Entrevista integral traduzida para  português de Jairo Marcos para Suplemento Cultural do Jornal da Bolívia La Razón (Edición Impresa)

Jairo Marcos (La Razón)  Que é o fado? Ou seja, como é que se pode definir brevemente esta música a uma pessoa totalmente estranha? 

Soraia Simões (Mural Sonoro) Como qualquer prática musical de matriz urbana é complexo defini-la em parcas palavras, sobretudo devido à sua mutação, permeabilidade com novos intérpretes, criadores, poetas, guitarristas e letristas, mas para quem tem curiosidade em conhecê-lo o melhor é ouvi-lo. As definições a respeito da sua significância são por norma feitas numa perspectiva indutiva e afectiva por parte dos seus intervenientes: os fadistas. E dentro dos mais diversos discursos há quem a ele se refira, do ponto de vista poético-literário mas também emocional, como uma canção popular identificativa da cidade de Lisboa e usando na adjectivação a respeito deste domínio frequentemente as palavras ‘’saudade’’ e ‘’destino’’. Mas, qualquer comunidade de prática tem um conjunto variado de valores expressos nos discursos que lhe imprimem conotações variadas, pelo que a sua definição é sempre redutora. Os aspectos e nomes que o enformam são o que, quanto a mim, melhor caracterizam o género: os fados tradicionais (o ‘’corrido’’, o ‘’menor’’ e o ‘’Mouraria’’), os poetas, letristas, criadores, intérpretes vários que carregam a sua história e ajudam à sua identificação. Esses são impreteríveis conhecer, além da evidência para a maioria dos estrangeiros que é Amália Rodrigues, como sejam: Hermínia Silva, Fernanda Maria, Beatriz da Conceição, Maria Teresa de Noronha, Jaime Santos, Martinho de Assunção, Raul Nery, Armandinho, Joel Pina, Fontes Rocha, Alfredo Marceneiro, Fernando Maurício, Lucília do Carmo, Linhares Barbosa, Carlos do Carmo, poetas e compositores que lhe imprimiram outras nuances como: David-Mourão Ferreira, Alain Oulman, Pedro Homem de Mello, Frederico de Brito, José Carlos Ary dos Santos, etc e outros contemporâneos e que ora fizeram crescer o entendimento sobre o género ora levá-lo para um mar convulso cheio de influências variadas de outros campos da música popular, e até erudita em alguns casos particulares, e com outras esferas de ouvintes/públicos, que foi alargando o espectro da recepção musical como: Mafalda Arnauth, Mísia, Aldina Duarte, Cristina Branco, Camané, Pedro Moutinho, Herder Moutinho, Carminho, Ana Moura, Jorge Fernando, Raquel Tavares, Jaime Santos Jr, Ricardo Rocha, Marco Oliveira, Ricardo Ribeiro, e autores de poemas e letras como: Maria do Rosário Pedreira, Manuela de Freitas, Tiago Torres da Silva ou José Luís Gordo entre tantos outros. 

Jairo Marcos (La Razón) Quais são os elementos chave de um fado? Estou a pensar por exemplo se é suficiente com uma letra qualquer e um bom fadista. Ou é necessário também uma atmosfera concreta, sempre uma guitarra, etc.? 

Soraia Simões (Mural Sonoro) Bom, a resposta a esta questão está praticamente dada em alguns dos nomes que refiro atrás, na pergunta anterior, mas há na realidade determinadas características que são a história e vivência deste universo: ser tocado com uma guitarra portuguesa, uma viola e uma voz, ter na sua estrutura poético-literária quintilhas, sextilhas, redondilhas maiores e menores, um leque de poetas e letristas que o vão mantendo vivo e interessante dentro e fora da comunidade de prática. De qualquer modo, dada a sua transversalidade, temos exemplos de gente do fado que não obedece a estas características de um modo estaticista e mesmo assim fez ou faz fado. O caso de Rão Kyao que tocou saxofone e flauta em discos de fado ou, entre outros, o caso do piano usado neste universo musical como, entre outros no passado, o fez recentemente o pianista Júlio Resende de um modo bastante interessante. 

Jairo Marcos (La Razón) Reflecte o fado o caráter português? É a melancolia do fado mais uma projeção da forma de ser dos portugueses em geral? 

Soraia Simões (Mural Sonoro) Reflecte, como qualquer outra prática musical em Portugal, características dos indivíduos que o compõem e nele cooperam há um largo tempo. Mas, há fados mais melancólicos, outros mais alegres, outros jocosos, há até os reivindicativos. Como qualquer prática musical e cultural atenta sobre as vivências das pessoas que o habitam. E essas pessoas têm características sociais, humanas, estéticas e ideológicas que variam. O fado, como qualquer género, reflecte isso: essas vivências, essas emoções.

Jairo Marcos (La Razón) Falamos em todo caso de uma música de classes? Ou seja, é uma música hoje universal mas com origens populares, origens que continuam presentes atualmente nas suas letras? 

Soraia Simões (Mural Sonoro) Como qualquer música popular, dada a mutabilidade das sociedades, agentes e executantes que dela fazem parte, congrega todo o tipo de grupos sociais e isso reflecte-se nas letras e no modo de interpretar, tocar e até na gravação.

Jairo Marcos (La Razón) Como é que se define o momento actual do fado? Estou a pensar por exemplo na aposta de Ana Moura com ‘Desfado’. Significa que o fado está a evoluir e que também pode ser alegre?

Soraia Simões (Mural Sonoro) Mas, o fado, como disse há pouco, sempre foi tudo isso: alegre, triste, comovido, displicente, eloquente, telúrico, jocoso e mais adjectivos que lhe queiram colocar. Basta escutar alguns dos nomes que lhe referi na resposta às perguntas antecedentes para reparar que ele sempre teve tudo isso e muito mais. 

Jairo Marcos (La Razón) O fado foi declarado Património Imaterial da Humanidade. Quais são as consequências disto? Por quê é importante? 

Soraia Simões (Mural Sonoro) Acho que ele continuará vivo como sempre esteve, profissionalizante como sempre foi, a questão da candidatura veio especialmente permitir estudá-lo, contextualiza-lo e conseguir com que uma das práticas culturais e musicais mais expressivas em Portugal não fosse encarada num plano de secundarização. Veio, quanto a mim, apenas reforçar o seu interesse para a vida dessa comunidade (a artística e a da cidade de Lisboa sobretudo) tornando-a um objecto de interesse para a sociedade portuguesa e para a vida cultural dessas comunidades.

La Razón (Edición Impresa) / María Ángeles Fernández y Jairo Marcos, Reportagem, 06 de Abril de 2014