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PhD research

Literaturas de uma Mulher Musical em Trânsito (resumo)

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Literaturas de uma Mulher Musical em Trânsito (resumo)

Amélia Muge com Samora Machel, Maputo

1975

foto de *António Quadros

**por Soraia Simões de Andrade

O passado por pouco que nele pensemos é coisa infinitamente mais estável que o presente — Marguerite Yourcenar 

Arrastando tempestades

Que nos fustigam as carnes

Desfazendo com uivados

O que foi a nossa imagem

Resto de nós, quase aragem… — Amélia Muge

Mas, eu assim o quis! — Friedrich Nietzsche

A força poética (a energia) do mundo, mantida viva em nós, apõe-se por frémitos frágeis, fugazes, à presciência poética que divaga nas nossas profundezas — Édouard Glissant

O empoderamento ensina que não é diante das relações de poder que tens de te rebelar, contestar e questionar, mas que tens de procurar um suposto lugar de empoderamento, que te dê um espaço dentro do próprio esquema de poder, sem mudar as relações de poder dentro do próprio esquema de poder que te submete – María Galindo

Breve resumo

Amélia Muge (n.1952) é intérprete, compositora, ilustradora. É também historiadora de formação. Talvez isto explique algumas das suas opções poéticas, como se verá. Sujeito de um contexto social e de um universo artístico especiais – como o são todos, dirão, e tendemos a concordar – marcados por descontinuidades com modelos de produção musical e de recepção precedentes e continuísmos de índole ideológica. Imprime, numa primeira fase, uma linguagem nitidamente engajada ideologicamente e, numa fase sucedânea, jogos de palavras. Na sua criação convivem símbolos da ancestralidade africana e da Grécia Antiga – diferentes recursos expressivos que abrangem uma duplicidade de sinais e mitologemas –, suportada por lendas, contos, poemas, narrativas, fábulas. É na discografia de uma compositora que vai metamorfoseando o seu repertório a seguir à independência do país onde nasceu, Moçambique, que esta reflexão se centra. A sua música está marcada pela persistência de uma história da trifurcação para onde converge a história das ideias, poéticas do diverso, e a filosofia. Os textos que musica, ou cria de raiz, partem de invenções mitológicas; não por se envolverem e deixarem intoxicar pelas épocas e daí a intérprete retire escalas incomuns; mas por realçar neles tempos, imaginários, lugares de um modo equidistante que distinguem a sua música de  compositores com ligações a contextos muito semelhantes  e, portanto, dão-nos pistas curiosas acerca das suas  prioridades culturais e musicais.

Se partirmos de uma das breves, mais claras, explicações para a ficção, dada pelo ensaísta James Wood (n.1965), quando declara que o ficcionista é o que se aproxima da verdade ocultando pormenores íntimos, o que os tapa para a verdade conseguir dizer; pensemos como algumas das líricas  apelam à descrição por via do onírico, do desconhecido, de indagações, e não do factual. Por outro lado, há uma dimensão de coisas nomeadas sensitiva contrária à razão.  Podemos afirmar que são arranjos de  mentiras que nos cantam verdades. Ou, sob outro prisma, se Mundus Est Fabula, se o  mundo é já uma ficção, como nos fala esse partido imaginário que dá pelo nome Tiqqun na sua famosa Theórie du Bloom, pois Bloom é todo aquele ou aquela incapaz de se separar do imediato que [n]os detém; somos, inevitavelmente, errantes que, com as suas práticas artísticas, mostram esse nada absolutamente real à luz do qual tudo o que existe se torna fantasmagórico. Se Bloom vive dentro de Bloom, mesmo diante da mais inquebrantável das renúncias, à volta está um universo de coisas e nenhuma nos pertence por completo.


O repertório de Amélia seleccionado para este estudo é per se uma micro-história da sua intuição e do seu autodidactismo face às mudanças sociais. Ainda que imaginária, e profundamente cultural, persegue uma ideia de música onde há uma incorporação da tradição e da hodiernidade. Esboça, com especial porfia, uma metafísica da canção literária onde derivas de autores clássicos e dos seus contemporâneos coincidem; estamos diante formas sonoras e linguísticas que irrompem a tensão entre forças dionisíacas e apolíneas. Isto é, entre uma força que concentra formas inexplicabilis e um enlevo de harmonizações que, não raras vezes, a própria preenche com noções e teorias para a música que faz. Há momentos em que não sabemos onde inicia um discurso artístico e termina um discurso investigativo. A intérprete foi tendo muitas coisas para dizer, ora de modo não declarativo ora declarativo, acerca das suas criações. O mais das vezes, o que apresenta são formulações que vai retirando de geografias e tempos distantes dos presencialmente vividos mas que se complementam criando ambientes pluri-sinestésicos de grande nobreza fonética e afectiva preparando os ouvidos para sonidos fora das convenções histórico-antropologizantes comuns sobre “repertórios femininos em contexto colonial e decolonial”. Apesar de tudo, por meio da força volitiva e intuitiva, é-nos possível situar características dessas mudanças permanentes em registos musicais, letrísticos e polemísticos entre 1975 e o início do novo milénio, nos quadros culturais moçambicano e português. Contudo, é também previsível que haja momentos no seu percurso em que não queira estar presa a nenhuma época; cada tempo não é unicamente o tempo de um pentagrama, por muito tocada que seja uma cifra ela é um objecto inacabado, a menos que definhe precocemente ou a matem antes de poder fazer o seu caminho até vários ouvintes ao longo da vida.
A compositora acolhe e abandona reiteradamente sinais extemporâneos. Retorna às estruturas fixas que alimentam o poder como feminino, masculino, portuguesa, moçambicana, música popular e literatura, mas também lhes contrapõe pensamentos da errância e da totalidade (relacional e dialéctico), procura outros desígnios e subverte discretamente os convencionais. Ao sair do concreto para o abstracto, do local para o inextinguível, numa tentativa de superação das limitações das geografia e história política; recolhendo, misturando, reinterpretando, abandonando expectativas das indústrias musicais para si, vai reagir artisticamente e criticamente, em várias fases, às  narrativas culturalistas que dominam a academia; mas igualmente de algum jornalismo musical sob uma aura pretensamente crítica, mimetizadora de um registo universitário e onde conflui, por vezes, a crónica de costumes descentrada do objecto artístico. 
Há uma firmeza e um estoicismo que movimentam o processo, em estúdio e fora, uma transmudação de axiomas, a recorrência de epânodos e o retorno às ancestralidades culturais. Com a  ideia de transmutação de todos os valores salvaguardada, Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) resgata e adapta a si a noção de Eterno Retorno que está na génese do projecto de transmutação dos valores [Umwerthung aller Werthe]. Ela aparece pela primeira vez nos escritos de 1886 como subtítulo de um dos cadernos para uma obra que Nietzsche tem como missão escrever e irá titular de A Vontade de Poder [Der Wille zur Macht]. A transmutação dos valores abre, de par em par, janelas a diversas experiências estéticas uma vez arrancadas as peias éticas tradicionalistas menos atreitas a desvios, mudanças e rupturas. Nietzsche é o filósofo da intuição, não demonstra ser um bibliógrafo ou um profundo conhecedor da história filosófica; mas vai colando a si elementos de transitoriedade da cultura moderna por meio da revivificação da tragédia antiga de que a música de Wagner é um exemplo. Algo relativamente comum na elite cultural alemã é a menção à Grécia pré-cristã e à tragédia como reabilitadoras da cultura e da arte, não sendo por isso ex nihilo este seu interesse. 
A afeição pelo trágico, o inescapável, o mito como fábula e narrativa ancestral, tem um lugar surpreendente, como discutível, na música. Não queremos com isto descurar o papel da obra do autor prussiano-germânico, como ela é capaz de desencadear uma irreprimível febre da experimentação, de sondagem e exploração do inconsciente, diferente da prosseguida por Sigmund Freud (1856 – 1939). Se para o pai da psicanálise os instintos humanos são impulsionados pela satisfação do prazer, sexual ou alimentar, e pela agressão, levando o sujeito a reprimir os seus instintos de modo a não prejudicar o colectivo – donde, os instintos  auto-boicotados são um sintoma daquilo que a sociedade não aceita –, para Nietzsche o inconsciente não é uma força opressora que precisamos conter. É, antes, uma parte necessária e saudável da vida tal como o é a consciência: uma fonte de indizíveis que enriquece os nossos ensaios. Experimentar é ensaiar, repetir, arriscar, relacionar. Assim é na música e num texto desta natureza. Ao contrário de Freud, que enfatiza as repressão e sublimação, o inconsciente nietzscheano não é uma zona de coibição, conflitual, mas uma dimensão vital da existência que não devemos punir moralmente. Porém, o que aqui nos importa reforçar, é que se Nietzsche recria figurações de conceitos a partir de pedaços da história e da sociedade que possam corresponder às suas percepções por instinto – de Dionísio ao Eterno Retorno e à Vontade de Poder – para os ir eliminando de modo continuado, Amélia Muge é uma compositora da intuição e da mescla: ideias e lugares presentes no vasto legado fonográfico sugerem um ademane símile ao encontrado em  textos do músico, poeta, filólogo-filósofo alemão. E que se é Nietzsche quem urde a ideia da filosofia como uma medicina da cultura, compomos com a artista uma diagnose de cerca de três décadas de composições literário-musicais entre dois momentos da história Moçambique-Portugal com  boa parte do seu repertório lírico, composicional, discursivo, em pano de fundo. 

Há no seu repertório uma repetição que, no dicionário fluido de Glissant, seria um “retomar sem cessar o que desde sempre foi dito” que mais não é que um modo de conhecimento só possível por acumulação, acrescento, que no saber se obstina. Uma “condição da liberdade” de não se ser “nem governado por uma história, a não ser a que generaliza, nem limitado por um lugar, se este não for espiritual”.
    Ao iniciarmos esta dissertação de doutoramento apercebemo-nos do risco, novos rumos e modelos estão a ser delineados; quisemos arriscar. Combinamos teorizações ainda não exploradas na história da música popular a partir de uma compositora com uma profícua produção desde os anos sessenta. Devido à nossa longa experiência de abordagem à música feita em Portugal, e à caminhada musical de Muge particularmente, sem pausas desde 1975, à paixão por música e ao interesse longínquo por textos inabituais musicados, achámos uma brecha para sondar outras vias críticas a partir de uma mulher musical na diáspora. É que o diálogo com compositoras mostra-nos mais do que uma soma de sucedidos relativamente fácil de cartografar sobre os discos; seria uma incúria não retirar da penumbra o vislumbrado na multiplicidade das suas experiências com a música, os textos, a palavra dita, escrita, cantada; e os contingentes da "vida cultural". Entre conjunturas nacionais e internacionais há uma vertente histórico-filosófica que realçamos e debatemos nesta reflexão crítica. Contamos com registos sonoros, fílmicos, e uma bibliografia de enquadramento teórico com preeminência da História das Ideias e da Filosofia.

palavras-chave: Vontade de Poder; Utopia feminista; Canção literária; Eterno Retorno, Dor, Nostalgia, Ressentimento, Poéticas do relacional, Inter-subjectividade

*António Quadros também conhecido sob os pseudónimos João Pedro Grabato Dias, Mutimati Barnabé João, Frey Ioannes Garabatus, que usaremos ao longo do texto.

**Bolseira FCT «em ambiente não académico/2022.11092.BDANA» [https://sciproj.ptcris.pt/88514DFA] até 2026-09-30. Bolsa atribuída pelo painel Línguas e Literaturas (2022-2026)

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