Os Sons Decidem por onde ir (Hans Otte)
Episódio 7 Popol Bug
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História das Ideias
Amélia Muge com Samora Machel, 1975, Maputo
fotografia de António Quadros, também conhecido sob os pseudónimos João Pedro Grabato Dias, Mutimati Barnabé João, Frey Ioannes Garabatus, que usamos ao longo do texto.
O passado por pouco que nele pensemos é coisa infinitamente mais estável que o presente…
Marguerite Yourcenar
Arrastando tempestades
Que nos fustigam as carnes
Desfazendo com uivados
O que foi a nossa imagem
Resto de nós, quase aragem…
Amélia Muge
Mas, eu assim o quis!
F. Nietzsche
Breve resumo
Amélia Muge (n.1952) é uma artista polifacetada. Intérprete, compositora, poeta, ilustradora. É também historiadora de formação. Talvez isso explique algumas das suas opções estéticas, como se verá. Sujeito de um contexto social e de um universo artístico especiais – como o são todos, dirão, e tendemos a concordar – marcados por descontinuidades com modelos de produção musical e de recepção precedentes e continuísmos de índole ideológica. Imprime, numa primeira fase, uma linguagem nitidamente engajada ideologicamente e, numa fase sucedânea, dinâmicas entre palavras. Na sua criação convivem símbolos da ancestralidade africana e da Grécia Antiga – diferentes recursos expressivos que abrangem uma duplicidade de sinais e mitologemas –, suportada por lendas, contos, poemas, narrativas, fábulas. É na discografia de uma compositora que vai metamorfoseando o seu repertório a seguir à independência do país onde nasceu, Moçambique, que esta reflexão se centra. A sua música está marcada pela persistência de uma história da trifurcação para onde converge a história das ideias, a literatura, e a filosofia. Os textos que musica, ou que cria de raiz, partem de invenções mitológicas; não por se envolverem e deixarem intoxicar pelas épocas e daí a intérprete retire escalas incomuns; mas por realçarem tempos, imaginários, lugares de um modo equidistante que distinguem a sua música de compositores com ligações a contextos muito semelhantes e, portanto, dão-nos pistas curiosas [...]
Se partirmos de uma das breves, e mais claras, explicações para a ficção, dada pelo ensaísta James Wood (n.1965), quando declara que o ficcionista é o que se aproxima da verdade ocultando pormenores íntimos, o que os tapa para a verdade conseguir dizer; pensemos como algumas das líricas apelam à descrição por via do onírico, do desconhecido, de indagações, e não do factual. Por outro lado, há uma dimensão de coisas nomeadas, lugares, uma dimensão sensitiva contrária à razão. Podemos afirmar que são arranjos de mentiras que cantam verdades. Ou, sob outro prisma, se Mundus Est Fabula, se o mundo é já uma ficção, como nos fala esse partido imaginário que dá pelo nome Tiqqun na sua famosa Theórie du Bloom, pois Bloom é todo aquele ou aquela incapaz de se separar do imediato que [n]os detém; todas somos errantes que, através das suas práticas artísticas, mostram esse nada absolutamente real à luz do qual tudo o que existe se torna fantasmagórico. Se Bloom vive dentro de Bloom, mesmo diante da mais inquebrantável das renúncias, à volta está um universo de coisas e nenhuma nos pertence por completo.
O repertório seleccionado de Amélia é per se uma micro-história da sua intuição e do seu autodidactismo face às mudanças sociais. Ainda que imaginária em diversos instantes, e profundamente cultural, aponta para uma renovada tradição. Esboça uma metafísica da canção literária onde derivas de autores clássicos e dos seus contemporâneos coincidem; estamos diante formas sonoras e linguísticas que irrompem a tensão entre forças dionisíacas e apolíneas. Isto é, entre uma força que concentra formas inexplicabilis e um enlevo de harmonizações que, não raras vezes, a própria preenche com noções e teorias para a música que faz. Há momentos em que não sabemos onde inicia um discurso artístico e termina um discurso investigativo. A intérprete foi tendo muitas coisas para dizer, ora de modo não declarativo ora declarativo, acerca das suas criações. O mais das vezes, o que apresenta são formulações que vai retirando de geografias e tempos distantes dos presencialmente vividos mas que se complementam criando ambientes pluri-sinestésicos de grande nobreza fonética e afectiva preparando os ouvidos para sonidos fora das convenções histórico-antropologizantes comuns sobre “repertórios femininos em contexto colonial e decolonial”. Apesar de tudo, por meio da força volitiva e intuitiva, é-nos possível situar características dessas mudanças permanentes em registos musicais, letrísticos e polemísticos entre 1975 e o início do novo milénio, nos quadros culturais moçambicano e português. Contudo, é também previsível que haja momentos no seu percurso em que não queira estar presa a nenhuma época; cada tempo não é unicamente o tempo de um pentagrama, por muito tocada que seja uma cifra ela é um objecto inacabado, a menos que definhe precocemente ou a matem antes de poder fazer o seu caminho até vários ouvintes ao longo da vida. A compositora acolhe e abandona reiteradamente sinais extemporâneos, retorna às valorações de feminino, masculino, portuguesa e moçambicana, música popular e literatura, baixa e alta cultura, procurando outros desígnios e subvertendo discretamente os convencionais. Ao sair do concreto para o abstracto, do local para o inextinguível, numa tentativa de superação das limitações das geografia e história política; recolhendo, misturando, reinterpretando, abandonando expectativas das indústrias musicais para si, vai reagir artisticamente e criticamente, em várias fases, às narrativas culturalistas que dominam a academia; mas igualmente de algum jornalismo musical sob uma aura pretensamente crítica, mimetizadora de um registo universitário e onde conflui, por vezes, a crónica de costumes descentrada do objecto artístico. Há uma firmeza e um estoicismo que movimentam todo o processo em estúdio e fora, uma transmudação de axiomas, a recorrência de epânodos e o retorno às ancestralidades culturais. Com a ideia de transmutação de todos os valores salvaguardada, Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) resgata e adapta a si a noção de Eterno Retorno que está na génese do projecto de transmutação dos valores [Umwerthung aller Werthe]. Ela aparece pela primeira vez nos escritos de 1886 como subtítulo de um dos cadernos para uma obra que Nietzsche tem como missão escrever e titulará de A Vontade de Poder [Der Wille zur Macht]. A transmutação dos valores abre, de par em par, janelas a diversas experiências estéticas uma vez arrancadas as peias éticas tradicionalistas menos atreitas a desvios, mudanças e rupturas. Nietzsche é o filósofo da intuição, não demonstra ser um bibliógrafo ou um profundo conhecedor da história filosófica; mas vai colando a si elementos de transitoriedade da cultura moderna por meio da revivificação da tragédia antiga de que a música de Wagner é um exemplo. Algo relativamente comum na elite cultural alemã é a menção à Grécia pré-cristã e à tragédia como reabilitadoras da cultura e da arte, não sendo por isso ex nihilo este seu interesse. A afeição pelo trágico, o inescapável, o mito como fábula e narrativa ancestral, tem um lugar surpreendente na música. Não queremos com isto descurar o papel da obra do autor prussiano-germânico, como ela é capaz de desencadear uma irreprimível febre da experimentação, de sondagem e exploração do inconsciente, diferente da prosseguida por Sigmund Freud (1856 – 1939). Se para o pai da psicanálise, os instintos humanos são impulsionados pela satisfação do prazer, sexual ou alimentar, e pela agressão, levando o sujeito a reprimir os seus instintos de modo a não prejudicar o colectivo – donde, os instintos auto-boicotados são um sintoma daquilo que a sociedade não aceita –, para Nietzsche o inconsciente não é uma força opressora que precisamos conter. É, antes, uma parte necessária e saudável da vida tal como o é a consciência: uma fonte de indizíveis que enriquece os nossos ensaios. Experimentar é ensaiar, repetir, arriscar. Ao contrário de Freud, que enfatiza as repressão e sublimação, o inconsciente nietzscheano não é uma zona de repressão, conflitual, mas uma dimensão vital da existência que não devemos punir moralmente. Porém, o que aqui nos importa reforçar, é que se Nietzsche recria figurações de conceitos a partir de pedaços da história e da sociedade que possam corresponder às suas percepções por instinto – de Dionísio ao Eterno Retorno e à Vontade de Poder – para os ir eliminando de modo continuado, Amélia Muge é uma compositora da intuição e da mescla: ideias e lugares presentes no vasto legado fonográfico sugerem um ademane símile ao encontrado em textos do músico, poeta, filólogo-filósofo alemão. E que se é Nietzsche quem urde a ideia da filosofia como uma medicina da cultura, compomos com a artista uma diagnose de cerca de três décadas de composições literário-musicais entre dois momentos da história Moçambique-Portugal com boa parte do seu repertório lírico, composicional, discursivo, em pano de fundo.
Ao iniciarmos esta dissertação de doutoramento apercebemo-nos do risco, novos rumos e modelos estão a ser delineados; ainda assim quisemos arriscar. Combinamos teorizações ainda não exploradas na história da música popular a partir de uma compositora com uma profícua produção desde os anos sessenta. Devido à nossa longa experiência de abordagem à música feita em Portugal, e à caminhada musical de Muge particularmente, sem pausas desde 1975, à paixão por música e ao interesse longínquo por textos inabituais musicados, achámos uma brecha para sondar outras vias críticas do universo composicional a partir de uma mulher musical na diáspora. É que o diálogo com compositoras mostra-nos mais do que uma soma de sucedidos relativamente fácil de cartografar sobre os discos; seria uma incúria não retirar da penumbra o vislumbrado na multiplicidade das suas experiências com a música, os textos, a palavra dita, escrita, cantada; e os contingentes da "vida cultural".
Entre conjunturas nacionais e internacionais há uma vertente histórico-filosófica que realçamos e debatemos nesta reflexão crítica. Para isto, contamos com registos sonoros, fílmicos, e uma bibliografia plural de enquadramento teórico com preeminência da História das Ideias e da Filosofia.
palavras-chave: Vontade de Poder; Utopia feminista; Canção literária; Eterno Retorno, Dor, Nostalgia, Ressentimento, Inter-subjectividade
Um podcast sobre mulheres na música, papéis, reportórios de luta e resistências...
Este podcast corresponde a uma parte de um trabalho de campo
Autoria, textos e edição de Soraia Simões de Andrade,
Ilustração de João Pratas,
Indicativo de Amélia Muge,
Design de som de A.José Martins e Paulo Lourenço
Esteve em acesso gratuito durante dois anos, considerado pela Universia, «um dos melhores podcasts nacionais»
2) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986 - 1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.
3) Simões, Soraia 2016 RAPortugal 1986 - 1999. Ciclo de Conferências e Debates no âmbito de projecto parcialmente financiado. Direcção Geral das Artes.
4) Simões de Andrade, Soraia Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.
5) Colóquio Reinventar o discurso e o palco: o RAP entre saberes locais e olhares globais, Maputo.
General D nasceu na ainda Lourenço Marques, hoje Maputo, Moçambique, no ano de 1971.
Sérgio (Matsinhe), o nome escolhido entre uma lista de outros nomes pelos pais por imposição externa em tempos de políticas repressivas exercidas entre as populações nativas das ex-colónias, sucumbiu com a chegada de General D e a força da sua actuação no contexto particular da «cultura hip-hop» e na sociedade portuguesa no período cavaquista pelos debates e discussões públicas em que se envolveu.
Explicita nesta entrevista os vários espaços geográficos (incluindo aquele de onde é oriundo) por onde passou até se fixar no Barreiro, mas também outros aspectos, como: a primeira ligação às palavras e posteriormente à escrita, resultado dos discos que ouvia incentivado por aquilo que o irmão mais velho e a mãe escutavam, como Maria Bethânia, Chico Buarque, Bonga e UHF, algumas lembranças que retém de um modus operandi dentro do hip-hop quando a «cultura» ainda se estava a formar em Portugal, a sua chegada à indústria de gravação e edição fonográfica, os temas expostos nas suas letras que ainda hoje o inquietam, sendo o racismo aquele no qual mais atenção é dispendida no seu discurso (o institucional como aquele que, também fruto disso, é praticado no dia-a-dia), entre outros.
Tornou-se um activo defensor dos direitos das minorias, chegando mesmo a ser candidato a deputado ao Parlamento Europeu pelo Movimento Política XXI e Porta-Voz da Associação SOS Racismo, organizou no ano de 1990 o primeiro festival RAP em Portugal, em Almada (na Incrível Almadense) e foi o primeiro rapper em Portugal a assinar um contrato discográfico, com a EMI-Valentim de Carvalho. Em 1994 foi editado o EP PortuKKKal É Um Erro, disco que incluía três temas e que contou com a participação do grupo coral cabo-verdiano Finka Pé, deu alguns concertos em Inglaterra e passou com frequência em rádios locais fortemente dinamizadoras do hip-hop, registou alguns espectáculos de relevo no nosso país, nomeadamente no Festival Imperial, na cerimónia de entrega dos Prémios do jornal Blitz e na Festa do Avante. Em 1995 foi editado o seu álbum de estreia intitulado Pé Na Tchôn Karapinha Na Céu, gravado por General D & Os Karapinhas e produzido por Jonathan Miller, no qual participaram convidados como Marta Dias, Sam ou Boss AC, entre outros.
Participou em Timor Livre, resultado da gravação de um espectáculo no Centro Cultural de Belém de solidariedade para com o povo de Timor, onde participaram Delfins, Rui Veloso ou Luís Represas, e em que General D interpreta dois temas. Após dois anos de concertos dentro e fora de Portugal, General D ainda editou Kanimambo (1997), que contou com a produção de Joe Fossard.
No ano de 2014, a 28 de Junho, integrado no Festival Lisboa Mistura deu um espectáculo que encheu e que marcou o seu regresso aos palcos. Precisamente o ano em que se assinalou a comemoração dos 40 anos decorridos da Revolução de Abril de 1974 e que simultaneamente marcou os 20 anos decorridos da sua primeira edição discográfica.
com General D, Agosto de 2014, em Miratejo, numa gravação em vídeo
1) RAP (Rithm And Poetry) é a prática sonora e/ou musical, um dos eixos da «cultura hip hop», assim entendida pelos precursores. Esta cultura integra ainda a vertente visual intitulada graffiti ou muralismo (ouvir Nomen neste dossier) e a vertente coreográfica denominada breakdance.
Ao hip hop, que se formou nos bairros do Bronx ou Nova Iorque, e se tornou pouco tempo depois numa cultura urbana e de consumo entre as comunidades juvenis passou a atribuir-se o nome de «movimento» ou «cultura», tendo posteriormente quer o RAP como o hip-hop (enquanto cultura agregadora das várias vertentes ‘’artísticas de rua’’) assumido outras denominações locais, como aconteceu no contexto português onde há uma corrente dominante que o apelida de hip hop tuga ou rap tuga, à qual se tem oposto uma outra corrente que questiona o significado dessas categorizações afirmando, antes, que se trata de um RAP feito em Portugal e não só em português. Crítica encontrada, por exemplo, no rapper Chullage, que usa ora o português ora o crioulo de Cabo Verde nas suas criações.
2) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986 - 1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.
3) Simões, Soraia 2016 RAPortugal 1986 - 1999. Ciclo de Conferências e Debates no âmbito de projecto parcialmente financiado. Direcção Geral das Artes.
4) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.
5) Colóquio Reinventar o discurso e o palco: o RAP entre saberes locais e olhares globais, Maputo.
6) Fotografia de capa: Helena Silva, Outubro de 2014, LARGO Residências.
Paulo Jorge Morais, conhecido por Makkas, nome a partir do qual integrou a cultura hip-hop há cerca de vinte anos, nasceu no ano de 1976 em Angola, mas foi em Miratejo que cresceu.
Makkas já estava ligado, a partir da Moita, ao universo hip-hop, mas foi quando integrou o grupo Black Company que saiu da invisibilidade. Do grupo, criado na década de 1980, composto pelos rappers Bantú (agora Gutto), Bambino e Makkas (que o integraria no ano de 1988) seria anteriormente formado, ainda, pelos Dj´s KJB e Soon.
Vários rappers da área metropolitana de Lisboa, como General D e Ivan Cristiano (Beat boxer, que curiosamente integraria mais tarde o grupo de Almada UHF, com a função de baterista) passaram por Black Company.
Na colectânea Rapública, editada em 1994, ''Nadar'', um tema que surgira espontaneamente e que seria o primeiro tema em português do grupo, integrou o disco.
O álbum Geração Rasca, de 1995, bem como Filhos da Rua, de 1998, tornaram o grupo reconhecido no panorama nacional, o sucesso alcançado pelos seus integrantes tornaram o grupo uma referência para outros rappers, bem como um estímulo para várias comunidades, especialmente de jovens, oriundas dos mesmos espaços e/ou com experiências sociais e culturais semelhantes. A participação em Racismo Não, editado pela AMI (Assistência Médica Internacional), foi disso exemplo.
Actuaram em Cannes, no festival MIDEM, na noite Atlântica, no Brasil, entre outros.
A 8 de Setembro de 2008 seria lançado Fora de Série, com dezasseis temas, do qual fez parte o single "Só Malucos", um tema que reafirma o cariz intervencionista do grupo junto dos seus pimeiros seguidores. Cariz esse durante muito tempo invisível, devido à forte difusão e aceitação de ''Não Sabe Nadar'' que tornaria, para a maioria da recepção, sinónimo de uma descontinuidade dos seus papéis de denúncia das realidades circundantes.
À data em que esta entrevista aconteceu (Outubro de 2014), Makkas encontrava-se em estúdio na finalização do seu mais recente fonograma, de nome Rotina já com o seu novo grupo: The Raw Sample Project.
Miratejo, Agosto de 2014, com Makkas (Black Company) e General D
Represento aquela esquerda indignada que se indigna com a própria esquerda (Luís Monteiro)
A contracultura só existe enquanto estiver fora do radar da capitalização.
Por vezes, foram homens e mulheres, que, nunca colhendo frutos de nenhuma militância, embora seminais nas opções de outros a quem se reconhece poder na margem (poder conferido pela alimentação mútua com o poder do centro de forma a produzir narrativas de concórdia, heterogeneidade, e abertura, precisas para a manutenção de ambos), peças principais para desbloquear uma engrenagem que passou a ser visibilizada tendo como almofada um discurso de margem.
Tudo começou há uns meses, quando Ana Deus (intérprete: Ban, Três Tristes Tigres, Osso Vaidoso) leu uma das conversas com José Mário Branco (JMB) na Mural Sonoro, cuja transcrição se encontra no Memórias da Revolução [1] e me ligou alertando para o facto de uma das principais referências evocadas por JMB ser seu vizinho, hoje com 85 anos, Luís Monteiro.
Mais que coleccionador, estudioso e entusiasta das músicas e culturas. Esteve vinte e sete anos ao serviço na Emissora Nacional a partir do Porto — tarefa-motor da curiosidade pela música e um estímulo à expansão da sua colecção discográfica —, e em simultâneo desenvolvia um interesse pela leitura de natureza musicológica, etnográfica, linguística e historiográfica, que o levou a fazer e a refazer anotações das suas teorias sobre música e a partilhá-las, como se mostrará aqui.
Mas foram mais as vezes, além dessa conversa, em que José Mário Branco sublinhou a importância de Luís Monteiro no guião da sua vida musical. Como no decorrer de um debate com o título Música e Sociedade, realizado pela Mural Sonoro em 2013 a convite do Museu da Música.
Foi na Parnaso que JMB conheceu Jorge Constante Pereira, outro dos beneficiários dos conhecimentos passados por Luís Monteiro.
A 1 de Agosto de 1935 a Emissora Nacional foi oficialmente inaugurada, nessa fase experimental a programação procurou distanciar-se dos programas mais ligeiros que preenchiam as rádios privadas, alterando com programas musicais de natureza erudita e misturando mensagens ditas-pedagógicas com propaganda do regime.
A primeira Lei Orgânica da Emissora Nacional (Setembro de 1940) autonomizou-a prevendo a organização dos serviços, a execução do Plano de Rádio Difusão Nacional e a criação de emissores regionais no Porto, Coimbra e Faro. Foi na Emissora Nacional na cidade do Porto que Luís Monteiro permaneceu mais de duas décadas. Com uma visão crítica normal seria que procurasse intercalar o ofício com outras descobertas e redescobertas; e um conjunto de questões de natureza linguística e sonoro-musical, mas também política, procedente da sua agitação, emergisse. Como me disse quando cheguei ao Porto: ainda hoje represento aquela esquerda indignada que se indigna com a própria esquerda. O áudio dessa conversa, sem guião definido, como quase todas as anteriores, estará aqui
Um testemunho é parte de uma acção que se tornou real; está além do acontecimento registado de modo inalterável e muito menos oficial. É a particularidade, o detalhe que, sendo relevante para o detentor dessa memória, pode lançar outros olhares, permitindo decerto que a história esteja mais próxima de quem a partilha.
Como mencionava Paul Veyne (2008) [3], a importância dada a uns factos em detrimento de outros mostra uma escolha por parte de quem investiga e escreve, não uma grandeza que lhes seja inerente. Ou, melhor, eles são-no, providos de magnanimidade, para quem investiga e escreve, por isso decide tirá-los da penumbra. Se assim não fosse, pautada por essa selectividade, que tese ou reflexão diferenciadoras, em temáticas ou cronologias fetiche da contemporaneidade, emanariam?
Por acreditar que as páginas da Mural Sonoro também podem servir para fomentar reencontros, e através deles fixar outras linguagens, vivências, com as quais tenho a sorte de me cruzar; um lado que a História da Música merece inscrever no caderno de memórias, onde vivem especialmente afectos, tensões, sociabilidades, sem os quais não existiria: fui conhecer Luís Monteiro e desafiei os seus ex-alunos a escrever sobre ele.
É, então, de Luís Monteiro que há mais de quarenta anos JMB não via, embora tão significativo no seu caminho artístico, que José Mário Branco e Jorge Constante Pereira aqui escrevem.
Pretende ser uma homenagem ao que operou nas vidas de vários jovens que despertavam no Porto para a música, para a poesia, para as discussões de natureza política, sessões onde tudo isto se misturava. Ao homem que acolheu Giacometti no Porto, e dele conta que foi um homem bom, porque se interessou por recolher aquilo que lhe permitiu cruzar teorias e anotações.
Soraia Simões de Andrade
Lisboa
Abril de 2018
Tenho uma imagem quase mítica do Luís Monteiro, certamente por razões que nem ele suspeita. Essa imagem resulta da importância que ele teve na minha formação, num tempo em que, com outros jovens apaixonados pela música, pela poesia, pelas artes, eu estava intensamente disponível para as ideias
novas e os sons novos que ele nos deu a conhecer.
Chamado a ter conversas com um grupo de alunos da recém-aberta Escola Parnaso do Prof. Fernando Corrêa de Oliveira, no Porto, o Luís Monteiro deu-nos a conhecer, com os seus discos e as suas explicações, dois tipos de música bem diferentes que eram as grandes paixões da sua vida.
Sendo um simples funcionário da delegação da Emissora Nacional na Rua Cândido dos Reis, tinha em casa uma gigantesca discoteca onde predominavam esses dois tipos de música:
- a música tradicional e erudita dos povos de todo o mundo, onde sobressaía o gamelang (música erudita da Indonésia), e
- a música erudita europeia pós-Schoenberg: Webern, Stockhausen, Dallapiccola, os concretistas Pierre Henri e Pierre Schaeffer, e ainda Boulez, Ligeti, Penderecki, etc.
A memória que dele tenho é a de alguém que procurava relações entre tudo. No campo das músicas tradicionais — a que éramos particularmente sensíveis através de Lopes-Graça e Giacometti —, ele ensinou-nos que a música nasce da vida dos povos. Esboçava mesmo alguma teorização sobre o papel das músicas tradicionais enquanto preciosa informação sobre a evolução das línguas, as migrações dos povos, e até as variações dos climas, das paisagens, dos modos de sobrevivência.
Falando de coisas tão grandes e importantes, ele tinha sempre um ar modesto e marginal, quase inadaptado.
Os nossos encontros com o Luís Monteiro — que nem sequer foram muitos — marcaram-me para sempre, e estão entre as mais belas memórias que guardo da minha juventude.
Por esse homem, que quase ninguém conhece, e a quem nunca foi dado o devido valor, eu nutro uma profunda gratidão.
Sem ele, eu não seria quem tento ser.
José Mário Branco
Lisboa
Abril de 2018
Por falar em LUÍS MONTEIRO, por Jorge Constante Pereira [2]
Falar sobre alguém com quem convivemos de perto há cinco décadas é uma tarefa muito arriscada, sobretudo quando o relator não é um escritor. A memória talvez ajude mas as emoções podem pregar-nos partidas, inquinar as nossas percepções, adulterar as nossas interpretações. E o tempo é, de facto, um canibal.
Feita esta declaração de interesses – que não é certamente novidade para uma investigadora como a Soraia Simões – temos que entrar no assunto. E o assunto é, a meu ver, aquilo que o Luís Monteiro nos trouxe desde os anos sessenta com a sua enorme informação musical e a sua persistência em temas ligados à musicologia comparada.
A minha tarefa de escrever sobre este grande amigo de há muitos anos – e que eu perdi de vista também há tempos – está muito facilitada pela entrevista muito esclarecedora que o José Mário Branco deu ao Mural Sonoro da Soraia Simões de Andrade [4], entrevista em que, entre outros assuntos da sua vivência como músico e cidadão, fala do Luís Monteiro e relata eventos que com ele partilhámos, em parceria com outros cúmplices, durante alguns anos de juventude.
Assim, vou limitar-me a focar alguns episódios que o José Mário poderia não conhecer, nomeadamente porque me implicaram com um papel que resultava sobretudo da minha actividade à época como estudante de piano e composição no Conservatório de Música do Porto e também como educador musical na Escola Parnaso dirigida pelo professor Fernando Corrêa de Oliveira nessa época (vide A Escola Parnaso por Joana Resende).
Para nós era, à época (cerca de 1960), um assombro! Como estudante que era no Conservatório de Música do Porto – tão conservador nesse tempo como a designação sugere – o contributo do dodecafonismo de Corrêa de Oliveira com a sua abertura ao serialismo musical, bem como a discoteca do Luís Monteiro, foram duas pedras basilares da minha formação musical, como compositor e como educador musical.
O Luís Monteiro trabalhava no arquivo musical da então chamada Emissora Nacional, e só encomendava discos que não existiam nesse arquivo e por isso o que ele encomendava era mesmo muito restrito e sofisticado, sendo ele conhecido no mercado dos discos como um consumidor de discos especial e muito exigente; tive a confirmação disso uma vez que, numa ida minha a Paris, ele me pediu que fosse à sua loja de discos – nessa época chamava-se discoteca, isso agora tem outro significado –, o que fiz com algumas consequências aborrecidas à chegada ao berço, por (des)virtude das chamadas importações alfandegárias ilícitas de bens culturais, que eram mais vasculhadas e taxadas na fronteira do que as bebidas alcoólicas. Enfim, umas piadas sem graça do regime.
Por acidente – que não por desforra! – algum tempo mais tarde foi o Luís abordado pela polícia política na sequência das actividades de militância política em que muitos de nós estavam envolvidos – que o José Mário Branco descreve na já referida entrevista –, uma vez que o regime estipulava que todas as reuniões de mais que um eram proibidas; o Luís Monteiro, funcionário de uma das ferramentas do Estado Novo, a EN, reunia-se connosco para fins de cultura musical e mais nada, mas isso não o livrou de ser interrogado pela PIDE e de a sua discoteca ser vasculhada – grande susto dele! –, não fosse ter lá alguma versão da Internacional ou, pior, ainda discos proibidos com cantos heróicos do Lopes-Graça!
A etno-musicologia vista pelo Luís Monteiro
Voltemos então ao nosso assunto principal: o papel do Luís Monteiro nas nossas AEC’s – actividades de enriquecimento curricular.
No que diz respeito a Schoenberg, Alban Berg, Webern, Messiaen, Stockhausen e tantos outros, ficámos todos mais informados graças ao Luís Monteiro e à sua discoteca, autêntica preciosidade com especial destaque para a música do século XX – o Luís confessou-me um dia que só saiu verdadeiramente da adolescência depois de ouvir a Sagração da Primavera de Igor Strawinski – e para a música tradicional de todo o mundo.
Particularmente apaixonado pela musicologia comparada, o Luís lia – e partilhava com os amigos – tudo o que conseguia arranjar de musicólogos e antropólogos como Curt Sachs, André Schaeffner e outros; não perdia os boletins editados ou patrocinados pelo CIM - Conseil International de la Musique, organização não governamental parceira da UNESCO que dedicava particular atenção à diversidade cultural em todo o mundo, e devorava as publicações do Musée de L’Homme de Paris – e tanta outra bibliografia, tanta que é difícil inventariá-la toda a esta distância.
Ao longo de alguns anos de convivência e partilha, tivemos momentos notáveis, de entre os quais vou referir dois, um mais pessoal e outro mais colectivo.
Primeiro exemplo. Com um interesse especial pela música indiana, que ele considerava ser como a mãe musical do mundo, o Luís convenceu-me a tentar, ouvindo os ragas e outras formas de música indiana, extrair e notar, para benefício das suas pesquisas, os modos que eram usados na construção musical; como eu tinha ouvido e sabia escrever música, ele usou e abusou: da música indiana passou para a africana e, mais tarde, para a americana. Bem, não estou a queixar-me; foi um bom treino de ditado musical e uma boa aprendizagem sobre a música oriental. Sugiro que aproveitem, vale a pena.
O outro exemplo é diferente.
O Luís Monteiro acedeu em fazer várias palestras, na Escola Parnaso, sobre música do mundo – não é bem a world music da MTV mas tinha de facto um âmbito muito universal. Só que quis mudar o mundo! E mudou. Com a nossa ajuda. Ou seja, não se pode dizer que o mundo mudou de sítio, antes foi ele que mudou o sítio do mundo!
Durante alguns serões, com muito papel cenário e vários pincéis e tintas, fabricámos um Planisfério que serviu de cenário às suas palestras. O único “pormenor” inovador foi a troca de orientação! No planisfério que usámos entre nós, temos no meio a Europa, e depois a Ásia a Este e as Américas a Oeste.
Mas o mapa do mundo do Luís Monteiro tinha que ser visto “do outro lado do mundo”, porque a cultura musical teria passado, em seu entender, de Oriente para Ocidente através do Estreito de Behring (ou perto disso).
E pronto; foi assim que o Luís Monteiro mudou o mundo. E nós ajudámos, com muito gosto!
Disse Yoko Ono:
One can do alone, but he always needs a friend
O mundo era assim antes do Luís Monteiro o virar e ficou muito melhor depois disso! Ou não?
Uma coisa é certa: foi bom estar aqui “na companhia” do Luís Monteiro. Obrigado por isso, caro Amigo! Obrigado por isso, cara Amiga Soraia Simões! Até sempre, e faço votos de que a Mural Sonoro continue, com Rap e tudo o que a música de gente nos puder trazer.
Jorge Constante Pereira
Porto
Março de 2018
Somos vizinhos[5] do Luís Monteiro. Vizinhos de baixo, do lado oposto, mas mesmo assim ainda conseguimos ouvir, na casa de banho, ecos das músicas que escuta.
Temos décadas de conversas sobre música, interrompidas e continuadas como episódios, de elevador.
O Luís não gosta da minha música mas eu até gosto «das dele», que são todas as «puras» que procurou e coleccionou pela vida fora. Músicas ainda mais impossíveis agora que tudo comunica.
Quando as Fnacs ainda eram lojas francesas, o Luís voava até Paris só para comprar discos. Não visitava museus nem assistia a espectáculos, porque todo o tempo era precioso e escasso para as suas buscas, disco a disco, nos escaparates das lojas. Com o lanche num saquinho plástico, mas sem água ou outra bebida, para não ter de perder tempo em idas ao wc, procurava as suas preciosidades, raras e voltava mais ou menos feliz dependendo das aquisições, fechando-se em casa para ouvir os discos, só saindo rapidamente para comprar comida e vinho branco.
Quando as idas à Fnac, entretanto em Portugal, deixaram de ser proveitosas ajudei-o a encomendar via Amazon alguns cds, mas também dvds de filmografias eróticas-exóticas e livros sobre teorias várias, de luz e cor, genética. Tudo do mais relevante que há.
As estórias dele e com ele são muitas, a maior parte delas impossíveis de partilhar com estranhos, mas aqui vai um exemplo de quão exemplar é este meu vizinho preferido. Encontrei-o no momento seguinte ao de uma tentativa de assalto na rua...ao fulano que se lhe atravessou no caminho o Luís terá berrado com largos gestos e indignação - Não me chateie pá! Você acha que eu tenho tempo para isso! O que deixou o larápio baralhado tendo desistido da acção.
Lembro já agora, também, o dia em que no Café da rua fomos abalroados por um polícia que andava à nossa procura, por questões parvas que felizmente já não são questão com a nova legislação. Durante a identificação, mais busca em bolsos e bolsinhas, chega o Luís Monteiro que ignorando completamente a situação e o polícia nos começa a falar acaloradamente do seu último interesse ou descoberta como se nada se passasse. Polícias e ladrões são invisíveis para o Luís Monteiro. Apenas importa o que importa.
Viva o Luís Monteiro!
Ana Deus
Porto
Abril de 2018
Fotografias: José Fernandes
Registo em Vídeo: Amarante Abramovici
[1] proposta do Instituto de História Contemporânea com a RTP que se destina a evocar os dias entre o 11 de Março de 1975 ao 25 de Novembro de 1975, contando para isso com um número grande de documentos de arquivo, passados em revista durante um minuto na RTP: frases, canções, imagens que se fixaram na história do dito Verão Quente de 75. Convite feito à Mural Sonoro para integração de parte deste arquivo sonoro e um conjunto de ensaios dele decorrentes.
[2] Jorge Constante Pereira é compositor e dramaturgo. Do seu trabalho como compositor musical e autor de textos para teatro e televisão recordo A Árvore dos Patafúrdios (1984) e Os Amigos do Gaspar (1986) em colaboração com Sérgio Godinho.
Professor de Educação Musical no Conservatório de Braga (Escola Calouste Gulbenkian de Música), assistente universitário no Curso de Ciências da Educação da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo Técnico de Intervenção Precoce do Centro Regional de Segurança Social do Porto, mas também terapeuta da Psicomotricidade no Centro de Higiene Mental Infantil e Juvenil do Porto e posteriormente no Centro de Observação e Orientação Médico-Pedagógica em Lisboa.
[3] Veyne, Paul 2008. Como se escreve a História. Edições 70. Lisboa.
[4] Entrevista referida por Jorge Constante Pereira a José Mário Branco, aqui.
[5] Ana Deus e Paulo Ansiães Monteiro.
Quem não conseguiu estar saiba que pode ouvir aqui a comunicação de breves minutos (consegui fazê-la, parecia-me impossível, em menos dos 8 pretendidos pela organização) e em português no âmbito da sessão «Cidade Cidadã» que teve lugar hoje de tarde no evento Portugal Smart Cities com o título «RAPresentar a cidade (In) visível no arranque do hip-hop em Portugal».
Comunicação em português no âmbito da sessão «Cidade Cidadã» que teve lugar esta quinta-feira entre as 16.00 e as 18.00 no evento Portugal Smart Cities.
Sessão presidida pela Secretária da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Maria Fernanda Rollo e moderada por Miguel de Castro Neto (Sub Director Nova Ims - Information Management School).
Notas
Fotografia 1) Sessão «Cidade Cidadã», Portugal Smart Cities, Centro de Congressos de Lisboa. 12 de Abril. 2018.
Fotografia 2) material cedido por Jumping (Djamal) durante trabalho de pesquisa. Concerto de Djamal, primeira parte de GNR. 1997.
Fotografia 3) recolhas durante trabalho de pesquisa. Exposição de Ithaka (Darin Pappas).
Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adia (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.
Simões, Soraia 2018/9 no prelo Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.
Fotografia [cedida por Jazzy J em 2015, durante trabalho de campo]: graff de Nomen de 1992, no interior da Escola Secundária de Carcavelos, "2mad".
Tema: «Só queremos ser iguais». 1994. Zona Dread. Colectânea RAPública. Sony Music.
Certeau, Michel de 1980. L'Invention du quotidien - la arts de faire.
Simões, Soraia. coorden. 2016. Ciclo de debates RAPortugal 1986 - 1999. DGArtes. Lisboa.
Simões, Soraia. 2018. RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril. As margens, o centro, paradoxos e contradições do RAP em Portugal. Esquerda.net.
Biblio/fontes
1) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.
2) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.
Onde encontra as obras mencionadas:
Editora Caleidoscópio
Almedina
FNAC
Bertrand
Ler por aí…
Dossier RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade
[excerto de conversa com Nomen, Julho de 2016 no audiolivro (1)]
Como já aflorado neste dossier as primeiras referências oriundas do contexto internacional influenciaram a criação de grupos de RAP em Portugal, o aparecimento de breakdancers (b-boys e flygirls) e writers.
Outro dado interessante foi percepcionado durante o ciclo de debates organizado (Simões 2016), ao longo dessas sessões constatou-se que quer a música como as poesias RAP foram transversalmente descritas pelos presentes como modelos de expressão, dentro da «cultura» (hip-hop), mais próximos dos desfavorecidos e excluídos economicamente, ao passo que actividades como o djing ou o muralismo precisaram de um maior investimento de capital financeiro.
Nesta conversa gravada em Julho de 2016, Nomen, um dos primeiros writers portugueses, explica como o RAP influenciou a sua actividade como artista urbano, deixando pistas acerca da transformação verificada em ambas as práticas da «cultura hip-hop» e a dissociação/não complementaridade que ao longo dos anos foi sendo possível verificar em ambas as actividades.
As relações estabelecidas por comunidades juvenis de características distintas com as geografias urbanas, e vice-versa, calcularam diferentes formas de transitar e intervir nos espaços urbanos. Esses modos distintos de circulação traduzir-se-iam quer na própria constituição, organização ou disposição da cidade como em ''novos'' circuitos inventados por estes jovens nos quais recriaram e reforçaram dinâmicas de significação e valoração dos locais, inventando e reinventado os seus guiões e discursos quotidianos ou, readquirindo a proposta de Certeau (1980), outros «circuitos» e «mapas».
As mediações entre os protagonistas da «cultura hip-hop» e o mundo urbano foram a base do nascimento e da estruturação desta prática cultural. A cidade seria não mais do que um lugar de outros «circuitos» que funcionou como motor de criação e contribuiu para uma auto-encenação expressa no RAP (nas suas letras e poesias) bem como nas suas performances.
Nesses circuitos convergiram ideologias, histórias locais e translocais, influências, biografias e um conjunto semelhante de referências sonoras e musicais. Em simultâneo, com a massificação do hip-hop, as representações socioculturais da juventude urbana de final dos anos 80 e dos anos 90, apropriar-se-iam desta cultura dando aos seus praticantes por um lado um sentido ainda maior para as suas actividades ou práticas criativas, por outro lado um espaço maior de representação ideológica e de reivindicação fora do universo de origem, marcado pela imigração, a diáspora e o processo de retorritorialização, dando aos jovens das e nas margens novos paradigmas de actuação, de protagonismo social, assim como novos lugares de pertença sociocultural.
Porém, nestas mediações cresce quer nos grupos como nos sujeitos uma preocupação e exigência cada vez mais reclamada: a referente à sua «identidade».
O questionamento acerca da sua identidade, a sua permanente reafirmação, o sentimento de pertença de um «movimento» ou «cultura», o posicionamento num universo discursivo, ou a fixação numa comunidade com lutas aproximadas ou afinidades de natureza política ou afectiva tornar-se-ia uma exigência dentro do meio hip-hop em todas as suas vertentes, mesmo estando este baseado numa «cultura de retalhos» (Simões 2017).
111ª Recolha de Entrevista
Quota MS_00094
Fotografias: José Fernandes
2018 Perspectivas e Reflexões no campo
Dossier RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade
[conversa com Maze 1 e 2]
O momento em que a prática do RAP deu os primeiros passos em Portugal foi também o momento de afirmação de outras manifestações do «movimento hip-hop» como a dança (breakdance) e a pintura de murais (grafitti, muralismo). Foi ainda o momento em que esta prática assumiu uma missão na cultura popular que outras práticas musicais não haviam representado até então: a de fazer a reportagem das ruas e dos bairros (denominada pelos protagonistas de RAPortagem) alertando para aquilo que era um conjunto de problemas distintivos de uma primeira geração de filhos de imigrantes ou de afrodescendentes nascidos em Portugal, como o do racismo, da exclusão social, da pobreza, da xenofobia. Mas, este primeiro momento de afirmação foi também marcado por um conjunto de outras desigualdades, como as relacionadas com a condição feminina, também aqui exercidas, o que deu azo a uma desvalorização e/ou falta de atenção para os assuntos relatados nos repertórios e discursos falados das primeiras rappers, como a violência com base no género e o sexismo.
Apesar de tudo, por colocarem no centro, no corpo poético-literário de uma grande parte das suas criações, grupos de população invisibilizados do meio social, os agrupamentos RAP das décadas de 1980 e 1990 constituem hoje um património interessantíssimo para analisar uma parte da história contemporânea portuguesa do período pós-colonial.
O RAP constituiu ainda um relevante objecto de análise às lógicas de actividade verificadas entre os grupos culturais mais vulneráveis no âmbito discográfico e de entretenimento, especialmente aos seus paradoxismos. O modo como estes actores e estas actrizes despontaram e como, apesar da crítica expressa nos seus discursos falados à conjuntura social e ao modelo de funcionamento das indústrias da música dialogaram e dependeram delas permitiu reforçar um questionamento mais lato sobre uma retórica por demais «romantizada» acerca deste pioneirismo.
Maze, foi um dos integrantes de Dealema — um dos primeiros grupos de RAP que nasceram nas cidades de Gaia e do Porto —, a faixa usada neste excerto de uma conversa maior, realizada no âmbito desta investigação, faz parte do primeiro fonograma gravado, com o título O Expresso do Submundo (1996).
Dealema seria fruto da junção dos colectivos Factor X (Mundo e Dj Guze) e Fullashit (Fuse e Expeão) aos quais se juntaria Maze e deixariam seis registos discográficos.
Nesta conversa informal fala-se, entre outros assuntos, de secundarizações, retóricas visíveis e invisíveis que têm orientado e difundido a primeira década de gravação sonora deste domínio sonoro e cultural em Portugal.
Helena Silva
Simões, Soraia 2018. « Fixar o (in)visível: papéis e reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989 - 1998) », Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 7, No 1 | -1, 97-114. Brasil.
Simões, Soraia. 2018. RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril. As margens, o centro, paradoxos e contradições do RAP em Portugal. Esquerda.net.
Biblio/fontes
1) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.
2) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.
1) RAPublicar. Editora Caleidoscópio 2017
2) Fixar o (in) visível, Editora Caleidoscópio 2019
Onde encontra as obras mencionadas:
Editora Caleidoscópio
Almedina
FNAC
Bertrand
Ler por aí…
por Amanda Palomo Alves*
Apresentação de Comunicação proferida durante o “I Seminário Áfricas” ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 23 de maio de 2017.
Posso dizer que a construção deste breve texto, intitulado “Diálogos Transatlânticos: a trajetória de músicos cubanos na guerra civil de Angola (1975-1979)”, nasceu de algumas inquietações surgidas durante a realização de meu Doutorado no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, onde defendi, em 2015, a tese“Angolano segue em frente: um panorama do cenário musical urbano de Angola entre as décadas de 1940 e 1970”, sob a orientação do Prof. Marcelo Bittencourt.
Confesso, porém, que dediquei poucas linhas, fixadas em breves notas de rodapé, para falar da presença de músicos cubanos na guerra civil de Angola. Contudo, já conseguia vislumbrar a importância e a validade do tema, capaz de lançar novos olhares para a história recente de Angola.
Assim, minha abordagem tem início em 1975, ano em que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) proclama, unilateralmente, a independência de Angola. Porém, como sabemos, aquela data marcaria, também, o início de uma guerra civil travada entre os principais movimentos de libertação angolanos, a saber: o já mencionado MPLA, FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional pela Independência Total de Angola).
No momento em que se deu o conflito, os três movimentos de libertação perceberam que as alianças instituídas poderiam determinar os caminhos do confronto que se estabelecia e, gradativamente, o MPLA foi estreitando seus laços com os países do bloco socialista e, especialmente, com Cuba. Assim, na época da guerra, a presença de cubanos foi extremamente significativa em Angola. Nas palavras do intérprete e compositor angolano, Ruy Mingas, “nenhum outro povo esteve conosco tanto, e tão marcadamente, quanto os cubanos”[1]. Além de Cuba ter auxiliado no treinamento das forças guerrilheiras do MPLA, estiveram em Angola, médicos, construtores e professores cubanos. Nesta direção, vale assinalar a fundamental participação dos cubanos na criação do Ministério de Educação e Cultura de Angola, e na orientação dada aos conteúdos presentes em programas educacionais.
Entretanto, o grande desafio, lançado por mim, refere-se à significativa presença de músicos cubanos em Angola, principalmente, entre os anos de 1975 e 1979. Esses músicos, aliados ao movimento chamado “Nova Trova Cubana”[2], estiveram presentes num contexto bastante específico da história angolana, compondo e interpretando canções associadas a importantes acontecimentos sociais e políticos ocorridos no país. Entre esses músicos estavam, Silvio Rodriguez, Pablo Milanés, Noel Nicolau, Vicente Feliú, Lázaro Garcia e, ainda, músicos dos conjuntos “Los Cañas” e “Los Papines”.
Em uma carta destinada ao presidente do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), o compositor e intérprete Silvio Rodriguez descreve:
[...] quiero que me des la oportunidad de irme a Angola... Creo que en este sentido puedo ser útil en la elaboración de textos y, por supuesto, en música y canciones. Te informo que haré todo lo posible por esta decisión. El camino está escogido con serenidad y sin romanticismo.
Silvio Rodriguez, Habana, 15 de diciembre de 1975
Naquela ocasião, Silvio Rodriguez, e vários outros músicos, particularmente aliados ao movimento da Nova Trova, realizaram uma série de turnês por países estrategicamente escolhidos pelo governo cubano e, entre eles, Angola. Logo abaixo, podemos visualizar alguns desses momentos:
O músico Silvio Rodriguez em Angola (1976). Imagens disponíveis em Silvio: que levante la mano la guitarra, de Víctor Casaus e Luis Rogelio Nogueras, 1993 .
Angola, dezembro de 1976. Na foto, vemos os músicos Silvio Rodriguez, Noel Nicola, Pablo Milanés e os músicos do conjunto “Los Papines”. Foto: Vicente Feliú. Disponível em: http://anecdotariodelatrova.blogspot.com.br. Acesso em outubro de 2016.
No período em que esteve em Angola, Silvio Rodriguez compôs uma série de canções. Poderia citar: “Pioneros" (1976), "La Gaviota” (1976) e "Canción para Mi soldado" (1976). Outros músicos cubanos também incluíram em seu repertório temas associados a Angola. É o caso de Pablo Milanés, músico associado à “Nova Trova” que grava, em 1978, a canção “Havemos de voltar”, baseada num poema de Agostinho Neto. Citaria, ainda, o músico Carlos Puebla que, em 1977, compõe e grava a canção “Algo sobre Angola”.
Para além dessas importantes questões apresentadas, pretendo investigar, ainda, a relação desses artistas cubanos com os músicos angolanos, especialmente, entre os anos de 1975 e 1979. Sobre o tema, aliás, vale citar o artigo do crítico musical e pesquisador Jomo Fortunato. Num artigo intitulado “No fervor da canção política”, Fortunato nos fala da trajetória do compositor e intérprete angolano Mário Silva (ex-integrante do Agrupamento Kissanguela), e sua relação com os músicos cubanos acima mencionados, Silvio Rodriguez e Pablo Milanés:
“É possível detectar pontos de contato com a estética de Pablo Milanés e Sílvio Rodriguez (...) dois compositores que influenciaram a trova angolana, têm a capacidade de sintetizar o intimismo e os temas universais, com a mobilização e a consciência social e política. Importantes elementos de aferição e análise que encontramos na intencionalidade da música de Mário Silva”[4].
Outro importante nome a destacar é o da intérprete angolana Belita Palma (nome artístico de Isabel Salomé Benedito de Palma Teixeira), uma das integrantes do emblemático conjunto “N’gola Ritmos” que gravou, nos anos 1970, a canção “Fidel de Castro”. Destacaria, ainda, a canção “Angola-Cuba” interpretada pelo “Conjunto Musical das Forças Armadas de Angola” (FAPLA-POVO).
Nesta direção (e com base nas questões apresentadas), entendo que minha análise preliminar sinaliza para uma importante reflexão em torno do encontro e da circulação de músicos cubanos e angolanos, e das condições de produção e consumo daquelas composições em Angola na segunda metade do século XX. Ou seja, estamos tratando de dois países distantes geograficamente (separados pelo Atlântico), mas, fortemente unidos ideologicamente, politicamente e culturalmente.
Em outras palavras, sugiro a ideia de pensarmos em fluxo, emmobilidade, mas, acima de tudo, apontamos para uma reflexão e entendimento daquilo que se encontra no trânsito, por onde se movimentam bens culturais, discursos, símbolos e pessoas, afinal, estamos falando, também, sobre cultura e sobre regiões onde as culturas se encontram e, sobretudo, dos produtos desse encontro[5].
Neste caso, as fronteiras – entendidas como espaços de confluência de correntes culturais – não mobilizam, muito pelo contrário, são atravessadas. A ideia de “diálogos transatlânticos” é uma proposta de posicionamento com relação ao contexto que estamos trabalhando, afinal, a nossa pesquisa envolve aproximações e, mormente, a reflexão e o entendimento daquilo que se encontra no trânsito, por onde se movimentam bens culturais, discursos, símbolos e pessoas. Mais do que isto: como a canção pode ser, simultaneamente, um objeto de circulação, um espaço para a reflexão sobre o movimento e um produto das trajetórias pessoais dos autores?
As perguntas são várias, mas, reconheço a importância e a necessidade de discussões em torno de metodologias que possam me auxiliar na caminhada, mas, com relação à canção, já é possível assinalar a importância de estar atenta ao seu caráter polissêmico. Em outras palavras, privilegiar uma discussão em torno da relatividade de cada obra, ou seja, de tentar estabelecer mediações entre o nível estético e as instâncias políticas, econômicas e sociais. Em poucas palavras, a articulação entre texto e contexto se mostra indispensável, afinal, “canção alguma é uma ilha voltada para dentro de si”[6], pelo contrário, toda canção é dotada de características próprias e acaba assumindo, inevitavelmente, a singularidade e as características próprias de se autor e de seu tempo.
Enfim, as reflexões, as questões e as dúvidas compartilhadas com vocês estão muito longe de se esgotarem, pelo contrário, as considero um “ponta pé” inicial de um projeto que se pretende maior. De todo modo, já posso afirmar que o enfoque está no movimento: no movimento de pessoas, de ideias, de informações, referente a diferentes sociedades, e seus fluxos e refluxos de múltiplas naturezas. Obrigada!
[1]Entrevista concedida a Amanda Palomo Alves, em Luanda, no dia 04 de novembro de 2013.
[2]A “Nova Trova Cubana” foi um movimento musical emergente no final dos anos 1960, responsável pela renovação da canção popular em Cuba, ao combinar inovações estéticas e engajamento político. Em nosso país, as músicas dos cancioneiros da “Nova Trova” se tornaram conhecidas através de gravações de Chico Buarque e Milton Nascimento. Eu destacaria “Pequena Serenata Diurna”, de Silvio Rodriguez, gravada por Chico Buarque, “Yolanda”, de Pablo Milanés, gravada por Milton Nascimento e “Canción por la unidad latinoamericana”, de Pablo Milanés, gravada por Chico Buarque e Milton Nascimento. VILLAÇA, Mariana Martins. La política cultural cubana y el movimiento de la Nueva Trova. In: Actas del IV Congreso de la Rama Latinoamericana de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular (IASPM-LA).México, 2002, pp. 01-09.
[3] Carta de Silvio Rodriguez disponível em: http://ntd.la/silvio-rodriguez-tenia-una-ak-47. Acesso em setembro de 2016.
[4]FORTUNATO, Jomo. “No fervor da canção política”. In: Jornal de Angola, 18 de janeiro de 2010. Matéria disponível em:http://jornaldeangola.sapo.ao/cultura/no_fervor_da_cancao_politica. Acesso em outubro de 2016.
[5]Cf. HANNERZ, Ulf. “Fluxo, fronteiras, híbridos”. In: Mana 3 (1), 1997, p. 18.
[6]PARANHOS, Adalberto. A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo. In: ArtCultura: Revista do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia – Dossiê História e Música, nº. 9. Uberlândia, MG: EDUFU jul./dez. 2004, p. 26.
Amanda Palomo Alves* Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Integrante da Associação Mural Sonoro
A partir de dia 25 de junho de 2017 nas livrarias. Género: Audiolivro.
Trata-se de um audiolivro com cerca de 18 horas de recolhas de entrevistas dirigidas pela autora e investigadora entre 2012 e 2016 que procura cruzar as principais linhas de discussão neste campo e em torno de disciplinas como a história contemporânea e os estudos de música e cultura populares nestes anos (1986 - 1996) com o discurso e partilha de memórias e testemunhos de alguns dos seus principais sujeitos da história.
Soraia Simões refere acerca deste trabalho "ao usar a oralidade de um modo claro: os dados da minha análise com as experiências vividas pelos protagonistas procurei duas coisas. Em primeiro lugar uma leitura renovada sobre a história da cultura e sociedade portuguesas nestes anos tendo a expressão do RAP como vector principal, por outro lado demonstrar como algumas das principais alíneas temáticas no campo das ciências sociais foram levantadas, no campo da música e cultura populares, nestes anos por, não todos mas, alguns destes actores e actrizes e estão hoje a ser escrutinadas e à procura de respostas.
Achei que eles e elas podiam/deviam fazer parte dessa discussão, especialmente porque as levantaram num período em que as mesmas, por várias razões, que as conversas (a oralidade) explanam foram sendo adiadas.
Editar o que foi grande parte do meu trabalho de campo num audiolivro que é também um caderno de notas mesmo sob o ponto de vista do grafismo, homenageando assim o poeta/dizedor/rapper e MC destes anos e as dezenas de cadernos sebenta que me cederam durante estes anos de pesquisa (o qual transcrito serve a minha tese no âmbito académico) foi o modo como achei ser possível devolver essa memória, e a importância do que está inscrito nela, à sociedade e à cultura popular da segunda metade do século XX.
Permitindo que os mesmos contem, através das questões que lhes são colocadas, essa perspectiva histórica e a sua relevância num quadro social em profunda transformação" | Editora Caleidoscópio.
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por Soraia Simões de Andrade [1]
breves
As razões que contribuíram para os meios fonográficos se tornarem reprodutores de música confundem-se com as razões subjacentes ao uso e comercialização de uma ‘música erudita’ e de uma ‘música popular’. Seja os discos e as plataformas online, mais tarde, como meios de reprodução seja os instrumentos e a maquinaria adaptados ao mercado musical.
As razões pelas quais, não obstante da sua capacidade material representar uma experiência estética (e/ou técnica) distinta, os discos foram entendidos como formatos de um “som original” tornou-os essenciais para uma configuração social que se adaptou ao contexto social durante a segunda metade do século XX e que fez com que despontassem no meio musical opinadores sobre o formato final e não sobre a música em si mesma, mesmo nos meios de uma ‘música erudita’ em que o debruçar sobre a partitura se trocou pela opinião sobre o disco que fixou essa música, e a opinião transmitida em círculos sem ligação anterior a uma teoria ou leitura musical formal.
Para se entender o papel dos veículos de comunicação na cultura contemporânea tornou-se imprescindível abordar o seu cariz histórico-social.
No cariz social do meio sonoro-musical existe uma tendência para eleger a tecnologia como factor desencadeador de processos sociais.
Todo o meio se passou a assumir como uma entidade autónoma dos seus contextos sociais e históricos, no qual o efeito sensorial da tecnologia sobre o indivíduo e suas consequências na sociedade o foi transformando num motor da evolução social, uma extensão do humano e, até, incorpóreo, na medida em que a visão de uma nova sociedade – de uma ‘aldeia global’ – vira costas aos tradicionais valores que governavam as relações entre as pessoas e passa a ser o objecto final, e não a ligação directa e sequencial ao meio musical desde o momento em que a ideia surge até à sua organização (pauta, junção de harmonia/melodia/ritmo/dispositivos e materiais diversos), a causa. O meio existente passou a ser a causa e tudo o resto os efeitos sobre a mesma.
Para mim, uma das consequências mais negativas deste formalismo é fazer refém de uma perspectiva limitada uma série de factos complexos, que não passam pela materialidade do meio. O terem-se preterido aspectos fundamentais, como os significados da técnica num determinado tempo na sociedade e os seus efeitos sociais. Problemáticas sobre as quais as determinações político-económicas e científicas contribuíram para que alguma tecnologia fosse implementada e se tornassem, para muitos, despropositadas, ainda que se saiba, na prática, que são fundamentais.
A organização social dos meios fonográficos em bens culturais (desde os esforços científicos, para a reprodução sonora, que levaram à criação do telégrafo, ao veicular de impulsos eléctricos como informações por redes de receptores com e sem fio, ou necessidade de registar esse fluxo de informação) faz parte de um contexto historicista em toda a música, que a transformou em si mesma num produto de entretenimento assente numa indústria de comunicação muito desatenta ou que delega para segundo plano o envolvimento com os processos de criação.
Fotografia da minha autoria tirada durante conversa na ''Casa Museu'' de Nuno Siqueira, disponível em: Nuno Siqueira, História Oral Mural Sonoro
Dossier RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade
Quota MS_0001 Europeana Sounds [ realizada em Julho de 2012 no âmbito do Mural Sonoro, repescada posteriormente para o audiolivro e para este Dossier]
"Os meus pais chamaram-me Nuno Santos, o meu bairro chamou-me Chullage", refere.
É um músico - rapper, dizedor, produtor - e sociólogo filho de pais cabo-verdianos.
Cresceu no Monte da Caparica, no Asilo 28 de Maio, onde iniciou o seu gosto e ligação ao rap, e mudou-se para a Arrentela (no Seixal) onde acaba por desenvolver trabalho de campo no âmbito social activo.
Em 1993, ano em que se mudou com a família para a Arrentela, formou o seu primeiro grupo digno desse nome De "187 Squad" e a 'crew' Red Eyes G.
Em 1997 Chullage começou a fazer notar-se pelo seu percurso a solo.
Em 1999, convidado por D-Mars (Micro), entrou na colectânea Subterrânea com os temas 'Resistência' e 'Ciclo Infernal' e colaborou no fonograma Microestática, de Micro. Foi sendo convidado para entrar em diversas mixtapes (de DJs como Bomberjack, Sas, Cruzfader ou NelAssassin).
No seu legado fonográfico contam-se: 'Rapresálias (Sangue Lágrimas Suor)' de 2001, que representou até uma mudança de paradigma no 'circuito de produção independente' ao ser a primeira edição independente do Rap português a ultrapassar os três mil discos, 'Rapensar (Passado Presente e Futuro)', lançado em 2004 (pela etiqueta Lisafonia) acabando por posteriormente ser eleito como álbum do ano pelos leitores da revista Hip Hop Nation (e o video “National Ghettographik” o segundo melhor do mesmo ano) e Rapressão (de 2012).
Nesta recolha de entrevista Chullage fala, entre outros aspectos, das suas primeiras referências musicais, que o fizeram despertar para o rap e cultura hip-hop ( como o caso do vinil de Rebel Mc da Zulu Nation), das suas primeiras improvisações e do primeiro grupo que criou com enfoque no improviso, os Black Brothers, das suas ligações à diáspora, a Cabo Verde, ao bairro onde cresceu e ao contacto enquanto morador mais recente com a cidade de Lisboa, de noções que o inquietam na urbe e lhe servem tantas vezes de mote para a criação como: a migração, as 'identidades', o espaço social e o exercício atento e crítico relativamente às suas dinâmicas, ou noções com uma parca operacionalidade como a ideia de 'multiculturalismo' na cidade, que acabou por lhe servir de deixa, num repto que lhe lanço no fim da conversa: a composição em tempo real (improviso) a partir dessa palavra/referência.
Fotografia de capa: Augusto Fernandes no âmbito do Ciclo «musicAtenta» de Mural Sonoro em Novembro de 2012
Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adia (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.
Simões, Soraia 2018/9 no prelo Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.