O ECZEMA DE PITÁGORAS

de João Albuquerque (JA)*

9 de Dezembro de 2023 a 19 de Dezembro de 2024 das 16h às 19h

AH!

Calçada de Sant’Ana, 169 R/C 1150-303 Lisboa

*A apresentação deste conjunto de quadros resulta de um pedido de JA para uso do nosso espaço — AH! espaço de criação do colectivo associação (((Mural Sonoro))) —, como montra do seu primeiro projecto autoral neste domínio. Acolhemos pontualmente apresentações de primeiros autores/primeiras obras não relacionados com o nosso ciclo de curadorias-apostas, tendo em consideração, sempre, o tipo de pedidos-propostas. Os pedidos deverão ser enviados por e-mail: muralsonoro.info@gmail.com

folha de sala

Repetir, repetir sempre, repetir até que passe a comichão

A primeira vez que vi os papéis pintados de João Albuquerque associei-o a duas personagens que me têm permitido assistir à ruína do mundo como se de um folhetim sobre a tragédia humana se tratasse. Um é Joe Gould, o professor gaivota, “a maior autoridade dos Estados Unidos a viver sem nada”, segundo o próprio. Joe Gould será o autor de uma volumosa obra, provavelmente inacabada, ou mesmo inexistente, que tem por título Uma História Oral do Nosso Tempo. Um delírio fantasioso, dirão, uma coisa dispersa por cadernos que Gould escondia em parte incerta. Três vezes Joe Gould, a fazer justiça ao triplo retrato nu pintado por Alice Neel, e que terá sido à sua maneira uma espécie de Bartleby. A outra figura é a de um pintor ensombrado pela obra. Provavelmente, herdeiro da cena artística parisiense do pós Segunda Guerra Mundial, personagem que não sei se optimista ou se humanista, mas que terá sido, na linha de um Jean Bazaine, ou de um Alfred Manessier, ou de Maurice Estève, um hermético sensacionista. Falo de Bram van de Velde. Autor obscurecido pelo tempo e apostado a enquadrar-se no desencontro do espírito com a carne, naquilo que a grande tradição da pintura francesa, do fauvismo ao Cubismo, legou à vidinha dos cafés, como se à grande arte da pintura nada tivesse acontecido, e, por outro lado, com consequências mais imprevistas e sombrias que as inquietações dos existencialistas, dos miserabilistas, dos cépticos de esquerda e dos génios da vida a crédito, todos eles empenhados em reencontrar na arte o mesmo fio condutor que une Alberto Giacometti a Francis Gruber, Dubufett à criatividade dos alienados mentais, os informalistas, de Wols a Georges Mathieu, entre outros. A própria ambivalência de Bram van de Velde em relação à pintura seria questão para uma reflexão mais profunda, na relação que a arte parece manter com a abstração de consistência existencial, tornando-o especialmente difícil de enquadrar e de categorizar. Se não fosse o diálogo entre Samuel Beckett e Georges Duthuit [2] e a obra de de Velde teria, provavelmente, caído no esquecimento, considerando a falta de reacção do mundo da arte à arte, mais habituado a correr atrás dos grandes eventos onde se prometem perus coloridos, árvores Natal iluminadas e cacilheiros mágicos.

Mas que têm em comum Joe Gould, van de Velde e João Albuquerque? Garanto-vos que quase nada e, ainda assim, um ponto essencial, ainda que minúsculo, m as que valerá a pena assinalar. A pintura de van Velde é a que se apresenta como se o ego do pintor se afastasse do seu corpo no acto de pintar, manifestando-se, invariavelmente, como um narrador imaterial pairando sobre a obra, como um doloroso espectro representativo do seu falhanço enquanto pintor. A estrutura proposta pelo cubismo parece ser o ponto de partida de toda a obra de de Velde, e este aspecto seria perfeito para desmontar todo um sistema de vícios e considerações que temos sobre a arte. Contudo, parece ter sido o deslocamento de uma espécie de crença para um outro sistema, o do Informal, que permite estabelecer no domínio das possibilidades, como a abstracção grotesca ou a filiação numa ingenuidade generosa, como que empurrando a essência do Cubismo para a sua própria dissolução, uma incerteza, a alegoria da cessação de todas as crenças artísticas.

Joe Gould, que considerava os índios do Dakota do Sul verdadeiros aristocratas, representará aqui uma qualidade que identifico em João Albuquerque, que vindo de fora, acredita na existência de um segredo científico verdadeiramente absoluto naquilo que à arte diz respeito.

Aristocratas, como bem sabemos, há-os por toda a parte, mas os verdadeiros vivem à beira-Tejo entre o cais do Ginjal e a Cova da Piedade, ainda que possamos encontrar uns quantos lá para os lados do Laranjeiro.

Quanto aos quadros de João Albuquerque, pessoano e, provavelmente, pessoa de muitas pessoas, que pinta para dentro de si a ver aquilo que vai pintar mais à frente, posso dizer que têm, entre outras graças, também esta, que de resto é comum aos grandes artistas do nosso tempo, ou àqueles que no nosso tempo são considerados grandes artistas, Albuquerque é capaz de enfrentar de forma absolutamente irredutível a pergunta que aterroriza há séculos batalhões de estetas e intelectuais: Afinal, que coisa é a arte?

O João uiva na estepe. É o que vos digo. E a pintura, goste-se ou não, também se faz destas coisas.

Montemor-o-Novo, 29 de Novembro de 2023.

*José Miguel Gervásio é artista plástico e doutorando

[2] Ver https://periodicos.ufop.br/exagium/article/view/5877

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