Divulgação do Património Imaterial, Comunicação de Soraia Simões "Mural Sonoro: Memórias e sons locais sem paredes"

Info:

A Câmara Municipal de Penacova tem a decorrer desde 1 de Julho o ciclo de Conferências sobre o Património Imaterial de Penacova. A 1 de Julho a conferência versou sobre literatura oral, no dia 5 de Setembro sobre Museus e Património Cultural Imaterial.

Soraia Simões (Instituto de História Contemporânea - FCSH NOVA, Associação Mural Sonoro) é uma das conferencistas convidadas pela Vereação da Cultura da Câmara Municipal de Penacova para a Conferência de dia 1 de Outubro sobre música, arquivos e memória.

Apresentará uma comunicação de cerca de 40 minutos com o título ''Mural Sonoro: Memórias e sons locais sem paredes''.

Convidamos quem andar por perto este sábado a assistir. A entrada é livre. Mais informações: Largo Alberto Leitão, 5 | 3360-191 Penacova www.cm-penacova.pt | geral@cm-penacova.pt

Comment

BONS SONS'16, Viver a Aldeia!

Comment

BONS SONS'16, Viver a Aldeia!

BONS SONS'16

Os parceiros da Associação Mural Sonoro já aí com um belo cartaz. De 12 a 15 de Agosto. 10 anos dando espaço à música e aos autores que produzem em Portugal. Incentivando outros a mudar o foco das suas programações.

 

BONS SONS'16 12 - 15 de Agosto

Sugestão para gente que gosta de ouvir o que é produzido por cá em ambiente bucólico e interessante.

Relembramos nesta imagem a passagem da Associação Mural Sonoro pelo auditório do BONS SONS'15 com o ciclo ''Conversa ao Correr das Músicas''. Aqui Manel Cruz numa conversa interessante com Soraia Simões, coordenadora do ciclo (http://www.bonssons.com/bs2015/).

 

Este ano, dado o volume de trabalho a decorrer no projecto ''RAPortugal 1986 - 1999'' (Fevereiro 2016 - Março 2017), não nos é possível estar presente com o mesmo ciclo. Porém, estamos na mesma com os nossos parceiros naquele que é dos ajuntamentos (nem eles nem nós usamos o termo ''festival'' quando nos queremos referir ao trabalho desenvolvido pela Associação de Cem Soldos - Tomar) que melhor interiorizam a relação entre a produção cultural relevante, a musical em concreto, ''o local sem paredes'' como dizia Miguel Torga. Naquele que foi o primeiro, há uma década, a juntar em 4 dias o mais interessante do que é produzido cá em domínios musicais, culturais e sonoros diversos, procurando não se repetir nas escolhas no ano seguinte de modo a poder trazer o que de melhor se faz até à aldeia, e servindo de inspiração a outros que depois deles, um pouco por todo o país, começaram a surgir dando espaço nos seus cartazes exclusivamente à música e aos autores que realizam e produzem os seus trabalhos cá dentro.

Força ao BONS SONS'16 e à persistência do Luis Sousa Ferreira e dos seus companheiros (equipa) nesta iniciativa que já conta com 10 anos de actividade, contribuindo para o desenvolvimento local e da aproximação entre os vários espaços físicos, culturais e musicais que formam a Música que tem sido feita neste país.

 

Comment

DIPANDA'75, Documentário

Comment

DIPANDA'75, Documentário

Dipanda'75 é um projecto documental (1) que pretende retratar um período musical muito particular na história da música que foi feita em Angola.

 

Documentário de Alexandre Nobre, fotógrafo e documentarista angolano, em homenagem ao pai, militante de um dos movimentos independentistas africanos, com consultoria e ajuda no argumento da investigadora do Instituto de História Contemporânea da FCSH NOVA Soraia Simões, em curso (2017).

Iniciado há quase 10 anos por Alexandre Nobre o trabalho de campo para este projecto em Angola. Título Dipanda'75.

«Dipanda'75» é um projecto documental que pretende retratar um período musical muito particular na história da música que foi feita em Angola. 

No ano de 2007, na cidade de Luanda, recolheram-se dezenas de depoimentos (de músicos e compositores a historiadores e diplomatas angolanos que marcaram de modo explícito este período), registos de imagens de arquivo, de arquivos pessoais e estatais fonográficos (Rádio Nacional de Angola), dos lugares que marcaram esta história (Muxima, musseques, entre outros). 

Este Filme abrange o período que antecede a data da independência de Angola. Foca a música popular de carácter intervencionista. Num período que vai da década de quarenta até à independência de Angola.

A Música Popular, no domínio da «canção de protesto», enquadrada na luta de libertação de Angola, teve um papel de afirmação, mobilização e confrontação com o antigo regime.

A música desenvolvida nesta altura, ao utilizar línguas autóctones, o quimbundo, umbundo, quicongo, bem como os papéis fundamentais da língua oficial e de Liceu Vieira Dias ou N´Gola Ritmos, a evolução técnica e musical a partir das músicas tradicionais, são algumas das características afloradas ao longo deste projecto documental.

Pretende-se que seja a música, as letras das músicas, a contarem a história. Em conjunto com o testemunho de alguns músicos intervenientes neste processo, procuramos construir uma narrativa documento sobre este momento de importância vital para o povo angolano.

Não sendo um documentário político, a temática do documentário envolve um período de grande actividade política e partidária, a qual não se pode alhear de toda a movimentação partidária que se gerou. Não tomando partido, cinge-se a actividade partidária a factos. Cabe a cada um interpretar como entender.

(1) Blogue do Projecto: http://dipanda75.blogspot.pt/ e  Página do Projecto no Facebook: https://www.facebook.com/DIPANDA75
Equipa
Equipa
Autoria, Fotografia, Realização: Alexandre Nobre
Argumento: Soraia Simões
Montagem; Maria Joana
Recolhas fase 1 e 2 em Luanda: Alexandre Nobre (fase 1 e 2), Luís Moreira (fase 2), Arlete Leandro (fase 1 e 2), Transcrição de entrevistas e de formato analógico para digital: António Ferreira
Produção: Associação Mural Sonoro

Contextualização histórica, Narração, Textos  Blogue, Textos no Facebook: Soraia Simões

Registo IGAC, Junho de 2015

Comment

Janelo da Costa (autor, músico, Kussondulola)

Comment

Janelo da Costa (autor, músico, Kussondulola)

111ª Recolha de Entrevista
Quota MS_00094

                                                                                                


 

2015 Perspectivas e Reflexões no Campo

Fotografias: Alexandre Nobre

Expressões usadas:

«kumbu»: dinheiro

«tá-se bem»: na paz

«baza»: foge, desaparece

«kambuta»: Pessoa baixinha

«pancos»: sapatos

«mauas»: óculos

«mauanas»: óculos escuros

«quedes»: ténis ou sapatilhas

«chwinga»: pastilha elástica

«kiquache»: pão

«parro»: relógio

 

Comment

RTP - «Extrema - Esquerda: Porque não Fizemos a Revolução?»

Comment

RTP - «Extrema - Esquerda: Porque não Fizemos a Revolução?»

Foi ontem , 24 de Novembro de 2015, lançado o Portal “Extrema-esquerda – porque não fizemos a revolução?”, do qual o Mural Sonoro é parceiro.

 

O site “Extrema-esquerda – porque não fizemos a revolução?”, cujo objectivo é contar essa história, através dos depoimentos dos diversos participantes nesse vasto movimento foi ontem lançado pelas 17h no Museu do Aljube - Resistência e Liberdade. Trata-se, assim, de um repositório de história oral, apoiada também numa recolha de documentação. Ao mesmo tempo, conta-se com a participação de todos os interessados em contribuir para o crescimento do site, enviando depoimentos e documentos.

 

Este é um projecto desenvolvido pela RTP, em parceria com o Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, com o Mural Sonoro e com o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, que assume um papel fundamental na garantia do rigor histórico.

Soraia Simões - RTP

Comment

Palestra proferida no I Encontro «Semba Samba», por Amanda Palomo Alves

Comment

Palestra proferida no I Encontro «Semba Samba», por Amanda Palomo Alves

por Amanda Palomo Alves*

Palestra proferida no I Encontro Semba Samba.

Rio de Janeiro

“Angolano segue em frente”: a canção urbana de Angola do século XX e as novas possibilidades de pesquisa e investigação histórica.  

Prezados colegas,

Para dar início à nossa conversa, eu gostaria de dizer que do meu ponto de vista, toda pesquisa revela muito de nossas vontades e inquietudes, então, fiquei me questionando: como poderia começar esta fala? E cheguei à conclusão de que a melhor maneira,  talvez, seria recuperar um pouco a trajetória da pesquisa e minhas principais motivações na escolha do tema.  De imediato, já posso afirmar que durante a minha breve trajetória acadêmica, história e música andaram sempre de mãos dadas. No doutorado, por exemplo, busquei apontar novos caminhos para a investigação da história recente de Angola. A pesquisa intitulada “Angolano segue em frente: um panorama do cenário musical urbano de Angola entre as décadas de 1940 e 1970” teve a cuidadosa orientação do Prof. Marcelo Bittencourt, foi defendida recentemente na Universidade Federal Fluminense e sinalizou um interesse particular, que tomou forma logo após a finalização de meu mestrado, em 2010, na cidade de Maringá. 

Na verdade, o tema da pesquisa começou a ser desenhado já em 2009, quando estive pela primeira vez no Rio de Janeiro a fim de fazer a minha pesquisa de campo e entrevistar o cantor e compositor brasileiro, Tony Tornado. Como nós sabemos, Tony Tornado tem uma história importante no cenário musical e político brasileiro dos anos 1970. Durante a entrevista ele me revelou que um dos países por qual passou, na época do exílio, foi Angola.  Não por acaso, uma de suas composições, “Manifesto” – presente no álbum “Alma Negra”, de 1988 - fala justamente da luta pela independência no país.  Fiquei com essa canção durante muito tempo na minha cabeça, sobretudo, porque eu desconhecia a história de Angola e, como a curiosidade é o que nos move e é, também, um dos motores da história, decidi dedicar a minha pesquisa de doutorado em compreender um pouco da história desse país e escolhi como fio condutor, a canção urbana.  

Apesar de reconhecer a importância e valorizar as fontes disponíveis no Brasil, uma viagem a Angola tornou-se indispensável, até mesmo para um melhor encaminhamento da pesquisa. Assim, durante a minha curta, mas, frutífera, pesquisa de campo, realizada em Luanda entre os meses de outubro e novembro de 2013, pude consultar parte do acervo do Arquivo Histórico Nacional de Luanda; visitei e pesquisei parte do acervo da Rádio “Vial”; realizei entrevistas com músicos, compositores, jornalistas, radialistas e produtores culturais. 

A coleta e a análise do material que tive acesso durante a viagem me permitiu perceber que a música urbana de Angola passou por diferentes fases em sua história, sobretudo no decorrer da segunda metade do século XX. Todos esses apontamentos me levaram a compreender que a canção oferece um conjunto de possibilidades de investigação particularmente rico. E mais: que toda canção está inserida em uma historicidade específica e se evidencia pelo contexto social que a incorpora e a identifica. Neste sentido, eu gostaria de destacar a importância e a preocupação de vários escritores e poetas angolanos em recuperar a tradição oral do passado. Ora, recuperar o patrimônio cultural africano que, como sabemos, estava condicionado pelas autoridades coloniais ao esquecimento, e construir uma visão nacionalista da cultura foram algumas das formas encontradas para driblar a censura e as duras imposições daquele contexto histórico. 

Em 1950, surge o “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola” (MNIA). Uma das características fundamentais da poesia do movimento era ser uma poesia social. Nesta perspectiva, destaco textos como “Muimbu ua Sabalu” (“Canção de Sabalu”), de Mário de Andrade. Referencio este poema, em especial, porque foi uma importante iniciativa de utilização integral da língua quimbundo, e nós não podemos esquecer que as línguas nativas de Angola foram marginalizadas e marcadas com o “selo da inferioridade” durante o período colonial. 

De modo geral, o poema retrata o sofrimento de uma mãe que chora pelo desaparecimento do filho, enviado como mão-de-obra forçada para as plantações de São Tomé. Alguns versos da letra da canção nos informam: Nosso filho caçula/Mandaram-no pra São Tomé/Não tinha documentos/Nosso filho chorou/Mamã enlouqueceu/ Mandaram-no pra São Tomé/Nosso filho já partiu/Partiu no porão deles/Mandaram-no pra São Tomé /Cortaram-lhe os cabelos/Não puderam amarrá-lo/ Mandaram-no pra São Tomé/Nosso filho está a pensar/Na sua terra, na sua casa/Mandaram-no trabalhar/Estão a mirá-lo, a mirá-lo/ Mamã, ele há de voltar/Ah! A nossa sorte há de voltar/Mandaram-no pra São Tomé./Nosso filho não voltou/A morte levou-o / Mandaram-no pra São Tomé (Tradução disponível no site casacomum.org).  

O poema foi gravado por Ruy Mingas, no CD “Memórias”, de 2006, e por Bonga, no álbum “Angola 72”. 

O empenho dos envolvidos com o movimento se torna ainda mais expressivo se pensarmos que a palavra escrita chegava, naquela época, a uma parcela ínfima da população de Angola, ademais, o índice de analfabetismo na colônia era muito elevado. Para vocês terem uma ideia, de acordo com o Anuário Estatístico de Angola – documento de 1958, o número de analfabetos (entre negros e mestiços) representava quase 97% da população total do país. Assim, musicar poemas ou, ainda, dar ao texto literário, harmonia, melodia e ritmo foi o caminho encontrado por alguns dos poetas da chamada “geração de 50” para que seus textos pudessem atingir de maneira direta a população, sobretudo, a população não alfabetizada. Um exemplo deste esforço pode ser percebido no poema “Castigo pro comboio malandro”, de Antônio Jacinto, porque existe uma tentativa do autor em assumir os recursos que valorizam a sonoridade, seja pelo uso da mistura das línguas portuguesa e quimbundo, seja pela repetição de palavras ou pelo uso intencional de onomatopeias. Todos esses elementos, somados, contribuem para dar “harmonia e ritmo” ao poema, auxiliando na percepção do leitor-ouvinte que passa a compreender de outra maneira aquela poesia. Importante lembrar que “Castigo pro comboio malandro” foi gravado por Fausto Bordalo Dias no álbum “A preto e branco” (1980’s). 

Sabemos que os múltiplos saberes nas sociedades africanas são apreendidos por meio da palavra, da oralidade. Aliás, como explica o estudioso africano Amadou Hampâté-Ba as sociedades africanas são “sociedades da palavra” e o papel socialmente integrador da  música permaneceu como um aspecto característico da vida cultural em África. O aprendizado musical encontra-se, neste sentido, inscrito na memória e é transmitido oralmente, de geração em geração. E é neste contexto que eu insiro o surgimento e a atuação do emblemático grupo angolano “N’gola Ritmos” no fim dos anos 1940. 

Jorge António, diretor do documentário “O lendário tio Liceu e os Ngola Ritmos” explica que o grupo surge, não apenas, num contexto político muito particular, mas ele aponta que seus integrantes fizeram, sobretudo, um trabalho de “antropologia musical”, ao recuperarem as canções populares e tradicionais de Angola e dando-lhes um novo arranjo. Nesta perspectiva, a atuação de Liceu Vieira Dias foi altamente expressiva, pois ele assumiu a tarefa de pesquisar e recuperar as tradições musicais de Angola. Posso afirmar que Liceu buscou fazer em Angola o que J. e Alan Lomax buscaram fazer no sul dos EUA e Mário de Andrade aqui no Brasil, por exemplo. 

Paralelamente aos seus trabalhos de investigação musical, Liceu Vieira Dias fundou a orquestra “Ritmo Tropical” e, pouco depois, nos anos 1930, o “Grupo dos Sambas”. 

Todos os anos de pesquisa desenvolvidos em grupos anteriores influenciaram na formação de seu novo conjunto, o “N’gola Ritmos”. 

A minha opção em destacar o grupo e Liceu Vieira Dias se deve ao fato de eu julgar proeminente sua posição de liderança naquele contexto. O grupo elaborava seu  repertório de maneira singular, valorizando canções de origem popular, compostas, na maioria das vezes, na língua quimbundo.  Algo a destacar, também, é que o grupo se apresentava em vários lugares, mas, de modo especial, nos musseques e bairros suburbanos de Luanda (lembro que o termo musseque significa “lugar de areia” e com o tempo passou a designar os bairros pobres com casas feitas, geralmente, de papelão e lata). 

A performance e o modo de cantar do grupo também são bastante peculiares. Em relação ao canto africano, o etnomusicólogo Kazadi Wa Mukuna nos explica que existem alguns cantos que são assumidos apenas pelo solista; outros, são entoados em uníssono pelo grupo e existem, ainda, aquelas formas de cantar divididas entre o solista e o coro, onde o solista entoa a melodia e o grupo a completa. Este é o chamado de canto responsorial (ou execução antifônica), uma forma de cantar característica de vários povos da África e foi uma forma de cantar bastante utilizada pelo grupo “N’gola Ritmos”. 

O “puxador”, cantador ou mestre é designado como o responsável pelo canto inicial e o coro pode ser acompanhado por instrumentos musicais. A canção “N’birin Birin”, interpretada pelo grupo, é um típico exemplo desse modo de cantar. A música foi gravada, também, por Ruy Mingas, sobrinho de Liceu Vieira Dias, no CD Memórias; pelo filho do Liceu, Carlito Vieira Dias no álbum As vozes de um canto e, se não me engano, o músico Waldemar Bastos também a gravou. 

Cumpre frisar, também, a presença da dikanza, um instrumento típico de Angola. Grande parte do repertório do “N’gola Ritmos” inclui a utilização do instrumento, sobretudo, na performance de Fontinhas, com “N’zaji”. Todas essas características do grupo que acabei de mencionar se tornam ainda mais relevantes se nós lembrarmos que em meados dos anos 1940 e 1950, as canções e as línguas tradicionais africanas eram rejeitadas pelo sistema colonial e vistas como sinais de uma cultura não civilizada. 

Com o passar do tempo, como não poderia deixar de ser, o grupo passou a ser visto com “desconfiança” pelas autoridades coloniais, sobretudo, porque alguns de seus membros estavam politicamente envolvidos com o Movimento para a Independência de Angola (MIA) e, também, com o trabalho de panfletagem. O primeiro passo, então, foi o de afastar os componentes do grupo: Fontinhas foi transferido para o Moxico, em 1957; Zé Maria afastado para o Lubango e, logo depois, Amadeu Amorim e Liceu Vieira Dias foram presos pela então polícia política portuguesa, a PIDE. A partir daí, o “N’gola Ritmos” entraria numa outra fase. 

É importante frisar que neste contexto – meados dos anos 1960 - ganha força as ideias do lusotropicalismo e a chamada ação psicossocial. Através da defesa da ideia de uma colonização não racista, os ideólogos do Estado Novo passam a apresentar o período de colonização em África como resultado de uma relação harmoniosa entre portugueses e os povos nativos das colônias. Foi desenvolvida uma agenda de entretenimento e diversão voltada às populações da província. Assim, a canção, a radiodifusão, a gravação de discos e programas de variedades, como “Aquarela Angolana” e o “Dia do trabalhador” (Luís Montez), foram instrumentos utilizados pelos agentes da ação psicossocial. 

Durante os anos 1960 (e início da década seguinte), a programação radiofônica estaria voltada, quase exclusivamente, à transmissão de canções de músicos de Angola, inclusive, a maioria dos músicos que entrevistei em Luanda afirmou que até o advento da independência era natural gravar discos. 

Para construir uma “nova imagem de si”, o estado colonial passa a exaltar a existência de sociedades multirraciais, que estariam surgindo em Angola. Trata-se, claramente, de uma força enquanto propaganda. 

Mas, conforme já mencionei, nos anos 1960 o grupo “N’gola Ritmos” entre numa outra fase. Com as prisões de Liceu Vieira Dias e Amadeu Amorim e a transferência de Fontinhas para o Moxico, permanecem no “N’gola Ritmos” como principais impulsionadores, José Maria (Zé Maria) e Nino Ndongo. Quando o Zé Maria foi afastado para o Lubango, cumprindo ordem da PIDE/DGS, o grupo é reforçado com as participações de Ricardo Vaz Borja (Xodó), José Ferreira (Gegé), José Cordeiro dos Santos (Zé Cordeiro), Belita Palma e Lourdes Van-Dúnem. E é esta nova formação do grupo que viaja para Portugal, em meados dos anos 1960. 

Evidentemente, não podemos negligenciar a repercussão da notoriedade obtida pelo “N’gola Ritmos” durante essa viagem a Portugal que, de certa maneira, implicou uma forma de ascensão social do conjunto. Deu, inclusive, a oportunidade ao grupo de gravar seus dois álbuns. Todavia, o que quero destacar neste momento é o modo como a chegada do grupo à Lisboa foi noticiada por várias revistas portuguesas da época. 

Destaco, a título de exemplo, trechos de uma matéria publicada na revista “Plateia”, em meados dos anos 1960: 

“N’gola Ritmos fará ecoar nos céus metropolitanos toda a magia das batucadas angolanas, a beleza do seu ritmo estridente e exótico; este conjunto lançou a música do folclore até aos meios civilizados. Esse ritmo dos morros e das florestas entrou, assim, no conhecimento das plateias que, fascinadas, ouvem um novo ritmo”. 

Ao analisarmos este pequeno fragmento da matéria enquanto uma construção discursiva historicamente datada, nós podemos depreender que ele está o permeado pelo discurso lusotropicalista. Vale destacar a forte presença da ideia de folclore como algo distante e exótico e, ao mesmo tempo, como, exatamente por isso, ele podia ser agradável aos “meios civilizados”, ainda que saído “dos morros e das florestas”. Ora, como bem argumentou o pesquisador e músico Mário Rui Silva, o sentido da palavra folclore em África sempre esteve relacionado a “algo de aspecto pitoresco e sem significação profunda”, utilizado para classificar certas manifestações, consideradas “menores” pelos europeus. 

Com relação ao repertório do grupo, gostaria de destacar que além da gravação das composições “N’birin Birin” e “N’zaji”, o grupo gravou algumas canções tradicionais portuguesas. O mais importante a destacar, contudo, é que essas canções foram estilizadas pelo grupo, seja pela utilização de instrumentos tradicionais de Angola, como no uso da dikanza, ou pela adaptação do violão, ou, ainda, pelo modo de cantar, caracterizado pelo canto e contracanto, que já mencionei. Ou seja, o sentido primeiro da canção foi deliberadamente subvertido por uma nova performance. Afinal interpretar implica também compor, pois, quando alguém canta e/ou apresenta uma música, atua, inevitavelmente e num determinado sentido, como compositor. Dito de outra maneira, a performance do grupo “N’gola Ritmos” – enunciadora de sentido – subverteu seu significado original ao adaptar aquelas canções com a utilização de instrumentos angolanos, com a readequação dos instrumentos trazidos pelos europeus para a África e com o modo de cantar. 

Não poderia deixar de mencionar, mesmo que brevemente, a importância e a contribuição do “Duo Ouro Negro” para o cenário musical angolano dos anos 1960 e 1970 no sentido da internacionalização da música angolana. Com um repertório e uma linguagem musical bastante híbrida, os músicos gravaram – além de canções angolanas e de outros povos da África - canções de artistas e grupos internacionais, como “Agora vou ser feliz”, uma versão de “I wanna hold your hand” dos Beatles” - gravam “La mamma”, canção famosa na interpretação do músico francês Charles Aznavour e, ainda, diversas canções brasileiras, como “Construção”, de Chico Buarque de Holanda, “Menino de Braçanã”, “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa, e “Upa, neguinho!”, composição de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, famosa na voz de Elis Regina. Mas, infelizmente, e supreendentemente, encontrei pouquíssimo material sobre a dupla. Constatação esta que evidencia, talvez, a necessidade de mais trabalhos e pesquisas sobre a dupla de músicos.  A efervescência cultural que ainda se via nos primeiros anos da década de 1970 - expressa pela intensa gravação de discos, pelo surgimento de grupos musicais e as inúmeras edições de concursos de variedades e festivais da canção - se alterou de modo bastante significativo a partir de 1974. 

Com a chegada do Movimento Popular de Libertação de Angola ao poder a música popular urbana de Angola, sobretudo a de Luanda, se tornou uma importante ferramenta de legitimação política e ideológica do movimento. A canção deste período pode ser considerada um caminho importante para percebermos a divulgação do novo projeto político do MPLA, logo após a independência. Além disto, em um país caracterizado pela alta taxa de analfabetismo, a canção se tornou um forte e eficiente instrumento de divulgação das ideias do então partido. 

Vários músicos e compositores se destacaram neste período, todavia, a atuação do grupo “Kissanguela” foi preponderante. O grupo – formado em 1974 por membros da JMPLA (Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola) - fazia parte da delegação presidencial e acompanhava Agostinho Neto em todas as digressões que ele fizesse às diferentes províncias do país. Neste sentido, o papel do “Kissanguela” seria, também, o de transmitir, através da canção, a fala que os principais representantes do partido proferiam em seus discursos. 

Em Angola eu tive o grande prazer de entrevistar alguns dos integrantes do “Kissanguela”. E dois dados que me chamaram bastante a atenção em suas falas é o de que havia de 20 a 30 pessoas no grupo e que o “Kissanguela” não se tratava, apenas, de um grupo musical, pois envolvia outros segmentos artísticos, como dança, teatro, jograis e poesia. Entre os vários músicos e instrumentistas que compunham o grupo, destaco os nomes de Artur Adriano, Beto, Carlos Lamartine, Calabeto, Cristiano Veloso, El Belo, Fató, Filipe Mukenga, Jorge Varela, Nito, Manuelito, Manuel Faria, Santos Júnior, Vivi e Tonito. 

A partir de uma breve análise dos registros fotográficos, somos capazes de observar aspectos materiais daquele contexto, como a infraestrutura dos comícios, os instrumentos musicais, as roupas utilizadas pelos integrantes do “Kissanguela” e o público participante; somos capazes, também, de visualizamos as bandeiras de Angola, da UNTA, da JMPLA e do MPLA. 

De modo geral, fotografias como essas que apresentei a vocês buscavam atingir interlocutores específicos ao propagarem valores e sinalizarem as marcas de um ideal pretendido pelo MPLA. Além de que, essas imagens poderiam desempenhar uma função de extrema relevância, tendo em vista as altas taxas de analfabetismo e a multiplicidade de línguas existente em Angola.

Ao concluir, também, que o conteúdo temático de uma canção, assim como a sua construção composicional, estão ligados a um contexto e à condições de produção específicos, pude constatar que várias músicas presentes nos cinco álbuns gravados pelo “Kissanguela” revelam o didatismo do MPLA e tornaram-se um importante instrumento de divulgação de seu novo projeto político, no período posterior à independência do país.

A título de exemplo destaco a composição de Santos Júnior “Cada cidadão é e deve sentir-se um soldado”, gravada no álbum “Progresso, Disciplina, Produção e Estudo”, do “Kissanguela”. Ao orientar as ações e os comportamentos que os cidadãos deveriam seguir, as mensagens impressas na letra da canção sinalizam para a necessidade da continuidade da luta, seja ela nas cidades ou nas matas e incentiva a mobilização da população civil a entrar para o exército. 

Com essa canção de Santos Júnior vou finalizando a minha contribuição para este evento. Ao longo do meu percurso surgiram muitas questões que me fizeram constatar que as análises que eu apresentei ainda estão muito longe de se esgotarem. Infelizmente, a insuficiência de material sobre as compositoras e cantoras que se destacaram no cenário musical do período compreendido por mim nesta pesquisa, me limitou a apresentar com maior profundidade suas trajetórias. Outro obstáculo a ser superado foi a falta de tradutores para as canções compostas em língua nacional, especialmente o quimbundo. Porém, as dificuldades que encontrei em minha caminhada foram amenizadas pelas amizades estabelecidas e pelos laços de confiabilidade conquistados em Angola. É preciso destacar o modo gentil como os músicos entrevistados me receberam em suas casas - ou nos lugares onde ocorreram as respectivas entrevistas -, compartilhando comigo suas memórias, seus discos e fotografias de seu acervo pessoal. 

Ao me empenhar em traçar brevemente um panorama do cenário musical urbano de Angola – elegendo grupos e músicos representativos dos anos situados entre 1940 e 1970 - foi possível sinalizar momentos específicos da história recente daquele país. 

Assim, espero ter amenizado (ao menos um pouquinho) a sensação de profundo desconhecimento que ainda temos sobre a história musical angolana. As possibilidades de pesquisa não se esgotam, pelo contrário, são diversas, instigantes e se fazem cada vez mais necessárias.  

Muito obrigada a todos pela atenção e parabéns pelo lindo evento.

 

Amanda Palomo Alves* Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Integrante da Associação Mural Sonoro

(a fotografia de capa usada neste artigo é do fotógrafo angolano Alexandre Nobre, durante pesquisas na Rádio Nacional de Angola no âmbito do seu filme «Dipanda 75» )

Comment

Associação Mural Sonoro no Festival BONS SONS

Comment

Associação Mural Sonoro no Festival BONS SONS

 A Associação Mural Sonoro marcou presença no Festival BONS SONS este ano com o «Conversa ao Correr das Músicas»

Depois de em Agosto de 2014 Soraia Simões ter recebido o Prémio Megafone Sociedade Portuguesa de Autores, no Palco Lopes-Graça deste Festival, durante a cerimónia de entrega destes Prémios nas Categorias Música e Missão, pelo trabalho que tem desenvolvido no seio da música e cultura populares e na Associação e Projecto Mural Sonoro, este ano deu início a uma parceria com o BONS SONS e marcou presença no mesmo para guiar duas conversas com momentos musicais.

CONVERSA AO CORRER DAS MÚSICAS - Manel Cruz - Auditório de Cem Soldos - 13 de Agosto de 2015
Fotos: Carlos Manuel Martins

CONVERSA AO CORRER DAS MÚSICAS - Criatura (Ricardo Coelho (flautas, gaita de foles e percussões várias) - Auditório de Cem Soldos - 16 de Agosto de 2015 Fotos: Carlos Manuel Martins

CONVERSA AO CORRER DAS MÚSICAS - Criatura (Ricardo Coelho (flautas, gaita de foles e percussões várias) - Auditório de Cem Soldos - 16 de Agosto de 2015
Fotos: Carlos Manuel Martins

fotografia: Sofia Figueiredo  com Criatura (Ricardo Coelho: músico, tocador e construtor de aerofones diversos e instrumentos de percussão variados, Acácio Barbosa: guitarra portuguesa, vozes)

fotografia: Sofia Figueiredo

com Criatura (Ricardo Coelho: músico, tocador e construtor de aerofones diversos e instrumentos de percussão variados, Acácio Barbosa: guitarra portuguesa, vozes)

Comment

Carlos Martins (músico, compositor)

Comment

Carlos Martins (músico, compositor)

107ª Recolha de Entrevista

Quota MS_00090

Only with permission

Rights reserved - Free access

Perspectivas e Reflexões no Campo
Fotografias: Helena Silva
Realizada no LARGO Residências, Intendente, Lisboa

Comment

Yami Aloelela (músico, autor, compositor)

Comment

Yami Aloelela (músico, autor, compositor)

104ª Recolha de Entrevista
Quota MS_00087

Europeana Sounds

Only with permission

Rights reserved - Free access

© 2015 Perspectivas e Reflexões no Campo
Fotografias: Alexandre Nobre
Realizada no LARGO Residências, Intendente, em Lisboa

Comment

Ciclo ''Conversa ao Correr das Músicas'' 6ª CONVIDADA — VIVIANE

Comment

Ciclo ''Conversa ao Correr das Músicas'' 6ª CONVIDADA — VIVIANE

A  sessão de gravação ao vivo do Ciclo "Conversa ao Correr das Músicas" teve como convidada Viviane Parra. A mediação da conversa musicada esteve, como habitualmente, a cargo de Soraia Simões de Andrade. 

6ª Sessão/Gravação 

21 de Maio de 2015
convidada: Viviane 
acompanha de Tó Viegas
Fotografias: Alexandre Nobre
Imagem vídeo: Marta Reis 
Som: Soraia Simões de Andrade
Parceria: Associação Mural Sonoro, Museu da Música 

6ª Sessão/Gravação 
convidada: Viviane 
acompanha de Tó Viegas
coordenação, condução: Soraia Simões
Fotografias: Helena Silva
Imagem vídeo: Marta Reis 
Som: Soraia Simões 
Parceria: Associação Mural Sonoro, Museu da Música



Comment

6 de Junho, «LER História»/Feira do Livro de Lisboa:  «A Música Popular em Portugal no contexto das Campanhas de Dinamização Cultural e no PREC»

Comment

6 de Junho, «LER História»/Feira do Livro de Lisboa: «A Música Popular em Portugal no contexto das Campanhas de Dinamização Cultural e no PREC»

LISBOA
FEIRA DO LIVRO
APRESENTAÇÃO E DEBATE
6 de Junho de 2015
19h00

Uma iniciativa que decorreu na Feira do Livro de Lisboa
 
Foi apresentado o nº67 da revista Ler História dedicado ao tema das transformações culturais no pós 25 de Abril.
 
A apresentação da revista esteve a cargo da Professora Fátima de Sá (uma das editoras da revista LER História) e do Investigador Frédéric Vidal (editor da revista LER História, Investigador CRIA/ISCTE) e foi seguida por um debate sobre o tema "Música e Revolução. A Música Popular em Portugal no contexto das Campanhas de Dinamização Cultural e no PREC" com os intervenientes Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa) e Manuel Rocha (Brigada Victor Jara, Direcção do Conservatório de Música de Coimbra) e a coordenação e organização de Soraia Simões (Investigadora IHC FCSH, Autora Mural Sonoro), Manuel Rocha (Músico, Professor, Director Conservatório de Música de Coimbra), Carlos Guerreiro (Músico, Professor, Gaiteiros de Lisboa)

Som: Cláudia Henriques
Edição: Soraia Simões
Fotografias: Alexandre Nobre

© 2015 Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Revista «Ler História», Letra Livre, Feira do Livro de Lisboa'15, Associação Mural Sonoro, Projecto Memórias da Revolução/IHC - FCSH («Os Sons da Revolução»)
no-re-use, free access

 

Mais informações no site do IHC - FCSH, aqui
*A segunda sessão deste ciclo realizar-se-á depois do dia 15 de Setembro, em data específica a anunciar durante esse mês e contará com José Mário Branco no painel.

A partir do mês de Junho (retomando em Setembro). As sessões, com vários intervenientes e músicos convidados, ocorrerão na Feira do livro de Lisboa, livraria Ler Devagar, FCSH, etc.
 

Comment

«Memórias da Revolução». Os actores da música e cultura populares entre 1961 e 1975: José Mário Branco, por Soraia Simões

Comment

«Memórias da Revolução». Os actores da música e cultura populares entre 1961 e 1975: José Mário Branco, por Soraia Simões

 SONS DA REVOLUÇÃO

Projecto do Instituto de História Contemporânea em parceria com a RTP 

Este artigo divide-se em duas partes. Na primeira parte pretende expor algumas das perspectivas, bem como as letras de algumas canções realizadas por protagonistas da cultura e sociedade portuguesas no período que vai desde a guerra colonial até ao PREC, comportando nele os anos imediatamente a seguir ao PREC. Propõe a reflexão de um conjunto de acontecimentos que marcaram o momento que precedeu e acompanhou o processo revolucionário em curso, assim como os efeitos desse processo na vida cultural desses agentes. Tem como fontes os discursos recolhidos em suporte sonoro digital no decorrer do meu trabalho de campo durante três anos (entre Agosto de 2012 e Fevereiro de 2015) a um conjunto de protagonistas vivos da música e da sociedade portuguesas neste período. 

Pretende descrever e interpretar, através das conversas mantidas com estes informantes, verdadeira memória viva, uma parte deste extenso processo, que inicia com a sua ligação à cultura, à política e à sociedade no período colonial, no contexto do seu exílio político, no PREC e no pós PREC já em Portugal 


Transcrição de parte da entrevista a José Mário Branco

José Mário Branco (JMB): A primeira infância foi numa aldeia de pescadores, perto do Porto, que hoje é uma cidade grande, que é Leça da Palmeira. Vim para o Porto já adolescente.

Soraia Simões de Andrade (SSA): É? Porque os teus pais davam lá aulas?

JMB: Eram professores primários em Leça. Aí fiz a escola primária, frequentei os primeiros anos do liceu vindo todos os dias ao Porto para as aulas e só aos 11 ou aos 12 anos é que passei a residir na cidade do Porto.

SSA: Recordas algum momento de infância em que a música estivesse presente?

JMB: Sempre esteve. Desde que me lembro. O meu pai era um amante da música, pelo facto de ter feito todo o curso do seminário e desde que eu me lembro ensinava-nos a cantar e punha-nos a cantar a vozes (pausa). Eu, aos meus dois irmãos e ele fazia os baixos e nós fazíamos as outras três vozes e muito pequenino pôs-nos a estudar piano com uma senhora lá de Leça da Palmeira, que era professora de piano. Havia uma paixão grande pelo violino da minha parte. Depois, como nós não tínhamos dinheiro, foram os meus padrinhos, pessoas abastadas da cidade do Porto que me compraram o violino e me pagaram aulas no Conservatório com um professor que era um excelente violinista, primeiro violino da Sinfónica do Porto, e também liderava o Quarteto de Cordas, era francês, e que deu cabo da minha paixão pelo violino em poucos meses, porque eu ia aos sábados de manhã, que não havia liceu, ao Conservatório ter aulas particulares de violino e a única coisa que ele me ensinava era a pegar no violino e no arco com proibição de produzir qualquer som, e eu ficava ali uma hora de pé numa sala, com o professor à minha frente, a puxar-me pelo cotovelo e a corrigir-me os dedos no arco, pousar o arco nas cordas, mas proibido de tocar, primeiro ano era só para aprender a pegar no violino e isso matou definitivamente a paixão que eu tinha pelo violino, foi um assassinato.

SSA: Um bocado como o solfejo no piano, não é? Que as crianças desistem logo.

JMB: Também, também, também...o solfejo no piano. Depois destes incidentes a música ficou um bocado posta de lado e começou uma paixão grande pela poesia, mas que é retomada quando abre a Escola Parnaso no Porto, já eu tenho 15 ou 16 anos e então com o Jorge Constante Pereira, o Ricardo Sousa Lima, a Nina Constante Pereira que era minha namorada, etc há um grupo de amigos que entra ao mesmo tempo para a Escola Parnaso e realmente isso é que me marcou para sempre. O contacto com as músicas contemporâneas, a música dodecafónica, a música concreta, música electrónica, etc. e o contacto em paralelo com a Etnomusicologia, através do Luís Monteiro, que eram aulas, aulas não, eram encontros apaixonantes.

Ao mesmo tempo de análise etnográfica, análise musical, análise linguística, etc. Chegando perto da fase em que eu ia ser defrontado com a Guerra Colonial começa em 1961, mas mesmo antes disso a partir de 1958, que é a eleição do Delgado, há uma politização através do exemplo de amigos mais velhos que já andavam na universidade, o movimento estudantil universitário, e eu fico ligado ao primeiro grupo que no Porto tenta formar associações de estudantes nos liceus, chamava-se Pró Associação. Se nas universidades, nas três universidades que existiam: Porto, Coimbra e Lisboa, as associações de estudantes eram toleradas no liceal eram mesmo proibidas.

SSA: Portanto, estávamos mesmo no início da década...

JMB: 1959, 1960, 1961. A Guerra começa em 1961. Somos um grupo de jovens, rapazes e raparigas, por um lado muito sensibilizados para as questões políticas, políticas quer dizer: para a resistência à ditadura, resistência à censura, eu costumo dizer que era uma época em que era tudo a preto e branco, porque o inimigo era facilmente identificável e todos os dias a toda a hora tu eras levado no liceu, no café, em qualquer encontro de amigos eras levado a ter que tomar decisões que implicavam um risco: arriscar a liberdade, arriscar a vida, arriscar a carreira neste caso de estudante, etc. E por outro lado uma ligação também desse grupo à poesia e à música no estilo da tertúlia, no contacto com poetas mais velhos, aquele grupo de poetas neo-realistas do Porto, a Brigitte Gonçalves, o (António) Rebordão Navarro, o Eugénio de Andrade evidentemente, o António Reis que depois foi também cineasta, etc. Começámos todos a escrever poemas, esse pequeno grupo também participou no suplemento juvenil do Diário de Lisboa que era orientado por dois escritores, um casal de esquerda, nós mandávamos artigos, mandávamos poemas, mandávamos desenhos, aqueles como os da Manuela Bacelar que hoje é uma pintora reconhecida, críticas. Esse suplemento foi proibido  pela censura e passou a ser publicado no jornal República. Também fazíamos outra coisa, é que através de familiares e da nossa própria forma de movimentação havia relações com a Academia de Amadores de Música e o seu coro, dirigido pelo Lopes-Graça, com o próprio Lopes-Graça. 

Eu assisti à chegada, em casa da Ilse Losa porque um dos membros deste grupo de jovens era a Margarida Losa, filha da Ilse e do Arménio Losa, do Graça entusiasmadíssimo com o primeiro disco prova de fábrica da «Antologia de Trás-Os-Montes», do Giacometti seleccionada por ele, «Ouçam isto, ouçam isto, isto é espantoso» e o gesto  do Graça de colocar o disco prova no toca-discos e da gente ouvir aquilo com as lágrimas nos olhos e pensarmos: como é que é possível nós termos estes tesouros no nosso país e ninguém os conhecer?

SSA: Portanto, foi ali que começaste a rever um Portugal musical...

JMB: Já eu tinha tido um tirocínio de etnomusicologia com o Luís Monteiro na Parnaso...

SSA: Pois. Ali talvez um Portugal mais rural e interior que não chegava tanto à metrópole.

JMB: Sim. E nós próprios tínhamos por hábito, sobretudo nas férias da Páscoa, de irmos em grupo percorrer por exemplo as terras do Alto Minho a pé ou depois numa segunda fase vir para o Alentejo, virmos do Porto para o Alentejo, para a aldeia de Peroguarda, que é ali no meio do triângulo Beja-Ferreira-Cuba, onde nós vínhamos, alguns de nós - os primeiros a virem foram presos pela PIDE, porque era esquisito um grupo de jovens no meio dos alentejanos, de repente: «a fazer o quê, para quê?», a gente vinha só para os ouvir cantar e falar. Eram todos comunistas claro. Baixo- Alentejo, muito muito pobres. É um bocadinho daí também que depois mais tarde vem a relação especial do Michel Giacometti com a aldeia de Peroguarda, acho que é onde ele quis ser sepultado, não é?

SSA: Sim.

JMB: E com a Virgínia, uma camponesa poetisa...Ainda conheci pessoalmente o António Joaquim Lança, o pastor-poeta. Portanto, havia esse caldo de cultura. Não se pode esquecer que é uma época em que se dá o Concílio Vaticano II, em que se dá a Revolução Cubana, em que se dá a Guerra na Argélia, tudo isso eram temas das nossas discussões, das nossas conversas. E sobretudo em 1961, eu tenho 19 anos, a partir de 1961 a questão da guerra colonial e o facto de muitos de nós estarmos ligados ao partido comunista, que era a única organização onde a gente podia fazer qualquer coisa a sério correndo todos os riscos inerentes, que no meu caso por exemplo levou à prisão pela PIDE em 1962, não é? A discussão sobre ir ou não ir participar na guerra colonial.

SSA: Acabaste por ir contra a tua vontade para França, acabaste por ser empurrado a isso.

JMB: Eu, como militante do partido comunista português, recebi a directiva de ir para a guerra, porque era a linha do partido na altura, achando que era na frente de guerra que o militante comunista poderia fazer o seu trabalho. Nenhum de nós acreditava, ou muito poucos de nós acreditavam, que isso fosse possível à luz de muitos  relatos e discussões  que vinham dos franceses, da Guerra da Argélia, onde a  posição do partido comunista francês foi exactamente a mesma e portanto havia contacto com discussões com intelectuais franceses, do movimento estudantil francês, que vieram moldar a nossa própria discussão e levar a que uma grande parte de nós seguisse a linha de recusar participar na guerra colonial e alguns não. É por isso, que depois de já ter estado preso pela PIDE em 1962, em 1963, poucos dias antes de receber o  postal de mobilização para a tropa, eu decidi aproveitar os dias que me restavam de validade de um antigo passaporte para fugir do país. E depois foram os treze anos de vida em Paris.

SSA: Voltaste em Abril de 1974, em plena...

JMB: Em 30 de Abril de 74. 

 

[6] Vou andando por terras de França

pela viela da esperança

sempre de mudança

tirando o meu salário

Enquanto o fidalgo enche a pança

o Zé Povinho não descansa

Há sempre uma França

Brasil do operário

Não foi por vontade nem por gosto

que deixei a minha terra

Entre a uva e o mosto

fica sempre tudo neste pé

Vamos indo por terras de França

nossa miragem de abastança

sempre de mudança

roendo a nossa grade

Quando vai o gado prà matança

ao cabo da boa-esperança

Bolas prà bonança

e viva a tempestade

Não foi por vontade nem por gosto …

Vamos indo por terras de França

com a pobreza na lembrança

sempre de mudança

com olhos espantados

Canta o galo e a governança

a tesourinha e a finança

e os cães de faiança

ladrando a finados

Não foi por vontade nem por gosto …

Vamos indo por terras de França

trocando a sorte pela chança

sempre de mudança

suando o pé de meia

Com a alocação e a segurança

com sindicato e com vacança

Há sempre uma França

Numa folha de peia

Não foi por vontade nem por gosto

JMB: É em França que, por um lado num primeiro período a minha única actividade para além da sobrevivência é participar em lutas políticas, em grupos políticos, cujo objectivo era ao mesmo tempo a discussão sobre o que fazer em relação a Portugal: luta armada ou não luta armada contra a ditadura portuguesa, conflito da União Soviética, tomar partido pela China ou partido pela União Soviética, e a questão da divulgação e da denúncia da ditadura portuguesa e da guerra colonial pela europa fora. Isto é preciso ser situado porque foi um movimento muito grande, muito extenso. No princípio dos anos 70, cerca de dez anos depois, Paris era a segunda cidade de Portugal, tinha mais habitantes portugueses na região parisiense. Só em França éramos oitenta mil desertores e refractários para um país de nove/dez milhões de habitantes. 

SSA: E viviam em comunidade?

JMB: Bem, isso provocou uma mudança muito importante no comportamento geral da emigração portuguesa, porque a emigração portuguesa em França, mas não só, também na Alemanha, na Suíça, no Benelux, na Inglaterra, nos países escandinavos, que fora até aí uma emigração quase exclusivamente da pobreza, uma emigração económica, com a ida de dezenas de  dezenas e milhares de jovens universitários contra a guerra mudou, porque esses jovens começaram-se a integrar nas associações, que até aí serviam só para o rancho folclórico, para o pastel de bacalhau, para o copo de tinto ou para a missa, e deu-se uma politização não de todas mas de grande parte das associações de emigrantes portugueses. Aqueles que como nós a partir de certa altura, este plural é eu, o Luís Cilia que também vivia em Paris, o Tino Flores que também vivia em Paris, o Sérgio (Godinho) que começou a viver em Paris a partir de 1967 que cantávamos canções ou que denunciavam ou que abriam novas fronteiras, digamos assim, para a comunidade não tínhamos descanso. Andávamos sempre a cantar pela Europa toda, a Europa do norte sobretudo, sempre a cantar para associações. O disco «A Ronda do Soldadinho»[7]  é resultado disso, foi um disco feito propositadamente na ilegalidade, aproveitou da experiência que eu tinha ganho já a produzir discos, a arranjar, a fazer colaborações, etc.  e foi financiado com pré-compras do movimento associativo.

1.

Um e dois e três

Era uma vez

Um soldadinho

De chumbo não era

Como era

O soldadinho

 

Um menino lindo

Que nasceu

Num roseiral

O menino lindo

Não nasceu

P'ra fazer mal

 

Menino cresceu

Já foi à escola

De sacola

Um e dois e três

Já sabe ler

Sabe contar

 

Menino cresceu

Já aprendeu

A trabalhar

Vai gado guardar

Já vai lavrar

E semear

 

2.

Um e dois e três

Era uma vez

Um soldadinho

De chumbo não era

Como era

O soldadinho

 

Menino cresceu

Mas não colheu

De semear

Os senhores da terra

O mandam p'rà guerra

Morrer ou matar

 

Os senhores da guerra

Não matam

Mandam matar

Os senhores da guerra

Não morrem

Mandam morrer

 

A guerra é p'ra quem

Nunca aprendeu

A semear

É p'ra quem só quer

Mandar matar

Para roubar

 

3.

Um e dois e três

Era uma vez

Um soldadinho

De chumbo não era

Como era

O soldadinho

 

Dancemos meninos

A roda

No roseiral

Que os meninos lindos

Não nascem

P'ra fazer mal

 

Soldadinho lindo

Era o rei

Da nossa terra

Fugiu para França

P'ra não ir

Morrer na guerra

 

Soldadinho lindo

Era o rei

Da nossa terra

Fugiu para França

P'ra não ir

Matar na guerra

JMB: Como eu não tinha dinheiro para fazer o disco e a canção era uma canção que  se tinha tornado muito popular no seio da emigração portuguesa e não só, no meio da esquerda francesa, etc, dos que eram mais sensíveis aos nossos problemas, eu contactei-os e disse: «há este disco para fazer, era importante fazer este disco, vocês acham?» e eles: «achamos», «então, quantos exemplares é que querem comprar? E confiam-me o dinheiro antes de ver os discos ou não?». E, portanto, eu recebi dinheiro de compras antecipadas de exemplares do disco e foi com esse dinheiro que o disco foi feito. Tudo isto numa escala muito pequena.

SSA: A canção a esta altura era mesmo vista como uma arma ou era mais uma resposta ao que se estava a passar?

JMB: Sim sim sim. Mas, não fomos nós que inventámos. Já era em Portugal. Nas manifestações reprimidas de estudantes, nos plenários do movimento estudantil universitário, nas greves, etc., que se faziam em Portugal em condições de repressão muito dura, cantava-se sempre. Ou as canções heróicasdo Graça ou...

SSA: As que vieram a servir depois às campanhas de sensibilização do MFA? 

JMB: O «Canta Camarada Canta» [8] que foi uma canção quase emblemática da resistência anti-fascista em Portugal é uma cantiga de contrabandistas que foi recuperada pelo coro da Academia e depois recuperada pelo movimento estudantil universitário. Pronto. E em França é este percurso que se faz e é a partir do momento que há um estraçalhamento destas estruturas políticas de extrema-esquerda, a partir de 65, e pelo facto de um primo da minha mulher se esquecer ou deixar uma viola no nosso apartamento por onde passou em Paris que eu comecei a ter contacto com esse instrumento que eu nem conhecia. Eu tocava piano, tocava percussões, tocava flauta de bísel.

SSA: Acordeão também já tocavas...

JMB: Acordeon sim, porque tem um teclado, o acordeão de botões eu não sei tocar. 

O que se chamou na altura o ''movimento dos baladeiros''. O Zeca Afonso, o Adriano (Correia de Oliveira) e outros. Comecei a querer cantar as cantigas dos outros, eu também já gostava muito de outros géneros de canções: da canção poética francesa, canções brasileiras, canções anglo-saxónicas algumas. De forma autodidáctica comecei a pegar na viola, que tive de encordoar que até lhe faltavam cordas, e de ouvido a aprender a acompanhar-me a cantar canções, e é a partir daí que ponho a hipótese de me exprimir através desse meio.

SSA: E achas que contribuíste para largar essa conotação um bocado até pejorativa do ''baladeiro''?

JMB: Mais tarde, sim, mais tarde. Isso foi uma grande discussão, que nos levaria a horas de conversa.

SSA: Porque este termo ''o baladeiro'' surge sobretudo no meio comunicacional e social...

JMB: Sim. E sobretudo associado a uma grande pobreza musical das canções.

SSA: Aquelas pessoas que se faziam acompanhar de uma viola, sabiam dois ou três acordes...

JMB: Que sabiam três acordes, que faziam tudo igual e muitas das vezes contra a própria mensagem da poesia. Exclude disto completamente o Zeca Afonso, porque o Zeca Afonso era um caso absolutamente à parte, e que continua a ser, de grande riqueza poética e musical e sobretudo interpretativa, mas o que veio na esteira do Zeca foi esse ''movimento dos baladeiros'' que até leva depois o Raul Solnado a fazer um sketch a ridicularizá-los, não é? Mas, há excepções. A «Pedra Filosofal» do Manuel Freire [9]  é uma cantiga que foi uma viragem histórica pelas circunstâncias em que foi conhecida e que tem, digamos, qualidade poética e musical. 

SSA: Mas tu achas que essa expressão também tinha a ver com um certo movimento que se estava a criar na cabeça dos meios comunicacionais em Portugal de uma música engajada e de uma certa 'militância'?

JMB: A influência mais importante que havia em Portugal do estrangeiro era a francesa. Mesmo a palavra engajada vem do francês engagée que era o adjectivo aplicado à maior parte da canção poética francesa do pós-guerra, digamos essencialmente dos anos 50. Os meus pais, éramos pequeninos, davam-nos a ouvir George Brassens.

SSA: Leó Ferre muito provavelmente mais tarde.

JMB: Não. Não chegávamos tão longe, mas como eu trabalhei na rádio nesse período ainda antes de ir para França, nesse período mais agitado da minha juventude (eu trabalhei na rádio por causa da Parnaso) eu tinha contacto com muitas canções, com muita música que se fazia, que se tocava nas rádios. Essa postura da canção comprometida com uma realidade social penso que vem em primeiro lugar a partir da influência dos franceses, antes da canção brasileira sobretudo Dorival Caymmi, e mais tarde, só mais tarde, vem do lado anglo-saxónico de um certo ressurgimento da canção política italiana, porque também foi um país onde houve guerra e houve resistência.

SSA: Mas, também era o que passava nas rádios nessa altura?

JMB: Os estrangeiros passavam por vezes. Eu fiz o possível quando trabalhei na rádio para passar essas coisas. Até cantigas da guerra de Espanha eu passava. 

SSA: Em 1974 quando regressas a Portugal fundas o Grupo de Acção Cultural Vozes na Luta, com o qual ainda gravas dois fonogramas...

JMB: Gravámos uma primeira série de singles e Eps que depois foram reunidos num LP chamado «A Cantiga é uma Arma»[10] e participei no seguinte que é o «Pois Canté!»[11].

SSA: Qual era a relação da música que tu fazias com a indústria desta época? Era ou não muito expressiva a indústria nesta época?

JMB: Bem, com a experiência que eu trazia do disco «A Ronda do Soldadinho» e a radicalidade que enformava a própria existência do GAC, o GAC não nasce digamos por uma iluminação repentina no 25 de Abril, em Paris no ano anterior ao 25 de Abril já estava em gestação um grupo cuja ideia era precisamente isso: fazer música, e não só música, proibida, música ilegal, música de resistência, música subterrânea. Eu tinha tido uma cooperativa em que participei com amigos franceses chamada Organum já mais experiências de auto-edição de coisas marginais, completamente marginais, e que eram financiadas fora do sistema. E portanto, esse colectivo que estava em gestação em Paris, quando se dá o 25 de Abril, chamava-se Colectivo de Acção Cultural, estava o Luís Martins Saraiva, estavam uma série de pessoas que em Paris assumiam uma atitude mais ou menos parecida com a minha, que era de ruptura com o sistema. E portanto quando se chega a Portugal e o GAC depois ganha a configuração que ganha, primeiro foi uma grande misturada, nem se chamava Vozes na Luta era só Grupo de Acção Cultural, e depois esse grupo mais ou menos amorfo dividiu-se em vários, mais ou menos em função das diferenças políticas que haviam na esquerda portuguesa. Há uns que foram para o PC e fizeram um grupinho ligado ao PC, outros que eram da LUAR e fizeram um grupinho ligado à LUAR, para onde foi o Zeca Afonso e o Sérgio (Godinho), etc. Nesse primeiro GAC digamos que claramente maoista, e definido como de extrema-esquerda maoista.

SSA: Onde tu também estavas.

JMB: Ao princípio só estive eu. Dos conhecidos, só estive eu, o Fausto, o Tino Flores e depois todos aqueles jovens que vieram do coro da juventude musical e do instituto gregoriano que foram uma nova geração, alguns deles estão hoje nos Gaiteiros (de Lisboa): o Rui Vaz, o Carlos Guerreiro e o Pedro Casaes, pelo menos esses. Mas, era sobretudo o Luís Pedro Faro e as pessoas deste tipo que vieram dar solidez artística e uma nova energia aquele grupo de ''pós-baladeiros''.

SSA: Mas, havia rivalidades nessas várias esquerdas e isso reflectia-se também na música? 

JMB: Enormes, enormes. Isso seria outra conversa. O GAC que fica dessa discussão e dessas diferentes cisões assume a sua ligação política com a esquerda maoísta que é introduzindo o nome «Vozes na Luta», passa a ser Grupo de Acção Cultural Vozes na Luta.

SSA: «Ser Solidário», «Margem de Certa Maneira», «A Noite» e o emblemático «FMI»[12]. Muita coisa mudou, em termos territoriais, sociais, políticos, de concepção musical também.

JMB: A Margem (referindo-se ao fonograma com edição de autor, editado no ano de 1972, em França «Margem de Certa Maneira») é Paris ainda. Depois entrei para a Comuna (Teatro A Comuna) em 77 ou 78, já não sei, para fazer A Mãe que também dá origem a um LP e depois, em fim de Janeiro de 79, há uma cisão na Comuna, a Manuela (referindo-se à sua companheira Manuela de Freitas, letrista e actriz), eu e outros formámos um novo grupo que se chama Teatro do Mundo e é já no contexto do trabalho no Teatro do Mundo que eu começo a produzir uma série de canções que vêm a dar o projecto «Ser Solidário». O «Ser Solidário» foi recusado por todas as editoras, na maioria dos casos por eu querer incluir o FMI, ficaram todos assustados, o Tozé Brito por exemplo respondeu-me por escrito que já lá tinham um Sérgio Godinho na Polygram e que era a mesma coisa. Mas, foi recusado por todas as editoras. Valentim de Carvalho, Polygram, a que depois se chamou Sony, todas. 

O grupo Teatro do Mundo decidiu levar à cena o concerto «Ser Solidário» e diz-se mais uma vez a mesma coisa: convidei o público a pré-financiar a existência do disco. Foi assim que o disco foi feito. Ele tem uma etiqueta comercial (Edisom), porque entretanto surgiu essa nova editora, que era do Zé da Ponte e do Guilherme Inês, que aceitou editar o disco e fazer ao lado um maxi-single do «FMI», mas já estava tudo gravado e pago. Os concertos foram em 80 e  81, sempre esgotados. Acabou por sair em 82 o disco.

SSA: A maneira que tu tinhas de ser fiel às tuas convicções no fundo era nunca ceder à indústria?

JMB: Era. E as pessoas assinavam um talão, davam quinhentos escudos, eu ficava com o nome e a morada e depois com a promessa de que quando saísse o disco eles recebiam o disco em casa. 

SSA: Achas que foi isto que fez também com que tu sempre estivesses tão próximo do público? O facto de não haver uma barreira ali da indústria?

JMB: Talvez. Em 85 com «A Noite» acontece exactamente a mesma coisa. 

SSA: Aquilo está cheio não é? Aquilo é gravado ao vivo e pelo menos no áudio parece que está muita gente ali.

JMB: Está está. Aí foi com talões publicados nos jornais. Sempre esgotado. Duas épocas de um mês cada uma. Em Outubro e Novembro de 1980 e em Maio de 81. Sempre esgotado. E depois, quando sai o disco em 82, acho que também em Maio, foi na Aula Magna esgotada também para entregar os discos às pessoas. 

Realmente, criou uma almofada de público para este tipo de canções, que está muito a cavalo entre esse fenómeno de que tu falas digamos que da marginalidade de certos cantores, e depois o outro fenómeno que é uma coisa muito forte que ficou do PREC, que é: a identificação política, não é? Estes são os nossos cantores. E isso é que me fez dizer alguma vez: nós éramos aqueles a quem a esquerda chamou «os nossos» e depois da derrota da esquerda a direita chamou «os deles». Por isso a partir do refluxo da revolução em 76, 77, 78, nós fomos totalmente cortados dos meios de comunicação, abolidos, não havia rádio nem televisão para nenhum de nós. A única maneira era ir ter com as pessoas e fazer concertos. 

Referências bibliográficas

[1] Recolha de entrevista de Soraia Simões de Andrade a José Mário Branco foi reublicada no projecto liderado pela The British Library com a Quota MS_00029 Europeana Sounds, do minuto 7 ao minuto 40 do áudio disponibilizado no Portal Mural Sonoro, área «História Oral». Fonogramas gravados com ed.de autor e/ou financiados em pré-compra pelo público: Ronda do Soldadinho (Single, Ed. Autor, 1969) Single; Margem de certa maneira (LP, Guilda da Música, 1973) LP/CD; A Mãe (LP, 1978) LP; Ser solidário (2LP, Edisom, 1982); FMI (Maxi, Edisom, 1982); A Noite (LP, UPAV, 1985)

[2] Luís Cilia foi o primeiro cantor que no exílio denunciou a guerra colonial e a falta de liberdade em Portugal. A sua actividade constante, a partir de 1964, tanto discográfica como no que diz respeito à realização de recitais, fê-lo profissionalizar-se em 1967. Durante vários anos dedicou-se ao estudo de harmonia e composição. Recolha de entrevista de Soraia Simões de Andrade a Luís Cilia realizada em Agosto de 2013. Disponível com a Quota MS_00041 Europeana Sounds. Disponível no Portal Mural Sonoro, área «História Oral». Fonogramas gravados com ed.de autor durante o exílio em Paris: 1964 -"Portugal-Angola: Chants de Lutte" (França); 1965 -"Portugal Resiste" (França e Itália); 1967 -"La Poésie Portugaise de nos jours et de toujours" nº1 (França e Espanha (1968); 1967 -“O Salto” (França); 1969 -"La Poésie Portugaise de nos jours et de toujours" nº2 (França e Espanha (1973); 1971 -"La Poésie Portugaise de nos jours et de toujours" nº3 (França); 1973 -"Contra a ideia da violência a violência da ideia"   (França, Portugal (1974) e Espanha (1975); 1973 -“Meu País”  (França e Portugal(1974) reedição melhorada do  LP  “Portugal, Angola - Chants de Lutte”; 1974 -"O guerrilheiro"  (Portugal); 1974 -“O povo unido jamais será vencido” (Portugal - duas edições distintas); 1975 -"Resposta"  (Portugal e França); 1976 -"Memória"   (Portugal, Espanha, RDA , Itália e Bulgária); 1981 -"Marginal" (Portugal); 1982 -"Cancioneiro"  (Portugal) reedição de “O guerrilheiro”, com regravação de voz

[6] Margem de Certa Maneira, Mês e Ano de edição: Dezembro de 1972, Edição de autor, José Mário Branco.

[7]  A Ronda do Soldadinho, Edição de Autor, 1969, José Mário Branco.

[9]  «Pedra Filosofal», Música: Manuel Freire, Letra: António Gedeão

[10]   «A Cantiga é uma Arma», 1975, compilação dos quatro primeiros singles, Grupo de Acção Cultural - Vozes na Luta (GAC) 1974 - 1978.

[11]  «Pois Canté!», 1976, canções compostas maioritariamente por José Mário Branco e João Lóio, tendo como referência/suporte instrumentação de cariz tradicional como adufes e bombos, mas onde estão presentes de igual modo instrumentos de cariz clássico como oboés e violinos. Os poemas são de cariz intervencionista e é um dos fonogramas que mais marca este colectivo.

[12]  Fonogramas da autoria de José Mário Branco que marcam distintas fases do percurso do músico e compositor.

Comment