[1] por Dulce Simões
A vila de Lazarim, no Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, reinventando a tradição. No processo de institucionalização das práticas carnavalescas recuperam-se os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno, que atribuem sentido e significado à vida da comunidade.
Carnaval em Portugal. Máscaras de Lazarim. Reinvenção da tradição. Testamentos dos compadres e das comadres. Rituais carnavalescos
The village of Lazarim, located in the North of Portugal, found a time of exception in Carnavalto reassure its cultural identity by the reinvention of traditional practices. In the process of institutionalization of carnival’s practices, rites as well as symbols and texts associated to the winter feasts were recovered and enlivened, attributing meaning and signification to the life of the local community.
CARNIVAL IN PORTUGAL. MASKS OF LAZARIM. REINVENTION OF TRADITION. TESTAMENTOS DOS COMPADRES E DAS COMADRES. CARNIVAL RITUALS.
INTRODUÇÃO
As comunidades rurais possuem um conjunto de saberes e de práticas que pretendem preservar e transmitir às gerações futuras, como património cultural e identitário. A vila de Lazarim, no concelho de Lamego, Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, recuperando os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno. A partir de 1985 as práticas carnavalescas foram institucionalizadas, num modelo performativo que procura mostrar a tradição local ao mundo global. A intervenção da Junta de Freguesia, da Casa do Povo e a vontade política dos seus elementos foram determinantes para a reinvenção da tradição, numa acção concertada com a escola e o envolvimento das famílias. No processo de invenção da tradição (HOBSBAWM & RANGER, 1983) recuperam-se os saberes de um passado rural que atribui sentido e significado à vida da comunidade, resgatando práticas culturais como capital simbólico (BOURDIEU, 2001).
Na perspectiva etnográfica de uma descrição densa (GEERTZ, 1978), partimos para Lazarim levando na bagagem algumas leituras sobre práticas carnavalescas no Norte de Portugal, e os textos divulgados na Internet pela Câmara Municipal de Lamego. Em termos metodológicos entrelaçámos a história e a antropologia, articulando a pesquisa documental e bibliográfica com o trabalho de campo, ao longo do qual realizámos entrevistas com informantes institucionais (presidente da Junta de Freguesia, presidente da Casa do Povo, pároco local e professor), com informantes privilegiados (artesãos de máscaras e representantes dos grupos dos Compadres e das Comadres), e conversas informais com residentes e visitantes. Neste artigo questionamos os mecanismos de construção e preservação das práticas carnavalescas, numa comunidade rural cuja componente agrícola se desvaneceu, com o enfoque na cultura popular (BAKHTIN, 2002) e nas práticas performativas (CONNERTON, 1999). Numa permanente dialéctica entre o passado e o presente, mediado pela memória dos nossos informantes, estruturámos o texto em três partes, analisando as mudanças no mundo rural e os sentidos e significados atribuídos à festa, no processo de construção de identidades locais.
O ESPAÇO, OS LUGARES E AS PESSOAS
Lazarim é uma freguesia portuguesa do concelho de Lamego, distrito de Viseu, Beira Alta, com 15,71 km² de área, e uma população residente de 686 pessoas, num total de 236 famílias (Censos 2001). Historicamente é identificada através de vestígios arqueológicos pré-celtas, romanos e visigóticos, atribuindo os habitantes a sua origem à aldeia das Antas, actualmente desabitada. Os primeiros documentos referentes a Lazarim datam do início do séc. XIII, quando beneficiava do título de Vila, com administração autárquica e o nome associado ao antropónimo latino de um senhor agrário. A estrutura social da comunidade assentava na família e no Município, implementados pelo sistema de propriedade. A terra era explorada a nível familiar durante três gerações, gozando os herdeiros de preferência na renovação do contrato de arrendamento com os senhores da terra, fidalgos e ordens eclesiásticas. A posse da terra determinava a estrutura linhageira e o casamento endogâmico, fixando a herança na linha agnática. A Igreja impunha o casamento exogâmico, tornando nulo o casamento entre parentes, sendo os documentos registados como divórcios relativos a anulações, por denúncias feitas à Igreja. Em 1273 a povoação ficou praticamente desabitada, em virtude da peste que assolou a Beira, perdendo o título de Vila com a promessa de lhe ser restituído após povoamento, e durante 200 anos cessaram referências documentais. Em 1505 recuperou o título de concelho, por contrapartida do reconhecimento público ao novo donatário, “D. João de Menezes, Conde e senhor das ditas terras e concelhos” (COSTA, 1977, p. 91). No séc. XIX voltou a perder o título, recuperando-o simbolicamente a 21 de Junho de 1995.
As diferenças entre lugares não são identificáveis no plano material, através da observação do espaço geográfico, porque este apresentava-se homogéneo ao nosso olhar. A heterogeneidade justifica-se ao nível simbólico e histórico, associada às famílias que os construíram ao longo do tempo, designando-os por Padrão, Vila e Valverde.
Existe uma competição entre os três lugares, e no Carnaval sente-se isso, esconde-se para ser melhor, e por um lado até é bom essa competitividade, mas às vezes também é exagerado porque se pode perder o controlo da própria pessoa, e criam-se as rivalidades que prejudicam a paz e a serenidade entre as pessoas. (Agostinho Ramalho, pároco local)1
O lugar do Padrão demarca-se na entrada da vila, circunscrito à zona da ribeira, integrando à direita o solar dos Vazes, deixado por herança para residência oficial do Pároco local, e à esquerda o solar do Barão de Lazarim em ruínas. O lugar da Vila é o núcleo habitacional mais antigo, com a Casa da Câmara construída em granito, ruas estritas, onde se misturam as habitações de alvenaria com as de granito e xisto. Valverde fica na encosta e é o núcleo mais moderno, destacado pelas residências em alvenaria. O espaço do Lazarim integra estes lugares, transformados ao longo de gerações pelos seus habitantes, com os saberes que reproduzem o quotidiano. A terra outrora fértil já não serve as necessidades económicas das famílias, apesar de continuarem a cultivá-la para o consumo das casas. Os canastros, ao longo dos campos, testemunham um passado ligado à terra, mas presentemente os residentes dependem dos serviços em Lamego, ou do trabalho na construção civil, mantendo as actividades agrícolas em paralelo. A maioria das pessoas de Lazarim migrou para Lisboa e Porto, apesar de se ter verificado uma emigração bastante significativa para o Brasil nas décadas de 1940 e 1950. No Brasil fixaram-se em Caju, Rio de Janeiro, e em São Paulo, e poucos regressaram. Em Lisboa e Porto criaram comunidades de migrantes, regressando a Lazarim para as festas de Verão, para a matança do porco, ou para ajudar nas vindimas. Mas durante o Carnaval são sobretudo os jovens que regressam para participar na festa.
O CARNAVAL JÁ NASCEU CONNOSCO, JÁ OS VELHOS FAZIAM ISSO
O Carnaval constitui um sistema simbólico associado à transição do Inverno para a Primavera, do velho para o novo, da morte para a vida, do frio para o calor, da parte masculina para a parte feminina do universo, reunindo diversos significados que assinalam este ciclo na vida das comunidades rurais. Um ciclo de renovação cósmica e social, tempo de utopia e transgressão, onde tudo o que é socialmente marginalizado busca uma libertação catártica, vencendo simbolicamente a hierarquia, a ordem, a opressão, e o sagrado. Na Idade Média as festas carnavalescas convertiam-se simbolicamente na “segunda vida do povo”, que ascendia, temporariamente, ao reino da utopia, da universalidade, da liberdade, da igualdade e da abundância (BAKHTIN, 2002). O Carnaval representa um ciclo na vida das comunidades, mais ou menos representativo conforme os significados que as pessoas lhe atribuem:
O significado histórico é mais importante do que o significado que eu lhe atribuo como participante. O significado desta quadra festiva é para mim gozo e prazer, mas o significado histórico já vem da Idade Média e mistura o profano com o religioso. Como o ano é dividido liturgicamente o Carnaval é o aliviar de uma certa carga religiosa. Antes as pessoas eram mais participativas na igreja católica e então tinham estas fugas para libertar o seu espírito e sair um bocadinho da rotina. (Norberto Carvalho, presidente da Junta de Freguesia)2
Nesta perspectiva, todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo, da alternância, da renovação, e da consciência sobre a relatividade das verdades e autoridades do poder (BAKHTIN, 2002, p.10). Para Veiga de Oliveira (1984) o Carnaval provém das Saturnais romanas, que se caracterizavam como um período de completa liberdade licenciosa, durante o qual tudo era permitido (OLIVEIRA, 1984, p. 38). Este ciclo temporal, em que o curso normal da vida é suspenso, dando lugar a rituais de inversão e subversão, contrariando a ordem social, pode ser designado por “liminar” (TURNER, 1974, p.117), com os seus “rituais de passagem” (VAN GENNEP, 1978, p. 31). Em Lazarim, o Carnaval foi recordado pelos mais idosos como um tempo vivido no interior da comunidade, como prática de resistência aos poderes instituídos e como paródia burlesca:
O Carnaval já nasceu connosco e já os velhos faziam isso, mas o Carnaval era mais rigoroso nesse tempo, o pessoal não era tão educado. Qualquer briga de namorico ou da rega das águas, era pago nestes dias. Havia quase sempre zaragatas. … Também acompanhei o farranjo mas no entanto eu livrava-me das marés, que é quando via a coisa a ficar azeda, porque às vezes o Carnaval durava mais de um ano pelos tribunais. (José Rua, reformado)3
O Carnaval serviu para “ajuste de contas” entre vizinhos, mas também para afrontar os poderes instituídos. As práticas rituais de inversão nas sociedades católicas ocidentais assinalam um tempo de utopia. Este tipo de pensamento utópico, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, em que os dominados concebem a inversão, e a negação de uma ordem social, radicalmente diferente daquela que vivem (SCOTT, 2003, p. 126). Durante o Estado Novo as práticas carnavalescas em Portugal estavam sujeitas à aprovação das autoridades locais, muitas vezes dominadas pela Igreja. Em Lazarim proibiram-se os mascarados (Caretos) e a leitura dos testamentos do Compadre e da Comadre, por intervenção directa do pároco local junto do Bispo de Viseu.
O Entrudo, com os testamentos, era para a igreja de então algo prejudicial para a moral da sociedade. Então eles nesses dias em que esperavam que ia haver este tipo de rituais mandavam vir a GNR, eram as histórias que os meus pais contavam dos anos trinta e quarenta. (Norberto Carvalho, presidente da Junta de Freguesia)
Na década de 1940 era comum o pároco local pedir um destacamento da Guarda Nacional Republicana (GNR) para reprimir possíveis manifestações de desobediência. Num desses anos, os guardas da GNR estavam reunidos em casa do pároco, comendo e bebendo, quando foram surpreendidos pelo disparo de um tiro de caçadeira, que os pretendia amedrontar. O alvoroço na aldeia foi generalizado, e procederam-se a buscas e interrogatórios para encontrar o culpado. No decorrer das averiguações foram chamados ao Regedor todos os homens que tinham armas de caça, e a aldeia acorreu em peso. Quando o processo chegou ao juiz de Lamego estavam envolvidos todos os homens da aldeia, unidos em protesto colectivo, mas foram ilibados da sentença e prevenidos pelo juiz a não repetirem o sucedido. Na aldeia todos sabiam que o autor do disparo era o filho do Regedor, mas nunca o denunciaram. A sua acção representou uma vontade colectiva, e uma forma de resistência ao poder dominante4.
Havia muitas vinganças. Eu tinha uma tia que era professora primária mas era muita má. E não havia Entrudo em que ela não saísse para moer, inclusive no marido. Para dar pancada, mas pancada a sério. (…) Eram as mulheres que se vestiam de Careto. É um ritual de inversão não tenha dúvidas, é assim que eu me lembro da minha infância. (Amândio Lourenço, Presidente da Casa do Povo)5.
Lembro-me do Carnaval desde novinha, mas não era assim, saíam mais vezes mascarados com uns paus e a canalha sempre atrás deles, a gente era nova e gostava imenso e agora também gosto muito. Só uma vez é que fiz um testamento, ainda não namorava o meu marido. Achava graça e também gostava de meter a minha achada contra eles. Eles eram mais atrevidos do que agora, não com falta de respeito às raparigas que havia muita, mais do que agora, mas nas zaragatas. (Elvira Fernandes, reformada)6.
O Carnaval aqui em Lazarim sempre foi meio maroto, até que agora nem é, é bonito e é um sossego. A evolução da vida é que faz isso. Antigamente as freguesias não se podiam ver umas às outras, agora os daqui casam com os de fora, os de fora casam com os daqui e a evolução do tempo é que vai fazendo isto e cada vez a coisa está mais normalizada, e assim é que é bem. (Afonso de Almeida e Castro, artesão de máscaras)7.
Os testamentos da Comadre e do Compadre tiveram consequências sociais graves, que se reflectiram em processos judiciais e noivados desfeitos. A memória colectiva preserva esse tempo de conflitos, atribuindo à evolução dos tempos a normalização das relações entre vizinhos. Por outro lado, a institucionalização das práticas carnavalescas retirou a componente de transgressão e de secretismo que girava em torno dos Caretos, e do grupos das Comadres e dos Compadres. A leitura dos testamentos realizava-se nos três lugares de Lazarim, permitindo a criação de um percurso que envolvia todo o espaço da comunidade numa unificação simbólica. Actualmente concentra-se no Largo do Padrão, frente ao edifício da Junta de Freguesia. Esta alteração obriga os habitantes a deslocarem-se a um único lugar, mas permite aos forasteiros acompanharem todas as fases do ritual. As práticas carnavalescas transformaram-se numa representação performativa para visitantes, e a animação dos Caretos resume-se a um desfile de mascarados, pousando para secções fotográficas, não desempenhando o papel socialmente desestabilizador pelo qual são recordados.
Para o processo de reactivação e reinvenção das práticas carnavalescas foi determinante a acção dos membros da Casa do Povo e da Junta de Freguesia, em colaboração com a Escola Primária e o Núcleo da Telescola, coordenado pelo professor Joaquim Simões:8
Nós, escola, temos feito intervenções junto da localidade começando pelo Carnaval. Levámos para a escola toda esta vivência do Carnaval, desde a confecção das máscaras, nas aulas de EVT, às fardetas e à própria gastronomia. Eles trazem as carnes e as mães vêm ajudar a fazer o caldo de farinha e partilhamos isso tudo como uma família alargada.
A Junta de Freguesia e a Casa do Povo, com o apoio da Câmara Municipal de Lamego, asseguraram os meios económicos para a organização da festa, no sentido de a preservar, contudo, esse processo pode ser analisado pelo ponto de vista da institucionalização, como testemunha Amândio Lourenço:
Eu, ao criar a Casa do Povo em 1981, peguei no assunto. Deu-se-lhe orientação, deu-se-lhe ritmo, organizou-se, está a perceber? Em vez de ser livre sem qualquer intervenção de ninguém a organizar, passou a ser a Casa do Povo a assumir as custas. Da sua originalidade não perdeu nada, deu-se-lhe foi mais um bocado de orientação, de organização para que os media tirem mais proveito deste trabalho. Porque o princípio que nos rege é particularmente os mesmos. (…) O objectivo foi preservar uma das mais ricas tradições de Lazarim que foi e é, a tradição mais rica. O objectivo é cultural, mas hoje já tem um peso comercial tremendo.
A promoção e divulgação do património cultural tem obviamente contrapartidas económicas, sobretudo para os pequenos comerciantes locais e para os artesãos das máscaras de madeira, mas tem igualmente uma contrapartida simbólica que não pode ser ignorada, o prestígio dos agentes culturais. O prestígio é observável ao nível da presença dos representantes do poder local e regional, de investigadores e museólogos, como roteiro cultural de elites urbanas, e pela presença de representantes da comunicação social à escala regional e nacional. Contudo, a reinvenção da tradição revela esquecimentos, que permanecem nas memórias de alguns membros da comunidade, como recordou Isabel Loureiro9:
Perdeu-se a semanas das amigas e dos amigos porque as pessoas esqueceram-se um bocado e a vida também mudou. Nesses dias e nessas semanas havia comidas associadas e era uma forma da mulher que não podia aparecer, nem podia dar a cara e então castigava o homem em casa, para ele ter cuidado com aquilo que fazia depois. Era engraçado e eu já nem me lembro como era bem, os meus pais é que têm isso escrito lá em casa.
Alberto Correia (2003) elaborou um calendário do ciclo do Carnaval em Lazarim, associando as relações de poder entre os grupos de género, com as comidas confeccionada à base de carne do porco. O calendário iniciava-se no quinto domingo anterior ao domingo gordo, assinalando a Semana dos Amigos. Durante esta semana a mulher exercia o poder sobre o homem, através da comida que confeccionava, “o homem era castigado com a apresentação de alimentos de pouca valia, como um caldo de farinha com moira”. Na semana subsequente, a Semana das Amigas, “as mulheres como donas do lar não prescindem de iguarias, como a chouriça, um enchido nobre que desafia a magreza da moira”. No domingo seguinte iniciava-se a semana dos Compadres, com os homens ainda subalternizados e condicionados ao consumo da moira. Por oposição, na semana sequente, a Semana das Comadres, as mulheres deliciam-se com salpicão (CORREIA, 2003, pp. 18-19). Durante as semanas dos Compadres e das Comadres os grupos realizavam peditórios para angariar fundos para a construção das suas mascotes, que hoje são encomendadas pela Casa do Povo a um artesão local. As relações de poder entre os grupos de género traduziam a submissão da mulher durante a vivência quotidiana na comunidade. A festa criava o espaço de excepção, e a utilização de práticas catárticas que permitiam ao grupo a criação de um mundo alternativo.
TODOS OS ANOS SAIAMOS MASCARADOS
Os estudos etnográficos sobre festas de Inverno no Norte de Portugal classificam o mascarado como um representante do diabo, da morte, do riso, do vício, gozando de uma impunidade a todos os níveis, em que “os mascarados da festa dos rapazes, tal como todas as personagens do Nordeste Transmontano, são veículo de um discurso mais ou menos simbólico e ritualizado ligado à transgressão, à licenciosidade e à liminaridade” (NETO JACOB, 1995, p. 386). A máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais e da ridicularização, baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espectáculos (BAKHTIN, 2002, p. 35). Como nos diz Lévi-Strauss (1981), “uma máscara não existe em si (...) não é aquilo que representa mas aquilo que transforma, isto é: que escolhe não representar. Como um mito, uma máscara nega tanto quanto afirma; não é feita somente daquilo que diz ou julga dizer, mas daquilo que exclui” (LÉVI-STRAUSS, 1981, p. 124).
Em Lazarim, três gerações de artesãos, com diferentes expressões artísticas, transfiguram um tronco de amieiro, árvore que nasce nas margens do rio Varosa, em figuras representativas da tradição local. Cada um destes homens regista simbolicamente nas suas máscaras, o seu universo cultural e o seu imaginário. Afonso de Almeida e Castro nasceu em Lazarim, em 1926, descendente de uma das famílias mais antigas da vila. O seu pai foi Regedor durante vários anos, e com a família aprendeu a arte de trabalhar o campo:
Os meus pais viviam do campo e ajudava-os quando era pequeno. Naquele tempo não havia dinheiro para comprar máscaras de plástico, nem plástico havia que eram de cartão. Mas já existia isto, sem ser eu, isto não vem de mim, já vem de tradição antiga. E como eu não tinha dinheiro e queria brincar ao Carnaval resolvi fazer de madeira. Eu tinha os meus dezasseis, dezassete anos quando comecei a fazer as máscaras, mas era como calhava, era dois buracos e uma boca, pronto, e um nariz. Umas saíram mal, outras começaram a sair menos bem, e outras a sair bem. Quando regressei do Brasil, esses rapazes que já sabiam que eu as fazia pediram-me para fazer. Vendia-as a 25 tostões.