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Dulce Simões

“E o mar é tão grande”: utopia e liberdade nas cantigas de José Afonso, por Dulce Simões

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“E o mar é tão grande”: utopia e liberdade nas cantigas de José Afonso, por Dulce Simões

por Dulce Simões*

A canção lírica e satírica de raízes populares encontrou uma surpreendente renovação nas últimas décadas de resistência à ditadura do Estado Novo (1933-1974), e após o 25 de Abril de 1974 na luta pela consolidação de uma democracia participativa. Em ambos os processos José Afonso foi um trovador da liberdade, e uma das figuras mais marcantes da canção de intervenção em Portugal, desempenhando, desde os anos sessenta, um importante papel no combate à ditadura, através do canto e da poesia. Ao longo da sua obra manteve uma linha poética inspirada no cancioneiro popular na maioria das suas canções, para além de ter musicado e recriado temas e poesias de outros autores1. Ao cultivar e recriar diversos géneros musicados, como o “fado de Coimbra”, a balada e as canções populares de várias regiões de Portugal, transformou os versos e as músicas das suas cantigas em mensagens de luta pela liberdade, afirmando: “Semeio palavras na música. Não tenho pretensões de dar a estas minhas deambulações pela música popular qualquer outro rótulo. Faço apenas canções. A canção insere-se sempre dentro de um processo. A sua eficácia depende do processo em que se insere. A sua importância depende da vastidão desse processo” (Ribeiro, 1994).

O escritor Urbano Tavares Rodrigues, referindo-se ao álbum de fonogramas Cantares de Andarilho (1968), sublinhava: “José Afonso, trovador, é o mais puro veio de água que torna o presente em futuro, que à tradição arranca a chama do amanhã, a primeira voz da massa que avança em lume de vaga, a mais alta crista e a mais terna faúlha de luar na praia cólera da poesia, da balada nova” (Ribeiro, 1994). Para o escritor Óscar Lopes, a obra de José Afonso insere-se na tradição poética portuguesa, desde as barcas que levavam para a guerra o amigo, das canções trovadorescas de Martim Codax, passando pelas águas, o arquétipo das almas apaixonadas e livres de Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, até ao vento, símbolo romântico da paixão e da revolta (Óscar Lopes cit. em Raposo, 2007: 65). Óscar Lopes também assinalava os ritos paralelísticos, a enorme liberdade de fantasia enternecida, solidária ou sarcástica, proporcionada pelo perfeito entrosamento entre a letra e a música, em motivos folclóricos rurais ou marítimos.

A ruralidade constituiu um dos elementos centrais da obra de José Afonso, refletida nas canções de embalar, nas canções de roda e de trabalho, ouvidas durante a infância e juventude decorridas em Belmonte e Coimbra, às quais imprimiu os mais legítimos anseios e aspirações das pessoas, no sentido da intervenção social2. O seu espírito de andarilho será marcado por sucessivas andanças, entre terra e mar, configurando “uma personalidade nómada, e uma inclinação para a divagação e para a abstração” (Cravo, 2009: 15). A errância e a inquietude vieram manifestar-se na maioria das suas cantigas, nas quais o mar é um tema apelante3.

fotografias de Dulce Simões

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O mar e as temáticas marítimas estão presentes na poética da sua obra, de forma explícita, associadas ao romantismo coimbrão e a realidades sociais concretas, e de forma implícita, servindo de metáforas de revolta e contestação política durante a ditadura de Salazar. Destacamos neste artigo os motivos marítimos na discografia de José Afonso, por manifestarem influências culturais entrosadas no seu percurso de vida, e serem recriados num legado poético de intervenção política e social. Nesta perspectiva, identificamos numa primeira fase da sua obra a presença do mar relacionada com as viagens entre África e Portugal desde a infância, com os dias de veraneio passados em Espinho e na Figueira da Foz, e com as deambulações pelas praias do sul até aportar em terras algarvias. Nesta fase da sua vida, profundamente marcada pelo romantismo e lirismo coimbrão, o mar é resgatado do cancioneiro popular açoriano nos temas “Balada” (1956) e “Mar Largo” (1956). Na canção “Balada de Outono” (1958), referida por alguns eruditos como representativa de uma rutura com o “fado de Coimbra”, José Afonso é ainda dominado pelo imaginário do trovador romântico, enamorado e solitário. Mas, em “Tenho Barcos Tenho Remos” (1962), reflecte claramente as suas experiências de vida, aliando o enamoramento à fraternidade em comunhão com o mar algarvio. Contudo, nunca deixará de recriar canções populares açorianas alusivas ao mar e às suas gentes, como em “Os Bravos” (1967) e “S. Macaio” (1969), da mesma forma que articula temáticas marítimas em canções de embalar, como “Menino d’Oiro” (1962) e “Balada do Sino” (1968).

A relação com o mar e com as comunidades piscatórias adquire particular relevância na sua vida e na sua obra a partir de 1960, quando se fixa em terras algarvias. Nas quais descobre a atmosfera “um pouco pagã” das festas populares, a “confraria de foliões” a que se associou, e Zélia (sua segunda mulher), que o reconciliou com “a água fresca e com os tons maiores”, fazendo eclodir aquilo que definiu por “canções maiores” (Simões & Mendes, 1995: 100). Nas “canções maiores” o mar e as temáticas marítimas atribuem sentido e significado à vida dos pecadores, como nos poemas “Ó Vila de Olhão” (1964) ou “Ti Alves” (1972), denunciando desigualdades e injustiças sociais. Mas também exprimem o flagelo da guerra colonial e da emigração em “Menina dos Olhos Tristes” (1969) e “Canção do Desterro” (1970), como metáforas e símbolos de liberdade, articuladas com o protesto político em “Vejam Bem” (1968), “Já o Tempo se Habitua” (1969), “Canto Moço” (1970), “Cantiga do Monte” (1970), ou em “Fui à Beira do Mar” (1972).

Numa nova fase da sua vida, marcada pelo 25 de Abril de 1974, o poeta e trovador da liberdade assume-se como “poeta militante”, aludindo a um tempo em que “o que faz falta é avisar a malta”. Um tempo durante o qual participou ativamente no Processo Revolucionário em Curso (PREC), manifestando-se frontalmente contra os “traidores da revolução”, como no poema “Viva o Poder Popular” (1975). Nesta fase a poética do mar perde relevância nas suas cantigas, exceto para dar voz às conquistas populares em “Os Índios da Meia Praia” (1976)4. No início da década de 1980 José Afonso retorna às origens coimbrãs, naquela que será a última fase da sua vida. Como cantor, reinterpreta o “fado de Coimbra” como herança cultural renovada, assumindo e definindo os contornos de um trabalho inovador. Como poeta, resgata o mar como metáfora de uma fraternidade utópica, posicionando-se, uma vez mais, como provocador de emoções e agitador de mentalidades. Neste artigo revisito a discografia de José Afonso focalizada na poética do mar, entretecida no percurso de vida de um homem que interveio socialmente “semeando palavras na música”.

fotografias de Dulce Simões

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 A poética do mar e das águas: tradição popular, utopia e liberdade

As águas do mar, pela sua grandiosidade, provocaram sempre uma emoção intensa quando vistas pela primeira vez. No cancioneiro popular, a largueza, ou imensidão do mar, constitui uma das características mais assinaladas nos versos do cancioneiro popular português, como em “Ó mar largo, ó mar largo”:

Ó mar largo, ó mar largo

Ó berço do marinheiro.

Às tuas águas salgadas

Vai banhar-se o mundo inteiro.

(Galhoz, 1997: 62)

 

Embarquei-me no mar largo,

Já perdi vistas à terra,

Já não vejo senão céu,

Água e vento que me leva.

(Nunes, 1978: 112)

 

José Afonso resgata o poema de Paulo de Sá, “Mar Largo”, para uma das primeiras gravações discográficas:

 

“Mar Largo” (Paulo de Sá/José Afonso, 1956)

Ó mar largo ó mar largo

Ó mar largo sem ter fundo

Mais vale andar no mar largo

Do que nas bocas do mundo.

 

Fosse o meu destino o teu

Ó mar largo sem ter fundo

Viver bem perto do céu

Andar bem longe do mundo.

 

No primeiro volume do Cancioneiro Popular Português, coligido por Leite de Vasconcelos, representam-se profusamente as fainas piscatórias dos “trabalhadores do mar” (1975: 264-275). Nestes versos, manifestam-se as preocupações decorrentes da vida dos pescadores sobre as águas do mar, ou seja, “em cima da sepultura”, exteriorizando as inquietações de quem tem os entes queridos entregues a essa labuta. Por vezes, surgem desabafos, em que estremecem lufadas carregadas do cheiro acre do sal, marulhos estrepitosos envoltos em fuliginosas sombras trágico-marítimas, e não faltam notas dramáticas de naufrágio e morte: “O pobre do pescador/ Já lá morreu afogado:/ Foi à pesca, lá ficou/ Nas ondas do mar rolado” (Nunes, 1978: 49). Estas e outras trovas marcam o sofrimento das pessoas que vivem dependentes do trabalho no mar, enfrentando obstáculos incontroláveis como os ventos, a chuva, a doença, que constituem não só um impedimento à obtenção de ganhos, mas que podem fazer surgir o espectro da morte, como no caso da iminência de um naufrágio. A ausência de segurança torna-se particularmente dramática na vida das gentes do mar, e “ser pescador é desempenhar uma actividade qualificada como profissão de alto risco, onde o número de acidentes mortais é francamente superior ao de outros sectores produtivos” (Nunesª, 1999: 287). Neste sentido, justifica-se que José Afonso tenha exaltado a bravura destes homens, numa canção que recria uma quadra do cancioneiro popular português.

Cancioneiro Popular

As ondas do mar são brancas

E no meio amarelas

Coitadinho de quem nasce

Para morrer no meio delas.

(Vasconcelos, 1975: 20)

Os Bravos” (Popular açoriana/José Afonso, 1967)

(…)

As ondas do mar são brancas

Bravo meu bem, e no meio amarelas,

Coitadinho de quem nasce

Bravo meu bem, para morrer no meio delas.

(…)

“Os Bravos” era uma canção popular frequentemente cantada em coro pelos estudantes de Coimbra, originários das ilhas dos Açores e da Madeira, que pertenciam às repúblicas “Corsários das Ilhas” e “Couraça dos Apóstolos”. José Afonso conviveu com estes grupos, e acrescentou à sua canção um curto estribilho, sobreposto aos acordes de uma escala musical espanhola (Simões & Mendes, 1995: 95). O mar da saudade e das ausências está muito presente na tradição popular, exprimindo as emoções daqueles que ficam, quando levados pelas vicissitudes da vida partem para além-mar noivos, maridos, filhos ou irmãos.

 

“Balada” (Popular açoriana/José Afonso, 1956)

(…) Quando o mê mano se foi

Sete lenços encharquei

Mai la manga da camisa

E dizem que não chorei. (…)

 

No cancioneiro popular soam imprecações contra o mar que separa, causador de dolorosas angústias, ou, tratando-se de temperamentos mais sofredores, ouvem-se os votos de que, para a pessoa bem-amada, “o mar se lhe torne em rosas / O navio num jardim”. Surge então a saudade, cuja especiosa “anatomia” foi feita por D. Francisco Manuel de Melo: “amor e ausência são os pais da saudade; e como nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por amoroso e nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências, daí vem que, donde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas.” (Nunes, 1978: 35). As saudades, acarretadas pela ausência, trazem consigo grande inquietação e o desejo ardente de um breve regresso do amado. Para minorar as saudades tenta-se utilizar o lenitivo de mensagens, que José Afonso tão bem recria a partir de uma canção popular açoriana:

“Canção Longe” (Popular açoriana/José Afonso, 1967)

Ó meu bem se tu te fores

Como dizem que te vais

Deixa-me o teu nome escrito

Numa pedrinha do cais.

(…)

“Balada de Outono” (José Afonso, 1960)

(…)

Águas

Do rio correndo

Poentes morrendo

P’rás bandas do mar

Águas

Das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto

A cantar

Rios que vão dar ao mar

Deixem meus olhos secar

Águas

Das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto

A cantar

A separação, com as consequentes saudades e lágrimas, ocupam lugar de relevo na lírica popular, sendo evocada a fonte que “não tardará a secar”, por oposição aos olhos “que não param de chorar”. Mas em “Balada de Outono” (1960) José Afonso inverte o sentido do poema, apesar de reflectir uma poesia dominada ainda pelo espírito coimbrão, como produto de um estado perpétuo de enamoramento, numa espécie de revivescência tardia da juventude, com “uma certa disposição fisiológica propensa à melancolia” (Simões & Mendes, 1995: 95). O trovador crê-se insubstituível, como um protagonista que a si próprio se interpela, para convocar a presença das águas dos ribeiros e dos rios, como testemunhas vivas do seu solitário cantar. O poema aponta para uma maior liberdade formal na construção das estrofes, com versos livres e desconcertantes, característica que José Afonso vai assumir como sua, de acordo com “o seu temperamento de homem pouco dado a regras e cedências” (Cravo, 2006: 44). No álbum de fonogramas Balada do Outono (1960), José Afonso introduz pela primeira vez o termo “balada”, para se libertar e diferenciar a sua obra do “fado de Coimbra”, de forma a poder expressar livremente as suas inquietações. Talvez por isso, o seu trabalho não foi particularmente bem recebido nos meios estudantis e académicos de Coimbra, conservadores e defensores de regras preestabelecidas.

Coimbra sempre lhe pareceu uma cidade pequena, e o mundo académico atrofiante para o seu génio desassossegado e livre, e então vagueava. Na entrevista a Viriato Teles, José Afonso afirmou: “Dormia ao relento, muitas vezes sozinho, outras vezes com outros gabirus. Fiz muito auto-stop, de capa e batina (…) Foram deambulações muito importantes para mim” (Teles, 1983: 21). “Menino do Bairro Negro” (1963) nasceu de uma dessas deambulações à boleia, de capa e batina, até ao Porto, cidade onde os amigos lhe deram a conhecer a Ribeira e o Barredo, realidades que não se confrontavam com o meio estudantil. Como mais tarde recordou: “o Porto para mim foi fundamental. (…) Tudo aquilo me chocou de uma maneira espantosa. (…) Lembro-me de ter visto os meninos que pululavam por aquelas ilhas. Foi uma coisa que eu pensei que só existisse nos filmes” (Salvador, 1983: 79). A canção “Menino do Bairro Negro” foi editado em 1963, no álbum de fonogramas Baladas de Coimbra, assinalando um dos primeiros temas vincadamente políticos, juntamente com “Os Vampiros”, que foram proibidos pela Censura. Para José Afonso, os meninos do Barredo eram os “meninos de ouro” que habitavam os céus antes do Dilúvio, “que descem à Terra e são condenados pelo tribunal de Menores a viverem em habitações palafiticas até ao dia do Juízo Final, representado por uma bola de cartão que desce, desce até tocar nas montanhas” (Simões & Mendes, 1995: 96).

 

“Tecto na Montanha” (José Afonso, 1968)

Num lugar ermo
Só no meu abrigo
Aí terei meu teto
E meu postigo

(…)

Olha o mar alto
Olha a maresia
Olha a montanha
Vem rompendo o dia.

fotografias de Dulce Simões

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A balada “Teto na Montanha”, editada em 1968, foi concebida no período das deambulações dos tempos de Coimbra, “em estado de penúria física e mental”, numa fase que José Afonso caracterizou de “mais ou menos franciscana”. Durante esta fase mística da sua vida, e embora não se reconhecendo como “devoto”, leu o “Hino ao Sol” de São Francisco de Assis, e alimentou uma enorme simpatia pela doutrina de amor à natureza e desprendimento pelos bens materiais perfilhadas pelos franciscanos, que assimilou como bastante realista e revolucionária. De tal forma que chegou a pensar: “Qualquer dia reduzo-me ao essencial e piro-me para uma terra qualquer, no cimo de uma montanha, daí aquela cantiga (…) Era frequente em Coimbra trocar de camisa com outros gajos. Era um símbolo, um testemunho de amizade” (Teles, 1983: 21). A fraternidade marcava os anos de Coimbra, onde uma certa “loucura” representava um sinal de pureza, alimentando os anseios de um mundo mais justo e igualitário.

No ano letivo de 1960/1961 José Afonso aporta em terras algarvias como professor, e descobre o mar da libertação, emocionalmente debilitado pela ausência dos filhos e pela rutura do primeiro casamento. Durante a sua permanência no Algarve, até 1964, inicia uma nova fase da sua vida. No desempenho das suas funções de professor fixou-se primeiro em Lagos, onde partilhou, com “figuras típicas” da cidade, “as beberragens, os arrozes de conquilhas e as caldeiradas” intercaladas de canções. Posteriormente, em Faro, percorrendo um sem-número de coletividades e espaços públicos, nos quais exprime a sua arte maior como cantador, constrói uma visão idílica do Algarve, convencido de que aí encontraria maior liberdade e menos interdições: “Algarve o nome me está lembrando/ Algarve e a brisa passa a cantar/ E as sombras leva-as o vento voltando/ Silêncio dizem as ondas do mar” (Salvador, 1983: 126). Todavia, deparou-se com uma sociedade profundamente marcada pelo controle social, na qual o Carnaval era a “válvula de escape”, a máscara da liberdade. Todavia, a experiência de vida em terras algarvias alargou os seus horizontes literários e poéticos. As suas especulações existenciais e metafísicas encontraram o epicentro de discussão no convívio com um grupo de intelectuais, companheiros de viagens marítimas e de sonhos, que metaforicamente inspiraram as suas canções.

A balada “Tenho Barcos, Tenho Remos” é um dos temas mais representativos desta fase de libertação do poeta-cantor, na qual expressa o amor por Zélia, a “quem não pode chegar” em virtude do controle social a que ambos estavam sujeitos. Paralelamente revela o convívio com os poetas surrealistas, que contribuíram para a depuração da palavra escrita. Porque apesar de nunca se ter assumido como poeta, José Afonso deixou muitos textos poéticos escritos à margem da sua produção como cantor, “reconhecendo a influência que sobre ele tiveram os surrealistas, tanto franceses como portugueses” (José Jorge Letria cit. em Cravo, 2006: 50). Neste tema, incluído no álbum de fonogramas “Baladas de Coimbra” (1962), José Afonso idealiza-se metaforicamente barco, navio, mar, livre de amarras, interrogando-se sobre o seu percurso de vida de adolescente a adulto, arriscando um tópico surrealista “o ser mulher” (Cravo, 2009: 58). No poema encontramos igualmente algum paralelismo com uma canção popular de Olhão:

Cancioneiro Popular (Olhão)

Tenho barcos, tenho redes

Tenho sardinha no mar

Tenho uma mulher bonita

Que não me quer trabalhar

(Vasconcelos, 1975: 274)

Tenho Barcos, Tenho Remos” (Popular/José Afonso, 1962)

 

Tenho barcos, tenho remos

Tenho navios no mar

Tenho amor ali defronte

E não lhe posso chegar.

 

Tenho navios no mar

Tenho navios no mar

Tenho amor ali defronte

Não o posso consolar. (…)

 

O aludido barco, comprado e recuperado pelo poeta surrealista António Barahona, batizado de “o barco do Diabo”, foi pertença de uma “pequena sociedade de foliões”, constituída por José Afonso, António Barahona, Manuel Pité, António Bronze e Luísa Neto Jorge. Entre os pescadores de Faro o barco era alcunhado pelo “Tosse Tosse”, como referência erótica às viagens e noitadas do grupo pela ria, no qual, Luísa Neto Jorge era a única mulher a bordo (Salvador, 1983: 123). “Tenho Barcos, Tenho Remos” expressa vivências partilhadas, numa comunhão perfeita com o mar algarvio, agrupados “numa espécie de ciclo fraterno representativo de uma das fases mais felizes da vida do autor” (Simões & Mendes, 1995: 98).

 

“Canção do Mar” (José Afonso, 1964)

Ó mar

Ó mar

Ó mar profundo

Ó mar

Negro altar

Do fim do mundo

(…)

O tema evocado vive da valorização sonora, dada pelo acompanhamento musical e pela repetição cadenciada da palavra “mar”. Para José Afonso a dificuldade consistiu em fazê-lo passar ao plano abstrato, como elemento omnipresente no espírito do cantor, fora do ambiente convencional para que foi criado (Simões & Mendes, 1995: 97). “Canção do Mar”, juntamente com “Ó Vila de Olhão” e “Maria”, dedicado a Zélia, faz parte do álbum de fonogramas Cantares de José Afonso (1964), no qual as temáticas marítimas servem para expressar claramente o seu posicionamento perante a vida e a sociedade, fruto das vivências com alunos do ensino noturno, trabalhadores estudantes de Faro e de Olhão, que o despertaram para novas realidades sociais (Salvador, 1983: 137)5.

Quando residia em Faro, José Afonso deslocava-se todas as semanas a Olhão, deambulando pela vila, em passeatas puramente contemplativas “pelas cabanitas e pelo cais”, apreendendo a labuta dos “trabalhadores do mar”. Dessas passeatas, e das relações que ia estabelecendo com os pescadores, nasceu o poema “Ó Vila de Olhão!”, manifestando uma clara paixão pelo lugar e pelas pessoas. Como mais tarde recordou: “Não sei bem porquê. Imaginava-a a terra do trabalho, ou a terra de indivíduos temperados pela experiência” (Salvador, 1983: 139). O escritor Raul Brandão, na sua obra “Os Pescadores”, fala-nos dos sentimentos de igualdade e fraternidade que caracterizavam “o marítimo de Olhão”, consciente de que no mar os homens eram todos iguais, por enfrentarem os mesmos perigos e partilharem o mesmo destino. A fragilidade e a incerteza da faina marítima alimentavam a religiosidade dos pescadores, reforçando a solidariedade, “arriscando a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim”. E como “o mar abundante e pródigo não tem cancelas, são generosos, imprevidentes e comunistas” (Brandão, s/d: 159).

 

“Ó Vila de Olhão” (José Afonso, 1964)

(…)

Larga ó pescador

O que tens na mão

Que o peixe que levas

É do teu patrão

É do teu patrão

É do teu patrão

 

Limpa o teu suor

No camisolão

Que o peixe que levas

É do cais de Olhão

 

Vem o mandarim

Vem o capitão

Paga o pagador

Não paga o ladrão

Não paga o ladrão

Não paga o ladrão

 

Ó vila de Olhão

Da Restauração

Madrinha do povo

Madrasta é que não

(…)

 

Em 1922, Raul Brandão escrevia: “há meio século, Olhão, entranhado de salmoura e perdido no mundo, vivia só do mar. Todos se conheciam. Os que não eram marítimos eram filhos ou netos de marítimos, contrabandistas uns e outros, pescadores costeiros e pescadores do alto que iam à cavala a Larache. (…) Havia muito peixe, e a vida era extraordinária” (Brandão, s/d: 156). José Afonso reencontra-se com o mar e com as fainas marítimas nas sucessivas viagens a Olhão, sobretudo de comboio, designando-a por “minha terra adotiva.” Sobre o poema que lhe dedicou, a que chamou uma “crónica rimada”, recorda uma dessas viagens que deram sentido e significado às palavras: “A meio do caminho da Fuzeta, entre Olhão e Marim, a vila vai-se adelgaçando, a viagem torna-se mais rápida e ruidosa, devido ao vento que entra pelas janelas. Pode-se berrar sem que ninguém nos ouça. Foi assim que nasceu esta crónica rimada. Servida pela cadência mecânica do «pouca-terra», versa em tema alusivo às vicissitudes por que passa o mexilhão quando o mar bate na rocha. A culpa não é do mar” (Simões & Mendes, 1995: 104).

Em 1968, a doença de Salazar e a tomada de posse de Marcelo Caetano como Presidente do Conselho de Ministros gerou algumas expetativas de transformação política e social6. A “Primavera Marcelista”, designada como o período histórico compreendido entre 1968 e 1970, no qual se verificou uma discreta modernização económica e uma liberalização política moderada, acalentou a esperança de uma transição política do regime e influenciou a poesia de José Afonso. Durante este período, o mar e as temáticas marítimas servem frequentemente de metáforas para apelar à mobilização e consciencialização política dos portugueses.

 

“Vejam Bem” (José Afonso, 1968)

Vejam bem

Que não há só gaivotas em terra

Quando um homem se põe a pensar

Quando um homem se põe a pensar

 

Quem lá vem

Dorme à noite ao relento na areia

Dorme à noite ao relento no mar

Dorme à noite ao relento no mar

(…)

“Vejam Bem” foi o tema musical do filme “O Anúncio”, apresentado no Festival de Cinema Amador pelo Cineclube da Beira, retratando a vida de um homem que procura emprego, dirigindo-se ao gerente de uma firma conceituada, a capatazes e mestre-de-obras, em vão. Privado de meios de sobrevivência, vê-se obrigado a dormir ao relento e a roubar para comer. Na retrete de um restaurante, único lugar onde não é visto, devora apressadamente dois ovos que metera ao bolso, aproveitando-se da algazarra geral. É à luz deste contexto dramático que poderão entender-se a linha melódica e o texto rimado, apensos às sequências julgadas mais expressivas (Simões & Mendes, 1995: 104). “Gaivotas em terra” é uma expressão popularmente utilizada para anunciar metaforicamente uma tempestade, ou um período conturbado de mudança. “Quando um homem se põe a pensar” representa um primeiro passo para a mudança, como processo de transformação social, em que o pensamento consolida o sentido da acção e da revolução. O motivo de “dormir ao relento”, usado frequentemente na poesia de José Afonso, representa a sua própria experiência de vida, embora no poema possa exprimir a condição social dos mais carenciados, ou o encontro fraterno dos que partilham os mesmos ideais de mudança.

“Vejam Bem”, tema do álbum de fonogramas Cantares de Andarilho (1968), assinala a fase política e culturalmente mais interventiva de José Afonso, aproveitando a escassa abertura da “primavera marcelista”. Neste trabalho, alia a criatividade poética à mais genuína inspiração popular, através da utilização de melodias tradicionais, mas “Vejam Bem” foi sem dúvida uma das canções mais marcantes da sua obra, transformando-se numa espécie de hino da “geração de 70”, na qual as temáticas marítimas apelam metaforicamente a uma liberdade desejada. Todavia, a transformação política do regime encontra fortes resistências à sua concretização, nomeadamente em relação à guerra colonial e à acção da polícia política (PIDE). Marcelo Caetano cede às pressões dos grupos mais conservadores do regime, facilmente percebidas pela oposição democrática e pelo Partido Comunista Português na clandestinidade. José Afonso capta e regista com clareza a correlação de forças políticas contrárias à mudança, no poema “Já o Tempo se Habitua”, usando metaforicamente elementos estilísticos marítimos.

 

“Já o Tempo se Habitua” (José Afonso, 1969)

(…)

Nem a rota

Da gaivota

Ao vento norte

Nem toda

A força do pano

Todo o ano

Quebra a proa

Do mais forte

Nem a morte

(…)


“Já o Tempo se Habitua”, com poema e música de José Afonso, é um dos temas do álbum de fonogramas Contos Velhos Rumos Novos (1969), galardoado com o prémio da crítica da Casa da Imprensa 1969. Neste álbum, fruto da recolha de música tradicional portuguesa, na procura de uma estética renovada, José Afonso demarca-se definitivamente da tradição coimbrã. Ao intercalar temas do cancioneiro popular com canções de denúncia e resistência, como “A cidade”, com poema de José Carlos Ary dos Santos e “Era de noite e levaram” de Luís de Andrade, numa alusão às prisões arbitrárias da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), assinala na sua obra os “rumos novos” anunciados pela “primavera marcelista”.

No sentido da mudança, José Afonso participou ativamente na campanha das Comissões Democráticas Eleitorais de 1969, empenhou-se nas ações da Liga de União e Acção Revolucionária (LUAR), na produção e distribuição de folhetos noticiosos e livros proibidos, e solidarizou-se com os presos políticos. No mesmo ano participou no festival “La Chanson de Combat Portugaise”, em Paris, juntamente com Luís Cília, José Mário Branco e Sérgio Godinho, denunciando a guerra colonial e a situação política portuguesa na Europa. A sua crescente popularidade como opositor ao regime acentuou a vigilância da PIDE, com a proibição das suas acuações, a interdição de visitar as colónias portuguesas em África, para além da censura sobre as canções “Vampiros” e “Menino do Bairro Negro”, editadas em 1963.

Em 1970 José Afonso recebe novamente o prémio da Casa da Imprensa pelo álbum de fonogramas Traz Outro Amigo Também, gravado nos estúdios da Pye em Londres, revelando uma grande maturidade poética e musical, e contribuindo decisivamente para a sua afirmação na renovação da música popular portuguesa, a par de outros cantores de intervenção como Adriano Correia de Oliveira em Coimbra, e Luís Cília e José Mário Branco em França. As referências a África e ao colonialismo surgem pela primeira vez nos seus poemas “Avenida de Angola” e “Carta a Miguel Djéje”, assinalando a sua experiência de vida em África entre 1964 e 1967. Neste álbum surgem igualmente os primeiros temas alusivos à emigração, e ao exílio em “Canção do Desterro”.

“Canção do Desterro (Emigrantes) ” (José Afonso, 1970)

Vieram cedo

Mortos de cansaço

Adeus amigos

Não voltamos cá

O mar é tão grande

E o mundo é tão largo

Maria Bonita

Onde vamos morar

(…)

A “Canção do Desterro” nasceu em Lourenço Marques, na sequência da leitura de um artigo da revista “Seara Nova” sobre as causas da emigração portuguesa. José Afonso tentou evocar a odisseia dos forçados actuais, partindo em modernas “naus catarinetas”, como os Mendes Pintos de outras épocas, “a caminho dum destino que na História se repete como um dobre de finados” (Simões & Mendes, 1995: 101). Consciente da realidade de um país estagnado e vigiado, José Afonso cria um dos seus mais belos poemas, incitando à liberdade de pensamento, no sentido de uma consciencialização política pela mudança anunciada. No texto de apresentação do álbum “Traz Outro Amigo Também”, o escritor Bernardo Santareno realçou a pureza, como a nota maior da arte de José Afonso. Pureza que se reflecte no tema “Canto Moço”, um poema de fraternidade a que não falta a raiva de quem se sente vigiado.

“Canto Moço” representa uma breve síntese de vários elementos da poesia de José Afonso, numa perfeita harmonia de símbolos, tradições, palavras e melodia. Síntese de tradições portuguesas relativas ao “mar” e da linguagem poética de José Afonso, vivificando palavras de várias épocas, medievais e clássicas, como “galera”, “barca”, “oliva”, “mágoa” e “madrugada”. Síntese da diversidade cultural das tradições judaicas e árabes na cultura portuguesa, assumidas com simplicidade e beleza, e síntese dos principais símbolos universais expressos na sua poesia, como o mar.

“Canto Moço” (José Afonso, 1970)

Somos filhos da madrugada

Pelas praias do mar nos vamos

À procura de quem nos traga

Verde oliva de flor no ramo

(…)

Vira a proa minha galera

Que a vitória já não espera

Fresca brisa moira encantada

Vira a proa da minha barca.

“Canto Moço” nasceu para ser cantado em coro, por estudantes universitários que José Afonso conheceu numa digressão em que participou, “destinava-se a ser interpretado como música coral por duzentos figurantes de ambos os sexos e de todas as proveniências e condições, como uma espécie de hino à Liberdade” (Simões & Mendes, 1995: 101). Para Helena Langrouva, a canção “Canto Moço” constitui a chave, e uma breve síntese de vários fulcros da poesia de José Afonso, unindo várias tradições e palavras com a melodia, no sentido da universalidade. A aventura, guiada pelo espírito, dirigindo o olhar para um futuro de paz, opõem-se à jornada da emigração expressa na “Canção do Desterro”, enquanto síntese de tradições portuguesas relativas ao mar. Por outro lado, destaca a relação dos “filhos da madrugada” com o “menino de oiro”, como duas formas de exprimir a esperança e a procura de luz. Por último, “Canto Moço” reúne os principais símbolos universais assumidos na poesia de José Afonso: o “mar”, como espaço infinito, de aventura, de integração no ritmo do universo e de libertação; a “barca”, representando a aventura; a “oliva e a pomba”, simbolizando a paz, a pureza e a harmonia; a “noite”, assinalando as trevas e ausência de luz; a “fogueira”, como símbolo de vida, de elevação do espírito, de luz no meio das trevas; o “vento e a brisa”, como sopro e leveza do espírito, a força para mudar de rumo, e a “madrugada”, trazendo a luz e a esperança numa sociedade mais justa (www.triplov.com/helena/Zeca-Afonso/Poesia-popular/resto.htm).

Ao lirismo coimbrão da saudade, no qual as lágrimas, as águas e o mar estavam impregnados de romantismo, sucedessem-se temas de intervenção política e social denunciando a guerra colonial. “Menina dos Olhos Tristes” (1969) representa, simbolicamente, o sofrimento das mães, esposas e noivas de milhares de soldados que partiam “para o outro lado do mar”, chorando a incerteza do regresso.

“Menina dos Olhos Tristes” (Reinaldo Ferreira/José Afonso, 1969)

Menina dos olhos tristes,

O que tanto a faz chorar?

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.

(…)

O mar e as temáticas marítimas que metaforicamente se articulam com a contestação política, evidenciam-se nos poemas “Cantiga do Monte” (1970) e “Fui à Beira do Mar” (1972).

“Cantiga do Monte” (José Afonso, 1970)

(…)

Na crista da vaga

Tormento alonguei

No vento e na fraga

Só luto encontrei

 

Abriram-se as velas

Mal rompe a manhã

Na luz e nas trevas

Foi-se a louçã

(…)

 

“Fui à Beira do Mar” (José Afonso, 1972)

Fui à beira do mar

Ver o que lá havia

Ouvi uma voz cantar

Que ao longe me dizia

 

Ó cantador alegre

Que é da tua alegria

Tens tanto para andar

E a noite está tão fria

(…)

“Fui à Beira do Mar” surge numa fase de grande empenhamento político de José Afonso, revelando um poema de incentivo à luta, que antecede a sua detenção pela PIDE e a prisão em Caxias em 1973. Este tema, incluído no álbum de fonogramas Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972) assinala o tempo em que José Afonso esteve praticamente impedido de cantar publicamente em Portugal realizando espetáculos em Espanha e em França, denunciando a situação política portuguesa. O álbum discográfico foi apresentado como um trabalho de coletivo, numa espécie de irmandade ibérica pela democracia e pela liberdade, unindo as colaborações de artistas portugueses e espanhóis. A este trabalho seguiu-se o álbum Venham Mais Cinco (1973), gravado em Paris com colaboração de José Mário Branco, incluindo diversos poemas escritos por José Afonso durante a sua detenção na prisão de Caxias, em Maio desse mesmo ano. Na balada “Que Amor não me Engana” a poesia atinge a vastidão do mar, livre de significados imediatistas e de interpretações lineares, sem perder o sentido da agitação sociopolítica que as suas intervenções musicais possibilitavam.

 

“Que Amor não me Engana” (José Afonso, 1973)

(…)

Muito à flor das águas

Noite marinheira

Vem devagarinho

Para a minha beira

(…)

Assim tu souberas

Irmã cotovia

Dizer-me se esperas

Pelo nascer do dia.

O 25 de Abril de 1974 representa o “nascer do dia”, esperado e desejado, após o qual José Afonso grava o álbum de fonogramas Coro dos Tribunais (1975), exprimindo nas suas canções a “revolução dos cravos”, frontalmente e sem metáforas, recriando na poesia a concretização de um sonho de liberdade que viveu intensamente. Entre 1974 e 1979 assumiu-se como “poeta militante”, trovador da liberdade, da mobilização popular e da luta pela consolidação da democracia participativa. O mar e as temáticas marítimas não são referenciados em nenhuma das suas canções, exceto no poema “Os Índios da Meia-Praia” (1976), testemunhando esta fase do trovador da revolução, como arauto do poder popular.

“Os Índios da Meia-Praia” (José Afonso, 1976)

Aldeia da Meia-Praia

Ali mesmo ao pé de Lagos

Vou fazer-te uma cantiga

Da melhor que sei e faço

 

De Monte-Gordo vieram

Alguns por seu próprio pé

Um chegou de bicicleta

Outro foi de marcha a ré

(…)

 

No poema “Os Índios da Meia Praia”, José Afonso conta a história de um grupo de famílias de pescadores oriundas de Monte Gordo que se fixaram em Lagos, nos areais da “Meia Praia”, na década de 1930, na procura de melhores condições de subsistência. O principal motivo da jornada estava relacionado com a pesca de arrasto realizada por barcos espanhóis, que deixavam sem peixe as águas junto à fronteira. Nos finais do século XIX, e nas primeiras décadas do século XX, os pescadores são desprezados pelos poderes públicos e sobrecarregados de impostos, “segregados e condenados a migrarem sazonalmente para fugir à miséria, enquanto a burguesia letrada que vem a banhos nas estâncias balneares se entretém a determinar os traços do seu carácter e a descrevê-los como descendentes de fenícios, gregos e púnicos” (Nunes(b): 2003, 133). Para as famílias de Monte Gordo, dependentes da pesca artesanal, forçadas a mendigar durante o Inverno para poderem sobreviver, a alternativa foi migrar para Lagos à procura de trabalho no mar. No extenso areal da “Meia Praia” construíram um aglomerado de barracas, feitas de canas, e aí se fixaram e permaneceram ao longo de gerações, contando apenas com o esforço do seu trabalho. Após o 25 de Abril, no âmbito de um programa de habitação social, foi-lhes prometido o seu realojamento num bairro de casas de tijolo, mas a burocracia adiou sistematicamente a concretização do projecto. Na luta pelo direito a uma habitação condigna os “índios da Meia Praia” deitaram mãos à obra, iniciando a construção por sua conta e risco, gerando diversos conflitos com os Serviços camarários que regulamentavam as obras de construção civil. O termo “índios” significa neste contexto “aqueles que perdem sempre, ou que têm de perder, os mais fracos e socialmente marginalizados” (Engelmayer, 1999: 50).

Quando o bairro foi oficialmente legalizado, “os índios” tinham investido oito mil horas de trabalho na realização do projecto, envolvendo homens, mulheres e crianças. Após as eleições de 1976, muitas das habitações sociais edificadas por iniciativa popular, durante o período revolucionário de 1974/1975, não chegaram a ser concluídas, mas tal não sucedeu aos “índios da Meia Praia”. Numa acção de solidariedade o cineasta António Cunha Telles filmou o processo de luta empreendido entre 1974 e 1976, realizando o filme “Continuar a Viver – ou os índios da Meia Praia”, para o qual José Afonso compôs a versão original da canção, mais longa daquela que conhecemos gravada, “criando uma simbiose entre a voz do povo e a voz do artista” (Engelmayer, 1999: 57).

Com o final do PREC, e após o 25 de Novembro de 1975 a revolução encontra o seu término, gerando no poeta-cantor o desencanto e a incerteza sobre o futuro da democracia participativa. No álbum de fonogramas Fura, Fura (1979), as referências ao “mar” e à “madrugada” voltam a emergir na poesia, como símbolos de resistência. Neste trabalho é acompanhado por uma nova geração de cantores e músicos, aos quais passa o testemunho de formas de expressão utilizadas nas primeiras obras, enriquecidas pela experiência humana e artística adquirida.

 

“Fura, Fura” (José Afonso, 1979)

(…)

Debaixo do céu

Que é pena, que é mágoa

Que uma ave de penas

Não possa voar

Às vezes

Não tenho jeito

P'ra falar de amigos

Meu amigo

Passageiro

Dá-me o teu capote

Para me abrigar

Vai num barco à vela

Numa aduela

Vai fazer-se ao mar

Em 1983 José Afonso grava o último disco em que participou ativamente “Como Se Fora Seu Filho”, testemunhando grande vitalidade e lucidez criativa, capaz de sobreviver a todos os tempos. Com arranjos musicais de Júlio Pereira, José Mário Branco e Fausto representa o olhar amadurecido e calmo de quem viveu a vida com intensidade e paixão. Numa viagem entre a utopia e o desencanto, o poeta José Afonso reconstrói as memórias, os desejos e os sonhos numa sociedade igualitária. Neste álbum, encontramos “Papuça”, um dos mais belos poemas sobre o 25 de Abril, numa reflexão serena e quase existencial sobre o que se fez, e o que ficou por fazer na “revolução dos cravos”.

“Canção da Paciência” (José Afonso, 1983)

Muitos sóis e luas irão nascer

Mais ondas na praia rebentar

Já não tem sentido ter ou não ter

Vivo com o meu ódio a mendigar

(…)

Na “Canção da Paciência” José Afonso recorre às temáticas marítimas para expressar a angústia e a deceção pelo rumo da sociedade portuguesa. O sentimento de perda invade o poeta, que ainda resiste, esperando pelo clarear de um novo dia. Em “Utopia”, refugia-se no sonho, no inatingível, forjando um ideal utópico de igualdade e fraternidade, deixando como interrogação: “que outro fumo deverei seguir na minha rota?”.

 

“Utopia” (José Afonso, 1983)

(…)

Homem que olhas nos olhos

Que não negas

O sorriso a palavra forte e justa

Homem para quem

O nada disto custa

Será que existe

Lá para os lados do oriente

Este rio este rumo esta gaivota

Que outro fumo deverei seguir

na minha rota?

No álbum de fonogramas “Galinhas do Mato” (1985) José Afonso não canta, mas deixa-nos o poema “Alegria da Criação”, contando a sua história de vida recriada metaforicamente no universo da ruralidade, anunciando, com serenidade e altivez, a chegada da “morte-feiticeira”, como síntese de uma vida vivida com paixão, de quem não se arrependeu de nada, porque só a vida o ensinou a cantar.

Notas finais:

A influência do cancioneiro popular e do mar nas cantigas de José Afonso remete para a importância das viagens como aprendizagem de vida, para a boémia e o lirismo coimbrão entrosados numa ruralidade incorporada, marcada pela imaginação e fantasia, para o espírito aventureiro do trovador e o desassossego existencial do poeta, na procura ávida da liberdade e da fraternidade utópica. Como afirmou o cantor Luís Goes: “José Afonso nunca abdicou dos valores do humanismo e do culto das utopias, tão essenciais à sobrevivência do homem. Como homem de causas acima de partidos políticos, fez das suas canções uma arma no combate às injustiças, à pobreza e às privações que também havia sentido ao longo da vida. Apesar de algumas vezes ser classificado de incoerente e contraditório, o facto é que nunca abdicou da sua liberdade crítica, nem da fraternidade utópica” (Cravo, 2006: 96). A partilha dos costumes e anseios dos “trabalhadores da terra e do mar”, a par das preocupações intelectuais dos letrados, configuraram a alma sensível do poeta-cantor que “semeava palavras na música”.

Na nossa perspectiva, o mais fascinante na obra de José Afonso foi sem dúvida a riqueza e variedade do seu génio, para além da escolha de poesias de outros autores vocacionadas para o canto. Como poeta deu rédea solta e criadora à lírica pessoal, exprimiu o mais persuasivo e generoso companheirismo, exprimiu os mais belos efeitos em incursões metafóricas, da mesma maneira que frontalmente, e sem metáforas, combateu os traidores da “revolução dos cravos”, aliando a fraternidade à denúncia da exploração salarial, do colonialismo, da violência e da hipocrisia. Por tudo isto “Grândola, Vila Morena” foi o santo-e-senha musical da revolução de Abril, por representar as aspirações daqueles que lutaram contra a ditadura, mantendo-se intemporalmente no repertório de contestação popular às políticas neoliberais, pelo direito à igualdade, na fidelidade ao princípio de que “o povo é quem mais ordena”.

 

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Este artigo foi publicado primeiramente em A Trabe de Ouro, Publicación Galega de Pensamento Crítico, Octubre/Noviembre/Diciembre, nº 96, 2013, ISNN: 1130-2674.

Outros artigos da mesma autora publicados nesta área desta plataforma**: «Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas», aqui »»»

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*Dulce Simões integra a Associação Mural Sonoro e tem publicado nesta área do Portal Mural Sonoro**, onde outros autores alguns dos seus artigos - resultado das suas investigações.  É doutorada em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA) e bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É investigadora integrada no INET-md e colaboradora do Instituto de História Contemporânea (FCSH/NOVA). É membro fundador do Grupo de Estudios Sociales Aplicados da Universidad de Extremadura (GESSA) e da Red(e) Ibero-Americana Resistência e(y) Memória (RIARM). Realiza investigação em Portugal e Espanha sobre fronteiras, movimentos sociais, usos políticos da memória e práticas da cultura. Participa em projectos de investigação internacionais e multidisciplinares.       

**Recepção musical: à excepção do restante portal, com trabalhos de Soraia Simões, nesta secção a autora publica, além do seu trabalho, outros autores com os quais se tem cruzado ou colaborado noutros projectos, convidando-os a partilhar também neste seu espaço resultados dos seus trabalhos de investigação.

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Referências bibliográficas:

Brandão, Raul. s/d. Os Pescadores (1893-1923). Lisboa: Ulisseia.

Cravo, Jorge. 2009. José Afonso. Da Boémia Coimbrã à Fraternidade Utópica. Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra.

Engelmayer, Elfriede. 1999. José Afonso, Poeta. Lisboa: Ulmeiro.

Galhoz, Maria Aliete. 1997, Pequeno cancioneiro popular. Porto: Civilização.

Nunes, Maria Arminda Zaluar. 1978. O cancioneiro popular em Portugal, Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, Secretaria de Estado da Cultura, Ministério da Educação e Cultura.

Nunesª, Francisco Oneto. “O Problema do Aleatório: da Coerção dos Santos ao Idioma da Inveja”. Etnográfica, vol. III (1999): 271-291.

Nunes(b), Francisco Oneto. “O Trabalho faz-se Espetáculo: a pesca, os banhos e as modalidades do olhar no litoral central”. Etnográfica, vol. VII (2003): 131-157.

Raposo, Eduardo. 2007. Canto de Intervenção (1960-1974). Lisboa: Público.

Ribeiro, Rogério. (coord.). 1994). Zeca Afonso – Poeta, Andarilho e Cantor. Lisboa: Associação José Afonso.

Salvador, José A. 1984. Livra-te do Medo. Estórias & Andanças do Zeca Afonso. Lisboa: Regra do Jogo.

Santos, João Afonso dos. 2002. José Afonso, um olhar fraterno. Lisboa: Caminho.

Simões, Manuel e Mendes, Rui. 1995. Cantares. José Afonso. Coimbra: Fora do Texto.

Teles, Viriato. 1983. Zeca Afonso. As Voltas de um Andarilho. Lisboa: Relógio D’Água.

Vasconcellos, José Leite de. 1975. Cancioneiro popular português. Vol. I. Coimbra: Universidade de Coimbra.

 

Fontes Internet:

Discografia de José Afonso consultada na Associação José Afonso (site oficial): http://www.aja.pt/

“Os símbolos de purificação: a madrugada, a água, a brisa, o vento e o fogo: «Canto Moço»” de Helena Langrouva. (Consultado em Outubro de 2010). Disponível em: http://www.triplov.com/helena/Zeca-Afonso/Poesia-popular/simbolos.htm

“José Afonso: um professor que não usava fato e gravata – memórias de uma aluna de Setúbal”. Expresso. (Consultado em Outubro de 2010). Disponível em: http://aeiou.expresso.pt/jose-afonso-um-professor-que-nao-usava-fato-e-gravata-aluna-de-setubal=f528847

1 Nas cento e vinte e cinco canções da coletânea Movieplay, setenta e uma têm poesias de sua autoria, e as restantes cinquenta e quatro remetem para diversos autores distribuídos da seguinte forma: “fados de Coimbra” (14), canções populares (20), e outras (20). Os catorze fados de Coimbra interpretados por José Afonso são respectivamente da autoria de Ângelo Araújo, António Menano, António Nobre, Carlos Figueiredo, Edmundo Bettencourt, Felisberto Ferreirinha, Fortunato Fonseca, Mário Faria Fonseca, Paulo de Sá e Tavares de Meio. Das vinte canções populares cinco são da Beira­ Baixa, três dos Açores e as restantes de Trás-os-Montes, Beira-Alta, Alentejo e Galiza. As restantes vinte canções têm como autores Aires Nunes (trovas do séc. XIII), António Quadros, Barnabé João (pseudónimo de António Quadros), Bertolt Brecht, Luís Francisco Rebello, Fernando Miguel Bernardes, Fernando Pessoa, Hélder Costa, Jorge de Sena, José Carlos Ary dos Santos, Lope de Veja, Natália Correia, Luís de Andrade (Pignatelli), Luís de Camões, Nicolau Tolentino e Reinaldo Ferreira. Ver discografia completa, no site da Associação José Afonso, consultável em: http://www.aja.pt/discografia/.

2 José Afonso viveu a infância em Belmonte, em casa do tio Filomeno, com quem apreendeu as cantigas populares da Beira Baixa, o despertar para os temas líricos de ópera, o gosto pelo “fado de Coimbra” e a descoberta de Edmundo Bettencourt. Em Coimbra viveu a adolescência, em casa da tia Avrilete, partilhando terços e novenas com os contos populares narrados e inventados pela Joana, serviçal da casa. Foi um período de intensa rebeldia (do liceu à universidade), durante o qual encontrou na boémia a sua redenção. As noites eram passadas em deambulações pela cidade “com meia dúzia de meliantes da minha idade, amantes inconsequentes da noite” (Teles 1983, 18), configurando o lirismo de uma Coimbra poetizada ao unir a sua voz aos acordes da guitarra e da viola. “Quando íamos às aldeias, rapávamos de violas e guitarras, cantávamos e, às vezes, davam-nos umas línguas de bacalhau e uns copos” (Salvador,1983: 56), recordava José Afonso das suas vivências de aluno do liceu. Um Cartaz da Queima das Fitas, representando um grupo de estudantes atravessando o espaço numa réstia de luar, dançando de braço dado em direção à lua, refletia a atmosfera romântica e irreverente desses primeiros anos.

3 Durante a sua permanência em Coimbra viveu diferentes fases da sua vida com a mesma paixão: a fase do futebol, no Campo de Santa Cruz com os colegas do liceu, e posteriormente como extremo-direito nos juniores da Associação Académica; a fase das cantigas, participando no Orfeão Académico e na Tuna, vagueando pela cidade e pelas republicas estudantis (Cágados, Corsários das Ilhas, Prá-quis-tão, Palácio da Loucura e Ai-Ó-Linda); a fase do Coral de Letras, que ajudou a fundar, ao qual pertenceu Lúcio Lara (dirigente do MPLA), e a fase do Ateneu, de convívio com os “futricas”, quando rejeitou a tradição e a praxe, após a crise académica de 1969. No Ateneu, coletividade fundada por operários, comerciantes e industriais da zona da Sé Velha, partilhou a cultura popular da cidade: “esse mundo popular de Coimbra que eu conheci das cantadeiras, das criadas, dos fulanos que iam pedir medicamentos à malta, de toda aquela fauna que gravitava em torno dos estudantes, às vezes com laços de grande cordialidade e de grande amizade” (Santos, 2003: 125).

4 O Processo Revolucionário em Curso (PREC) foi um período histórico e revolucionário após o 25 de Abril de 1974, compreendido entre Julho de 1975 e o Golpe Militar de 25 de Novembro de 1975, fortemente impulsionado por partidos e organizações de esquerda, de extrema-esquerda, e pela participação popular. A este período histórico está associado a criação de associações de trabalhadores, associações culturais, associações de moradores, o Serviço Cívico, as Campanhas de Dinamização Cultural e a Reforma Agrária. Para uma abordagem mais completa, ver: Rosas, Fernando. 2004. “A Revolução e a Democracia”, em Francisco Louçã e Fernando Rosas (org.). Ensaio Geral. Passado e Futuro do 25 de Abril. Lisboa: D. Quixote, pp. 15-49.

5 Para além do ensino da História, que fazia parte do programa curricular, José Afonso contava outras “histórias” nas salas de aula, algumas das quais permanecem na memória dos seus antigos alunos. A advogada Alice Brito foi aluna em Setúbal, e nunca esqueceu a resposta de um pescador, que remendava redes no areal, quando José Afonso, distraidamente, foi embater nele: “- E o mar é tão grande!” Consultável em: http://aeiou.expresso.pt/jose-afonso-um-professor-que-nao-usava-fato-e-gravata-aluna-de-setubal=f528847.

6 Sobre a “Primavera Marcelista” ver, por exemplo: Rosas, Fernando. 2004. Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo 1968-1974. Lisboa: Editorial Notícias

 

 

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Estudantinas – danças carnavalescas na raia do Baixo Alentejo, por Dulce Simões

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Estudantinas – danças carnavalescas na raia do Baixo Alentejo, por Dulce Simões

por Dulce Simões*

O Carnaval, tema milenário do “mundo às avessas”, propicia práticas rituais de inversão que assinalam um tempo de utopia. Por isso, todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados de lirismo e da consciência sobre a relatividade da verdade e do poder. Este tipo de pensamento, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, pela crítica e negação da ordem social existente. Até ao 25 de Abril os versos das Estudantinas passavam pelo crivo da censura do Presidente da Câmara (Barrancos) ou do Regedor (Amareleja) e eram cantados pelas ruas das vilas no domingo e na terça-feira gorda. Os versos das Estudantinas, acompanhados de música e teatralizações, falavam do que de bom e de mau foi feito ao longo do ano, e visavam direta ou indiretamente os vizinhos e os representantes do poder. Os autores mais recordados em Barrancos são o “Cumbreño” e o “Lelo”, e na Amareleja o Luís Perico, que “dava uma na caixa, e outra de racha”, como recordam os mais idosos.

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Amareleja - Estudantina de 1960

Como prática carnavalesca as Estudantinas perderam alguma dinâmica em anos fortemente marcados pelos fluxos migratórios. Em Barrancos restam algumas fotografias e versos que ajudam a reconstruir a memória de um tempo de folia, que actualmente não atrai o interesse dos jovens .

 

Barrancos – Estudantina de 1961

Barrancos – Estudantina de 1961

“Trabalho não nos arranjam /Isto assim não pode ser /Nós temos que trabalhar/Para se queremos comer./ Rapazes tenham paciência / Temos de seguir andando /De noite por essas fragas /Na vida do contrabando” (Barrancos -excerto da Estudantina de 1973).

Na Amareleja, as Estudantinas mantiveram-se como prática cultural carnavalesca. Em 1992 a Junta de Freguesia promoveu o primeiro concurso de Danças/Estudantinas para “manter a tradição”, que contou com a participação de cinco grupos. No ano seguinte estabeleceu um roteiro pela vila, assinalando os locais de actuação, que actualmente se mantêm. Os grupos são constituídos por familiares e amigos que partilham a mesma visão do mundo, e pretendem manter uma prática cultural herdada dos pais e avós. Quase todos os intervenientes evocam algum familiar com o qual se estrearam nas Estudantinas, e começaram tão jovens como aqueles que integram os grupos da Hortense, do Carlos Prazeres e do Manuel Valente. As competências musicais e vocais dos participantes, aliada à criatividade dos versos, fazem do processo de criação um tempo de convívio e cumplicidade entre os elementos dos grupos. Tudo começa pela escolha do tema musical, ao qual se ajustam os versos, em função das temáticas sociais escolhidas. A rima é particularmente apreciada pelos mais idosos, que ainda não reconhecem nos jovens as qualidades atribuídas ao saudoso Luís Perico. Os temas de crítica social enlaçam as problemáticas locais com a crise global, refletindo uma “visão do mundo” de falsas promessas eleitorais, de alterações de valores e perdas de direitos sociais. A Junta de Freguesia da Amareleja apoia os grupos com 150€, e oferecia um jantar. Mas, em 2014, “nem petiscar…” como diziam os versos da Estudantina do grupo de Carlos Prazeres.
Nos últimos anos, as Estudantinas da Amareleja suscitaram o interesse dos vizinhos da Granja, de Santo Amador, de Moura e de Santo Aleixo da Restauração que desfilam na terça-feira gorda pelas ruas da vila da Amareleja. Todavia, os grupos amarelejenses não se revêm nas performances dos vizinhos, que caracterizam de “folcloristas”, defendendo as suas danças como representativas da tradição local. A concertina, as pandeiretas, as castanholas e as zambombas são os instrumentos estruturantes, aos quais se juntam violas, caixas, bombos ou trompetes, conforme a criatividade de cada agrupamento. Na manhã de terça-feira os grupos da Amareleja percorrem as ruas da vila criando o seu roteiro de actuações, e coincidem no Lar de Idosos, frente à Casa do Povo e SFUMA e no Regato. Na parte da tarde a concentração e actuação de todos os grupos inicia-se junto à Igreja Matriz, seguindo-se o desfile e actuações frente à Junta de Freguesia, nas 4 esquinas e por fim no Regato, para onde converge o público (locais e forasteiros). Em 2014 as Estudantinas denunciavam o desemprego, a emigração dos jovens, o grupo de Carlos Prazeres cantava:

“Estamos de novo, cantando para o povo, este Carnaval / Já não é feriado, está tudo acabado, neste Portugal /As festas acabam, e ainda por cima, muitos emigraram, porque em Portugal, já não há esperança /Se tudo abalar, temos que ir cantar, a dança na França.

Em 2015 a festa começou pela manhã, no lugar dos Barranquinhos, situado no extremo da vila na estrada para Barrancos, e terminou no Regato, o coração da vila alentejana. Os grupos de Estudantinas percorreram as ruas e os vizinhos assomaram-se às janelas e às portas, para partilharem do riso e da crítica social, e alguns contribuem com o que podem para a colecta dos grupos. Ao longo do percurso pelas ruas os grupos são recebidos em casas de amigos e familiares que lhe oferecem comida e bebida. “É a folia que nos chama” dizem uns versos, reafirmando que “a Amareleja tem mais cor quando chega o Carnaval”. Em 2015 saíram cinco grupos da Amareleja: da Hortense Lameiras, do Manuel Estevão, do António Guerra, do Carlos Prazeres e do Mário Valente. A festa atraiu grupos das povoações vizinhas de Santo Amador, Moura, Safara e Granja. A Granja fez-se representar por um grupo feminino e outro masculino, membros dos grupos corais da Casa do Povo. De Safara veio a banda juvenil, e dos Leões de Moura veio um grupo misto de cantadores. Os versos das Estudantinas falaram do desemprego, dos cursos de formação, dos subsídios da União Europeia para “os jovens agricultores”, denunciando as falácias do discurso do poder. O reconhecimento do cante a Património Imaterial da Humanidade foi homenageado por todos os grupos, “depois de 50 anos a cantar”, dizia um cantador. Os versos denunciaram os casos mais mediatizados, como “o caso Sócrates”, “o terrorismo” e a intolerância religiosa, os programas de televisão, como “A casa dos segredos”, assim como os acontecimentos locais que geram polémicas como “o Dia da Mulher” e os conflitos do poder local em torno de um Pavilhão. Como cantava o grupo de António Guerra:

“Muita coisa aconteceu / neste ano que findou, /continuou-se a viver mal, / até aqui nada mudou”.

 

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*Dulce Simões integra a Associação Mural Sonoro e tem publicado nesta área do Portal Mural Sonoro**, onde outros autores alguns dos seus artigos - resultado das suas investigações.  É doutorada em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA) e bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É investigadora integrada no INET-md e colaboradora do Instituto de História Contemporânea (FCSH/NOVA). É membro fundador do Grupo de Estudios Sociales Aplicados da Universidad de Extremadura (GESSA) e da Red(e) Ibero-Americana Resistência e(y) Memória (RIARM). Realiza investigação em Portugal e Espanha sobre fronteiras, movimentos sociais, usos políticos da memória e práticas da cultura. Participa em projectos de investigação internacionais e multidisciplinares.       

Este artigo foi publicado também no espaço virtual da autora, aqui »»» 

Outros artigos acerca de práticas carnavalescas da mesma autora publicados nesta plataforma: «Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas», aqui »»»

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**Recepção musical: à excepção do restante portal, com trabalhos de Soraia Simões, nesta secção a autora publica, além do seu trabalho, outros autores com os quais se tem cruzado ou colaborado noutros projectos, convidadando-os a partilhar também neste seu espaço resultados dos seus trabalhos de investigação.

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Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas

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Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas

 

[1] por Dulce Simões

A vila de Lazarim, no Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, reinventando a tradição. No processo de institucionalização das práticas carnavalescas recuperam-se os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno, que atribuem sentido e significado à vida da comunidade.

Carnaval em Portugal. Máscaras de Lazarim. Reinvenção da tradição. Testamentos dos compadres e das comadres. Rituais carnavalescos

The village of Lazarim, located in the North of Portugal, found a time of exception in Carnavalto reassure its cultural identity by the reinvention of traditional practices. In the process of institutionalization of carnival’s practices, rites as well as symbols and texts associated to the winter feasts were recovered and enlivened, attributing meaning and signification to the life of the local community.

CARNIVAL IN PORTUGAL. MASKS OF LAZARIM. REINVENTION OF TRADITION. TESTAMENTOS DOS COMPADRES E DAS COMADRES. CARNIVAL RITUALS.

INTRODUÇÃO

As comunidades rurais possuem um conjunto de saberes e de práticas que pretendem preservar e transmitir às gerações futuras, como património cultural e identitário. A vila de Lazarim, no concelho de Lamego, Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, recuperando os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno. A partir de 1985 as práticas carnavalescas foram institucionalizadas, num modelo performativo que procura mostrar a tradição local ao mundo global. A intervenção da Junta de Freguesia, da Casa do Povo e a vontade política dos seus elementos foram determinantes para a reinvenção da tradição, numa acção concertada com a escola e o envolvimento das famílias. No processo de invenção da tradição (HOBSBAWM & RANGER, 1983) recuperam-se os saberes de um passado rural que atribui sentido e significado à vida da comunidade, resgatando práticas culturais como capital simbólico (BOURDIEU, 2001).

Na perspectiva etnográfica de uma descrição densa (GEERTZ, 1978), partimos para Lazarim levando na bagagem algumas leituras sobre práticas carnavalescas no Norte de Portugal, e os textos divulgados na Internet pela Câmara Municipal de Lamego. Em termos metodológicos entrelaçámos a história e a antropologia, articulando a pesquisa documental e bibliográfica com o trabalho de campo, ao longo do qual realizámos entrevistas com informantes institucionais (presidente da Junta de Freguesia, presidente da Casa do Povo, pároco local e professor), com informantes privilegiados (artesãos de máscaras e representantes dos grupos dos Compadres e das Comadres), e conversas informais com residentes e visitantes. Neste artigo questionamos os mecanismos de construção e preservação das práticas carnavalescas, numa comunidade rural cuja componente agrícola se desvaneceu, com o enfoque na cultura popular (BAKHTIN, 2002) e nas práticas performativas (CONNERTON, 1999). Numa permanente dialéctica entre o passado e o presente, mediado pela memória dos nossos informantes, estruturámos o texto em três partes, analisando as mudanças no mundo rural e os sentidos e significados atribuídos à festa, no processo de construção de identidades locais.

O ESPAÇO, OS LUGARES E AS PESSOAS

Lazarim é uma freguesia portuguesa do concelho de Lamego, distrito de Viseu, Beira Alta, com 15,71 km² de área, e uma população residente de 686 pessoas, num total de 236 famílias (Censos 2001). Historicamente é identificada através de vestígios arqueológicos pré-celtas, romanos e visigóticos, atribuindo os habitantes a sua origem à aldeia das Antas, actualmente desabitada. Os primeiros documentos referentes a Lazarim datam do início do séc. XIII, quando beneficiava do título de Vila, com administração autárquica e o nome associado ao antropónimo latino de um senhor agrário. A estrutura social da comunidade assentava na família e no Município, implementados pelo sistema de propriedade. A terra era explorada a nível familiar durante três gerações, gozando os herdeiros de preferência na renovação do contrato de arrendamento com os senhores da terra, fidalgos e ordens eclesiásticas. A posse da terra determinava a estrutura linhageira e o casamento endogâmico, fixando a herança na linha agnática. A Igreja impunha o casamento exogâmico, tornando nulo o casamento entre parentes, sendo os documentos registados como divórcios relativos a anulações, por denúncias feitas à Igreja. Em 1273 a povoação ficou praticamente desabitada, em virtude da peste que assolou a Beira, perdendo o título de Vila com a promessa de lhe ser restituído após povoamento, e durante 200 anos cessaram referências documentais. Em 1505 recuperou o título de concelho, por contrapartida do reconhecimento público ao novo donatário, “D. João de Menezes, Conde e senhor das ditas terras e concelhos” (COSTA, 1977, p. 91). No séc. XIX voltou a perder o título, recuperando-o simbolicamente a 21 de Junho de 1995. 

As diferenças entre lugares não são identificáveis no plano material, através da observação do espaço geográfico, porque este apresentava-se homogéneo ao nosso olhar. A heterogeneidade justifica-se ao nível simbólico e histórico, associada às famílias que os construíram ao longo do tempo, designando-os por Padrão, Vila e Valverde.

Existe uma competição entre os três lugares, e no Carnaval sente-se isso, esconde-se para ser melhor, e por um lado até é bom essa competitividade, mas às vezes também é exagerado porque se pode perder o controlo da própria pessoa, e criam-se as rivalidades que prejudicam a paz e a serenidade entre as pessoas. (Agostinho Ramalho, pároco local)1

O lugar do Padrão demarca-se na entrada da vila, circunscrito à zona da ribeira, integrando à direita o solar dos Vazes, deixado por herança para residência oficial do Pároco local, e à esquerda o solar do Barão de Lazarim em ruínas. O lugar da Vila é o núcleo habitacional mais antigo, com a Casa da Câmara construída em granito, ruas estritas, onde se misturam as habitações de alvenaria com as de granito e xisto. Valverde fica na encosta e é o núcleo mais moderno, destacado pelas residências em alvenaria. O espaço do Lazarim integra estes lugares, transformados ao longo de gerações pelos seus habitantes, com os saberes que reproduzem o quotidiano. A terra outrora fértil já não serve as necessidades económicas das famílias, apesar de continuarem a cultivá-la para o consumo das casas. Os canastros, ao longo dos campos, testemunham um passado ligado à terra, mas presentemente os residentes dependem dos serviços em Lamego, ou do trabalho na construção civil, mantendo as actividades agrícolas em paralelo. A maioria das pessoas de Lazarim migrou para Lisboa e Porto, apesar de se ter verificado uma emigração bastante significativa para o Brasil nas décadas de 1940 e 1950. No Brasil fixaram-se em Caju, Rio de Janeiro, e em São Paulo, e poucos regressaram. Em Lisboa e Porto criaram comunidades de migrantes, regressando a Lazarim para as festas de Verão, para a matança do porco, ou para ajudar nas vindimas. Mas durante o Carnaval são sobretudo os jovens que regressam para participar na festa.

O CARNAVAL JÁ NASCEU CONNOSCO, JÁ OS VELHOS FAZIAM ISSO

O Carnaval constitui um sistema simbólico associado à transição do Inverno para a Primavera, do velho para o novo, da morte para a vida, do frio para o calor, da parte masculina para a parte feminina do universo, reunindo diversos significados que assinalam este ciclo na vida das comunidades rurais. Um ciclo de renovação cósmica e social, tempo de utopia e transgressão, onde tudo o que é socialmente marginalizado busca uma libertação catártica, vencendo simbolicamente a hierarquia, a ordem, a opressão, e o sagrado. Na Idade Média as festas carnavalescas convertiam-se simbolicamente na “segunda vida do povo”, que ascendia, temporariamente, ao reino da utopia, da universalidade, da liberdade, da igualdade e da abundância (BAKHTIN, 2002). O Carnaval representa um ciclo na vida das comunidades, mais ou menos representativo conforme os significados que as pessoas lhe atribuem:

O significado histórico é mais importante do que o significado que eu lhe atribuo como participante. O significado desta quadra festiva é para mim gozo e prazer, mas o significado histórico já vem da Idade Média e mistura o profano com o religioso. Como o ano é dividido liturgicamente o Carnaval é o aliviar de uma certa carga religiosa. Antes as pessoas eram mais participativas na igreja católica e então tinham estas fugas para libertar o seu espírito e sair um bocadinho da rotina. (Norberto Carvalho, presidente da Junta de Freguesia)2

Nesta perspectiva, todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo, da alternância, da renovação, e da consciência sobre a relatividade das verdades e autoridades do poder (BAKHTIN, 2002, p.10). Para Veiga de Oliveira (1984) o Carnaval provém das Saturnais romanas, que se caracterizavam como um período de completa liberdade licenciosa, durante o qual tudo era permitido (OLIVEIRA, 1984, p. 38). Este ciclo temporal, em que o curso normal da vida é suspenso, dando lugar a rituais de inversão e subversão, contrariando a ordem social, pode ser designado por “liminar” (TURNER, 1974, p.117), com os seus “rituais de passagem” (VAN GENNEP, 1978, p. 31). Em Lazarim, o Carnaval foi recordado pelos mais idosos como um tempo vivido no interior da comunidade, como prática de resistência aos poderes instituídos e como paródia burlesca:

O Carnaval já nasceu connosco e já os velhos faziam isso, mas o Carnaval era mais rigoroso nesse tempo, o pessoal não era tão educado. Qualquer briga de namorico ou da rega das águas, era pago nestes dias. Havia quase sempre zaragatas. … Também acompanhei o farranjo mas no entanto eu livrava-me das marés, que é quando via a coisa a ficar azeda, porque às vezes o Carnaval durava mais de um ano pelos tribunais. (José Rua, reformado)3

O Carnaval serviu para “ajuste de contas” entre vizinhos, mas também para afrontar os poderes instituídos. As práticas rituais de inversão nas sociedades católicas ocidentais assinalam um tempo de utopia. Este tipo de pensamento utópico, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, em que os dominados concebem a inversão, e a negação de uma ordem social, radicalmente diferente daquela que vivem (SCOTT, 2003, p. 126). Durante o Estado Novo as práticas carnavalescas em Portugal estavam sujeitas à aprovação das autoridades locais, muitas vezes dominadas pela Igreja. Em Lazarim proibiram-se os mascarados (Caretos) e a leitura dos testamentos do Compadre e da Comadre, por intervenção directa do pároco local junto do Bispo de Viseu.

O Entrudo, com os testamentos, era para a igreja de então algo prejudicial para a moral da sociedade. Então eles nesses dias em que esperavam que ia haver este tipo de rituais mandavam vir a GNR, eram as histórias que os meus pais contavam dos anos trinta e quarenta. (Norberto Carvalho, presidente da Junta de Freguesia)

Na década de 1940 era comum o pároco local pedir um destacamento da Guarda Nacional Republicana (GNR) para reprimir possíveis manifestações de desobediência. Num desses anos, os guardas da GNR estavam reunidos em casa do pároco, comendo e bebendo, quando foram surpreendidos pelo disparo de um tiro de caçadeira, que os pretendia amedrontar. O alvoroço na aldeia foi generalizado, e procederam-se a buscas e interrogatórios para encontrar o culpado. No decorrer das averiguações foram chamados ao Regedor todos os homens que tinham armas de caça, e a aldeia acorreu em peso. Quando o processo chegou ao juiz de Lamego estavam envolvidos todos os homens da aldeia, unidos em protesto colectivo, mas foram ilibados da sentença e prevenidos pelo juiz a não repetirem o sucedido. Na aldeia todos sabiam que o autor do disparo era o filho do Regedor, mas nunca o denunciaram. A sua acção representou uma vontade colectiva, e uma forma de resistência ao poder dominante4.

Havia muitas vinganças. Eu tinha uma tia que era professora primária mas era muita má. E não havia Entrudo em que ela não saísse para moer, inclusive no marido. Para dar pancada, mas pancada a sério. (…) Eram as mulheres que se vestiam de Careto. É um ritual de inversão não tenha dúvidas, é assim que eu me lembro da minha infância. (Amândio Lourenço, Presidente da Casa do Povo)5.

 Lembro-me do Carnaval desde novinha, mas não era assim, saíam mais vezes mascarados com uns paus e a canalha sempre atrás deles, a gente era nova e gostava imenso e agora também gosto muito. Só uma vez é que fiz um testamento, ainda não namorava o meu marido. Achava graça e também gostava de meter a minha achada contra eles. Eles eram mais atrevidos do que agora, não com falta de respeito às raparigas que havia muita, mais do que agora, mas nas zaragatas. (Elvira Fernandes, reformada)6.

O Carnaval aqui em Lazarim sempre foi meio maroto, até que agora nem é, é bonito e é um sossego. A evolução da vida é que faz isso. Antigamente as freguesias não se podiam ver umas às outras, agora os daqui casam com os de fora, os de fora casam com os daqui e a evolução do tempo é que vai fazendo isto e cada vez a coisa está mais normalizada, e assim é que é bem. (Afonso de Almeida e Castro, artesão de máscaras)7.

Os testamentos da Comadre e do Compadre tiveram consequências sociais graves, que se reflectiram em processos judiciais e noivados desfeitos. A memória colectiva preserva esse tempo de conflitos, atribuindo à evolução dos tempos a normalização das relações entre vizinhos. Por outro lado, a institucionalização das práticas carnavalescas retirou a componente de transgressão e de secretismo que girava em torno dos Caretos, e do grupos das Comadres e dos Compadres. A leitura dos testamentos realizava-se nos três lugares de Lazarim, permitindo a criação de um percurso que envolvia todo o espaço da comunidade numa unificação simbólica. Actualmente concentra-se no Largo do Padrão, frente ao edifício da Junta de Freguesia. Esta alteração obriga os habitantes a deslocarem-se a um único lugar, mas permite aos forasteiros acompanharem todas as fases do ritual. As práticas carnavalescas transformaram-se numa representação performativa para visitantes, e a animação dos Caretos resume-se a um desfile de mascarados, pousando para secções fotográficas, não desempenhando o papel socialmente desestabilizador pelo qual são recordados.

Para o processo de reactivação e reinvenção das práticas carnavalescas foi determinante a acção dos membros da Casa do Povo e da Junta de Freguesia, em colaboração com a Escola Primária e o Núcleo da Telescola, coordenado pelo professor Joaquim Simões:8

Nós, escola, temos feito intervenções junto da localidade começando pelo Carnaval. Levámos para a escola toda esta vivência do Carnaval, desde a confecção das máscaras, nas aulas de EVT, às fardetas e à própria gastronomia. Eles trazem as carnes e as mães vêm ajudar a fazer o caldo de farinha e partilhamos isso tudo como uma família alargada.

A Junta de Freguesia e a Casa do Povo, com o apoio da Câmara Municipal de Lamego, asseguraram os meios económicos para a organização da festa, no sentido de a preservar, contudo, esse processo pode ser analisado pelo ponto de vista da institucionalização, como testemunha Amândio Lourenço:

Eu, ao criar a Casa do Povo em 1981, peguei no assunto. Deu-se-lhe orientação, deu-se-lhe ritmo, organizou-se, está a perceber? Em vez de ser livre sem qualquer intervenção de ninguém a organizar, passou a ser a Casa do Povo a assumir as custas. Da sua originalidade não perdeu nada, deu-se-lhe foi mais um bocado de orientação, de organização para que os media tirem mais proveito deste trabalho. Porque o princípio que nos rege é particularmente os mesmos. (…) O objectivo foi preservar uma das mais ricas tradições de Lazarim que foi e é, a tradição mais rica. O objectivo é cultural, mas hoje já tem um peso comercial tremendo.

A promoção e divulgação do património cultural tem obviamente contrapartidas económicas, sobretudo para os pequenos comerciantes locais e para os artesãos das máscaras de madeira, mas tem igualmente uma contrapartida simbólica que não pode ser ignorada, o prestígio dos agentes culturais. O prestígio é observável ao nível da presença dos representantes do poder local e regional, de investigadores e museólogos, como roteiro cultural de elites urbanas, e pela presença de representantes da comunicação social à escala regional e nacional. Contudo, a reinvenção da tradição revela esquecimentos, que permanecem nas memórias de alguns membros da comunidade, como recordou Isabel Loureiro9:

Perdeu-se a semanas das amigas e dos amigos porque as pessoas esqueceram-se um bocado e a vida também mudou. Nesses dias e nessas semanas havia comidas associadas e era uma forma da mulher que não podia aparecer, nem podia dar a cara e então castigava o homem em casa, para ele ter cuidado com aquilo que fazia depois. Era engraçado e eu já nem me lembro como era bem, os meus pais é que têm isso escrito lá em casa.

Alberto Correia (2003) elaborou um calendário do ciclo do Carnaval em Lazarim, associando as relações de poder entre os grupos de género, com as comidas confeccionada à base de carne do porco. O calendário iniciava-se no quinto domingo anterior ao domingo gordo, assinalando a Semana dos Amigos. Durante esta semana a mulher exercia o poder sobre o homem, através da comida que confeccionava, “o homem era castigado com a apresentação de alimentos de pouca valia, como um caldo de farinha com moira”. Na semana subsequente, a Semana das Amigas, “as mulheres como donas do lar não prescindem de iguarias, como a chouriça, um enchido nobre que desafia a magreza da moira”. No domingo seguinte iniciava-se a semana dos Compadres, com os homens ainda subalternizados e condicionados ao consumo da moira. Por oposição, na semana sequente, a Semana das Comadres, as mulheres deliciam-se com salpicão (CORREIA, 2003, pp. 18-19). Durante as semanas dos Compadres e das Comadres os grupos realizavam peditórios para angariar fundos para a construção das suas mascotes, que hoje são encomendadas pela Casa do Povo a um artesão local. As relações de poder entre os grupos de género traduziam a submissão da mulher durante a vivência quotidiana na comunidade. A festa criava o espaço de excepção, e a utilização de práticas catárticas que permitiam ao grupo a criação de um mundo alternativo.

TODOS OS ANOS SAIAMOS MASCARADOS

Os estudos etnográficos sobre festas de Inverno no Norte de Portugal classificam o mascarado como um representante do diabo, da morte, do riso, do vício, gozando de uma impunidade a todos os níveis, em que “os mascarados da festa dos rapazes, tal como todas as personagens do Nordeste Transmontano, são veículo de um discurso mais ou menos simbólico e ritualizado ligado à transgressão, à licenciosidade e à liminaridade” (NETO JACOB, 1995, p. 386). A máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais e da ridicularização, baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espectáculos (BAKHTIN, 2002, p. 35). Como nos diz Lévi-Strauss (1981), “uma máscara não existe em si (...) não é aquilo que representa mas aquilo que transforma, isto é: que escolhe não representar. Como um mito, uma máscara nega tanto quanto afirma; não é feita somente daquilo que diz ou julga dizer, mas daquilo que exclui” (LÉVI-STRAUSS, 1981, p. 124).

Em Lazarim, três gerações de artesãos, com diferentes expressões artísticas, transfiguram um tronco de amieiro, árvore que nasce nas margens do rio Varosa, em figuras representativas da tradição local. Cada um destes homens regista simbolicamente nas suas máscaras, o seu universo cultural e o seu imaginário. Afonso de Almeida e Castro nasceu em Lazarim, em 1926, descendente de uma das famílias mais antigas da vila. O seu pai foi Regedor durante vários anos, e com a família aprendeu a arte de trabalhar o campo:

Os meus pais viviam do campo e ajudava-os quando era pequeno. Naquele tempo não havia dinheiro para comprar máscaras de plástico, nem plástico havia que eram de cartão. Mas já existia isto, sem ser eu, isto não vem de mim, já vem de tradição antiga. E como eu não tinha dinheiro e queria brincar ao Carnaval resolvi fazer de madeira. Eu tinha os meus dezasseis, dezassete anos quando comecei a fazer as máscaras, mas era como calhava, era dois buracos e uma boca, pronto, e um nariz. Umas saíram mal, outras começaram a sair menos bem, e outras a sair bem. Quando regressei do Brasil, esses rapazes que já sabiam que eu as fazia pediram-me para fazer. Vendia-as a 25 tostões.


FIG.1. Afonso de Almeida e Castro trabalhando*        FIG. 2. Máscaras de Afonso de Almeida e Castro*

Afonso de Almeida e Castro é o mais antigo artesão de máscaras de madeira, mas faz questão de afirmar não ser o primeiro, outros houve antes dele, enunciados nas narrativas dos mais idosos. As máscaras de Alberto Costa, Miguel Matança e do tio Mansinho do Travasso serviram de modelo para se iniciar na arte, mas foi sem dúvida a experimentação o elemento fundamental de aperfeiçoamento que lhe permitiu construir mais de mil e quinhentas máscaras. A sua máscara de um diabo, pintada de vermelho, foi cartão-de-visita do Carnaval de Lazarim durante a década de 1980, e sempre pintou as máscaras, até ao dia em que a “reinvenção da tradição” lhe impôs a cor natural da madeira, como modelo a reproduzir. As máscaras do diabo continuam a ser as mais solicitadas, mas também constrói figuras míticas do seu imaginário.

Segundo as narrativas dos mais idosos era comum pendurarem nas máscaras do diabo cobras do rio, sardões, sapos e sardaniscas que se contorciam, conferindo ao mascarado um aspecto ainda mais assustador. Estas memórias tomam forma nas máscaras de Adão de Castro Almeida, um dos artesãos de máscaras mais conhecido de Lazarim.

FIG: 3. Máscara de diabo, de Adão de Casto Almeida*

FIG: 3. Máscara de diabo, de Adão de Casto Almeida*

Adão nasceu em Lazarim em 1962, é calceteiro de profissão na Câmara Municipal de Lamego, e constrói máscaras há aproximadamente vinte anos. As suas mãos, hábeis na colocação da pedra, potenciam outras técnicas que a experiência foi aperfeiçoando ao longo dos anos, dedicando os seus tempos livres à construção das máscaras. Este gosto, incorporado, remete para as práticas carnavalescas da sua infância, tornando o seu trabalho tão misteriosamente personalizado. A máscara do diabo, construída por Afonso de Almeida e Castro, despertou em Adão de Castro Almeida o gosto pelas máscaras, quando tinha catorze anos de idade:

Todos os anos saíamos mascarados … então o Leonel aparece lá com um diabo pintado, era uma máscara das mais antigas. … A partir daí comecei a fazer, gostei daquilo, por acaso foi, foi mesmo um gosto. (Adão de Castro Almeida)10

José António da Silva Costa, mais conhecido por Costinha, nasceu em 1974 em Vila Nova de Gaia e é carpinteiro. Com 7 anos de idade veio para Lazarim, e aprendeu com o pai, carpinteiro de profissão, a arte de transformar a madeira. Mas foi na escola que apreendeu outras técnicas e o gosto pela construção de máscaras:

 

Comecei na Telescola a fazer máscaras de papel. Depois de madeira, uma coisa simplezinha, e daí para a frente fui-me incentivando, e o próprio Presidente da Junta foi-nos incentivando para fazermos, e estou a fazer máscaras para aí há dezassete anos. (Costinha)11

A madeira utilizada é o amieiro, por ser mais fácil de trabalhar, segundo nos diz: o amieiro é uma árvore que ensopa muita água, permitindo trabalhar a madeira enquanto está molhada. Mas depois de secar pode estalar. Os instrumentos são os mesmos que lhe são familiares na arte da carpintaria. Costinha é o único construtor que reúne na produção do seu trabalho os saberes aprendidos institucionalmente, através da escola e da família e o saber-fazer, resultante da sua incessante experimentação. As suas máscaras representam figuras humanas, ou bruxas do imaginário colectivo, mas recusa-se a construir máscaras de diabos. Costinha não incorporou, da mesma forma que os outros artesãos, o sistema simbólico do Carnaval local. O seu gosto incide sobre caricaturas de figuras públicas, reproduzindo nos seus trabalhos a influência dos meios de comunicação social. Mas o processo de institucionalização e o concurso de máscaras organizado pela Casa do Povo, obrigando-o à criação de figuras representativas da “tradição”. Como exemplo paradigmático do trabalho de Costinha, é interessante referir que utilizou uma caricatura de Vítor Baía, guarda-redes do Futebol Clube do Porto, como modelo para a execução da sua máscara de bruxa de 2003.

FIG. 4. Máscara da bruxa de Costinha*

FIG. 4. Máscara da bruxa de Costinha*

Os Caretos de Lazarim exibem através das suas máscaras representações de figuras históricas como bispos, reis e romanos, de figuras místicas como bruxas e diabos, de figuras grotescas, e ainda figuras de animais, como o burro, a corsa, o mocho e o porco. Os elementos que constituem as máscaras têm o valor de um signo, na medida em que reúnem em si um significante, ao nível da expressão plástica e um significado, ao nível do seu conteúdo, como elementos constitutivos de uma linguagem apreendida no sistema simbólico da comunidade. Para os visitantes, a leitura será certamente diferente, resultante dos seus sistemas de valores culturais. Como assinalava Umberto Eco, “cada um preencherá com os significados que lhe forem sugeridos pela própria situação antropológica, pelo seu modelo de cultura” (ECO, 1986, p.127). Neste sentido, o sistema de significação das máscaras só pode ser interpretado, traduzido ou descodificado como um discurso, por referência a uma estrutura sociocultural, entendendo-se por estrutura o contexto local onde o discurso é produzido.

Os Caretos completam a máscara com outros elementos de vestuário, como fatos confeccionados de palha, ou de barba de milho entrançado, capas vermelhas ou negras com debruados. Na mão, transportam quase sempre um objecto de uso agrícola, como uma enxada ou uma forquilha, havendo alguns que usam um cajado de nogueira, que nos remetem para o sistema simbólico do mundo rural.

FIG. 5. Máscara de Costinha, 2003* FIG. 6. Máscaras da colecção da Casa do Povo*

FIG. 5. Máscara de Costinha, 2003* FIG. 6. Máscaras da colecção da Casa do Povo*

Os Caretos de Lazarim, outrora elementos de desordem no seio da comunidade, transformaram-se em peças de artesanato local, para consumo dos mais abonados. Contudo, para as pessoas de Lazarim, as máscaras são motivo de orgulho e são uma referência cultural simbólica, não pelo que hoje representam, mas pelas memórias que suscitam. As máscaras, como sistema de signos, podem não ter a mesma leitura por parte de toda a audiência, mas, parafraseando Lévi-Strauss, “as máscaras também servem para pensar”.

 

O SIGNIFICADO DESTE RITUAL É MAIS UM GLADIAR ENTRE HOMENS E MULHERES

O ritual é uma actividade orientada por normas, com carácter simbólico, que chama a atenção dos seus participantes para objectos de pensamento e de sentimento, que estes pensam ter um significado especial (LUKES, cit. em CONNERTON, 1999, p. 22). O início do ritual é sinalizado pelo ribombar dos foguetes às três horas da tarde de terça-feira gorda. No Largo do Padrão começam a afluir os primeiros Caretos, lançando farinha e jactos de água sobre os forasteiros e os locais. Os forasteiros respondem com disparo de câmaras fotográficas, tentando registar tudo aquilo que foi anunciado como tradicional. No Largo da Casa do Povo, homens e mulheres preparam “ o banquete”, a confecção da feijoada, em grandes panelas de ferro, que no final do ritual será partilhada pelos visitantes e locais. Os homens carregam lenha, ateando o fogo, e as mulheres aprontam os ingredientes da feijoada, composta de feijão branco, enchidos, entrecosto e orelha de porco. No centro da Vila, outro grupo de mulheres prepara o caldo de farinha, composto de farinha de milho, couves e enchidos de porco, que têm a mesma finalidade, a de serem consumidos depois do ritual do testamento. Entretanto, soam as primeiras batidas dos bombos que ecoam no Largo do Padrão. O grupo de tocadores é constituído por quatro elementos, um par de bombos e um par de caixas que vão percorrendo as ruas de Lazarim, seguidos pelos Caretos, nas suas inocentes tropelias, e pelos representantes dos grupos das Comadres e dos Compadres. O cortejo vai até ao lugar de Valverde, onde o Sr. Hélio Fernandes, artesão dos bonecos carnavalescos, lhes entrega uma espécie de andor, com a mascote do grupo de género, um boneco, para o grupo das Comadres e uma boneca, para o grupo dos Compadres, feitos de papel colorido com uma instalação pirotécnica. Longe vai o tempo em que os grupos rivais procuravam apoderar-se destas mascotes como trunfo, e os seus esconderijos eram alvo do maior secretismo (OLIVEIRA, 1984, p. 54). Actualmente o secretismo é conservado apenas ao nível da criação dos testamentos e à identificação de quem os vai ler à praça pública, e desta forma representar os grupos de género.

Este testamento é envolvido num grande secretismo para que ninguém saiba. O principal objectivo é brincar com os da nossa idade por isso é que fazemos o testamento. (Paulo Loureiro)12.

Tentamos saber umas pelas outras o que eles andam a fazer. Eles fazem tudo em cima do joelho e também têm muito secretismo, mas também têm linguareiros. (Isabel Loureiro).

O cortejo atravessa a vila, desde Valverde até ao Padrão, e os participantes concentram-se no Largo da antiga Casa do Povo. Os Caretos dançam ao som dos bombos e caixas, em volta da fogueira onde se cozinha a feijoada, enquanto os Compadres e as Comadres se concentram no cimo das escadas da Casa do Povo. Esta pausa, no processo ritual, pretende satisfazer as solicitações de fotógrafos da imprensa regional e de outros representantes da comunicação social que todos os anos acorrem a Lazarim. Também os estudantes universitários e investigadores, estudiosos de festas populares e práticas performativas, provenientes de vários pontos do país e do estrangeiro, contribuem para a heterogeneidade dos observadores da festa, justificando o “capital simbólico” reivindicado pelo poder local.

FIG. 7. Largo da Casa do Povo* FIG. 8. As Comadres e os Compadres*

FIG. 7. Largo da Casa do Povo* FIG. 8. As Comadres e os Compadres*

O grupo das Comadres e dos Compadres são representados por duas raparigas e por dois rapazes, solteiros. Um representante de cada grupo será escolhido para leitor do testamento, e o outro, transporta a mascote; o boneco simbolizando o Compadre e a boneca simbolizando a Comadre. O significado atribuído à representação dos géneros, através da figura dos bonecos, é particularmente relevante, na medida em que as cores das suas roupas e adornos são de uma exuberância que contrasta com o vestuário comum dos membros da comunidade. O que vem reafirmar não se tratar de uma representação simbólica das categorias presentes, mas da utopia, a imagem de um estado futuro (CONNERTON, 1999, p. 50).

O significado deste ritual é mais um gladiar entre homens e mulheres. Nesta altura própria do ano, de se enfrentarem. Do homem se por ao nível da mulher e a mulher ao nível do homem, do rico ao nível do pobre e do pobre ao nível do rico. Ali naquele dia toda a gente muda a sua máscara. Toda a gente se inverte e acho que é esse o significado principal. (Amândio Lourenço)

A ordem que assinala o início do ritual é dada pelos bombos, organizando-se um novo cortejo até ao Largo do Padrão, onde serão lidos os testamentos da Comadre e do Compadre. Os Caretos seguem à frente, seguidos dos representantes dos grupos, e por fim os tocadores e os acompanhantes, população e forasteiros.

O testamento que fazemos às Comadre é deixar-lhes uma peça do burro, … Há partes que a gente gosta mais de dar, ou seja, as partes mais sexuais do burro. (Paulo Loureiro).

E é nesta época que vão ser descritos os defeitos, qualidades não. (Márcia Castro Almeida)13.

No Largo do Padrão foi montado um palco improvisado, onde os Compadres e as Comadres tomam os seus lugares dando início à leitura dos testamentos. O texto do testamento é composto por três partes; a introdução, composta por quadras alusivas ao ciclo do Carnaval e pela identificação da(o) testamenteira(o); as “deixadas” ou quadras dedicadas a todos os rapazes e raparigas solteiras e o final, alusivo ao fim da Comadre e do Compadre, anunciando a morte e rebentamento pelo fogo.

 

Com a fome que trazeis

Passais a vida a ladrar

Comeis a burra inteirinha

Nem a rata vai escapar.

Para manter a tradição

E o Carnaval não findar

Vamos repartir a burra

Para a boca vos calar.

O final de cada verso é sempre sinalizado com o rufar dos bombos. O texto é sarcástico, jocoso e vernáculo, recorrendo ao uso de alguns palavrões e abordando sobretudo os defeitos de carácter e de comportamento, tendo como acentuação a vertente sexual.

Tudo o que a gente diz é verdade, não estamos a inventar nada. Mas eles não têm dificuldade nenhuma em chamar nomes e dizer tu és isto e tu és aquilo. (Isabel Loureiro).

Nós às vezes também exageramos um bocadinho, tudo o que a gente diz não é verdade, às vezes temos de dizer assim umas coisas mais picantes para a gente que vem de fora. Eles só acham graça quando a gente diz coisas picantes mesmo. (Paulo Loureiro).

O texto dos Compadres acentua igualmente os defeitos de carácter e os comportamentos das raparigas, mas tem mais incidência nos aspectos da vida sexual, utilizando uma linguagem mais jocosa, recorrendo ao uso de palavrões e dando-lhe uma forma mais grotesca do que o das Comadres, mas essa construção verbal é construída conscientemente.

Como já estavam há espera

Está cá o fanfarrão

Para dar carninha a todas

E manter a tradição.

A todas vamos dar carne

Pois é isso que elas querem

Não importa de quem seja

Consolar-se elas preferem.

Os testamentos carnavalescos no uso de linguagem jocosa, nas injúrias e nos palavrões, que constituem as “deixadas”, remetem sempre para um paralelismo entre as características do beneficiário e o objecto de partilha. Para os nossos informantes o significado deste ritual é “mais um gladiar entre homens e mulheres”, elegendo como bem de partilha, o burro e a burra, num paralelismo masculino/feminino que acentua as relações sociais e simbólicas entre pares de opostos. A figura do animal parece adquirir um duplo significado: o de símbolo bíblico da humilhação e da docilidade e, a do corpo grotesco cómico decepado, quando valorizadas as partes sexuais, objecto de partilha.

É o Paulo já se vê,

Vai repartir a burrinha,

Fica com a melhor parte,

Essa será a ratinha.

A audiência, composta por pessoas de vários grupos etários, reage pelo riso ao desfilar dos versos, contrastando com a postura séria dos leitores. Os grupos de rapazes e raparigas vão partilhando entre si cumplicidades através da troca de olhares. Também é possível observar que o testamento dos Compadres provoca quase sempre mais gargalhadas na assistência que o das Comadres. Outro aspecto interessante nos textos é a referência a “manter a tradição”, presente em ambos os testamentos, reforçando por fixação e repetição a ideia de continuidade por incorporação, em que os ritmos da poesia oral são os mecanismos privilegiados de recordação (CONNERTON, 1999, p. 88). Após a leitura dos textos é organizado um cortejo, durante o qual a solenidade e contenção são assumidas pelos participantes que se dirigem para o sítio da Cruzinha, em Valverde, onde os bonecos serão consumidos pelo fogo. Os Caretos tomam a dianteira, seguidos dos Compadres e das Comadres. Os tocadores impõem uma batida lenta e compassada, como num cortejo fúnebre, seguidos pela população local e pelos forasteiros.

FIG. 9. Cortejo funebre* FIG. 10. Queima das mascotes*

FIG. 9. Cortejo funebre* FIG. 10. Queima das mascotes*

 

No lugar da Cruzinha, em Valverde, os bonecos armadilhados por efeitos pirotécnicos, vão rodopiando, produzindo ruído e chamas acompanhadas de sucessivas explosões e batidas dos tocadores, até ao estoiro final, provocando na assistência, sobretudo nas crianças, uma enorme alegria e algazarra que perduram na memória.

Recorda-me de gostar de ver o Compadre e a Comadre a andarem a rabiar num arame ou num pau. Logo a seguir ao Natal começávamos a brincar ao Carnaval. Marcou muito a nossa infância em Lazarim. (Norberto Carvalho)

Quando rebentam, para mim representa o encerramento do que de bom se tinha passado para trás, é a morte do Compadre e da Comadre, quer dizer que a partir desse momento a vida volta à normalidade, o Carnaval acaba ali. (Paulo Loureiro)

Em Lazarim a imolação dos bonecos assinala o término do ritual da festa carnavalesca, seguindo-se-lhe o “banquete”, espaço de confraternização entre os membros da comunidade e os forasteiros, através da comensalidade. O rito de passagem está concluído, mas o processo de reinvenção da tradição inseriu novos elementos à festa, o concurso de máscaras. O concurso é organizado pela Casa do Povo para premiar e incentivar os artesãos de máscaras de madeira, e manter a continuidade e a tradição. Este é um dos momentos da festa em que a audiência é essencialmente composta pelos membros da comunidade, artesãos e seus familiares. O júri do concurso é constituído por pessoas convidadas, exteriores à comunidade. Os prémios atribuídos contemplam a melhor máscara no seu conjunto (fato e máscara), a melhor máscara de madeira, a primeira máscara, e prémios de participação, como incentivo e reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Durante o concurso a maior parte dos visitantes dispersa-se pelos lugares onde são oferecidos os “banquetes”.

No Largo da Vila saboreia-se o caldo de farinha, e no Largo da Casa do Povo a feijoada. A história a que remete a origem do banquete comunitário celebra a abundância do grupo social, de tal forma que se permitem a convidar os vizinhos e os forasteiros para o seu banquete. Segundo Bakhtin (1969), o triunfo do banquete é universal, representando o triunfo da vida sobre a morte, sendo nesse aspecto, o equivalente da concepção e do nascimento, em que o corpo vitorioso absorve o corpo vencido e se renova. Desta forma, o Carnaval de Lazarim remete-nos para um contexto rural de formação cristã, e o seu ritual para uma pândega libertadora, onde rapazes e raparigas cumprem o seu papel de herdeiros de uma paródia burlesca.

PARA MANTER A TRADIÇÃO

Ao elegermos como objecto de estudo a festa de terça-feira gorda, recriada como modelo de autenticidade e tradição, correspondemos às expectativas dos organizadores do evento, relativamente ao público-alvo. Os habitantes de Lazarim, sobretudo os agentes culturais e participantes, sabem que a festa atrai uma diversidade de visitantes, fascinados pelas festas populares no mundo rural, para além de investigadores nacionais e estrangeiros, de estudantes universitários e da comunicação social. A afluência de forasteiros constitui motivo de orgulho para a população, justificando que antropólogos e jornalistas sejam reconhecidos como importantes aliados, pelos seus trabalhos contribuírem para a divulgação e legitimação da tradição, e para o prestígio da comunidade à escala nacional e global. Os homens e mulheres que investem persistentemente na transmissão de rituais do passado têm consciência da sua importância para a sua construção identitária, como testemunha Norberto Carvalho:

A terça-feira de Carnaval queríamos conservar, porque é uma identidade própria é alguma coisa que faz parte da nossa identidade e que nos dá algum valor. Somos reconhecidos também por isso. Estamos a tirar alguma riqueza social e intelectual deste tipo de eventos e vamos aproveitá-los dando conhecimento do que se passa aqui em Lazarim ao País e ao Mundo, para deixarmos uma referência para as pessoas que vierem mais tarde.

O discurso institucional justifica as razões que levaram à reinvenção da tradição como património cultural, e a sua importância para a projecção da comunidade. Apesar de haver cada vez menos jovens que garantam a continuidade das práticas carnavalescas em Lazarim, tudo indica que o interesse dos poucos que restam é cada vez maior. Este fenómeno foi igualmente identificado por Paula Godinho (1995), relativamente aos Caretos do Nordeste Transmontano, que após um interregno de alguns anos, e querendo retomar as práticas carnavalescas, recorreram às memórias dos mais velhos, para reconstituir ou “reinventar a tradição”. Além disso, tal como os intervenientes na construção da Festa dos Rapazes, também os jovens de Lazarim “se orgulham de ter presentes na sua festa investigadores, antropólogos portugueses e estrangeiros, museólogos e representantes da comunicação social” (GODINHO, 1995, p. 88). A divulgação da festa, sobretudo nos meios de comunicação social, serve para reforçar a identidade colectiva, projectando a comunidade local no mundo global.

 

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FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

* Fotos da autora realizadas durante o trabalho de campo

FONTES ORAIS:

Adão de Castro Almeida

Afonso de Almeida e Castro

Agostinho Ramalho

Amândio de Castro Lourenço

Elvira Fernandes

Hélio Fernandes

Isabel Loureiro

Joaquim Simões

Joaquim de Almeida Lino

José António da Silva Costa (Costinha)

José Lourenço Rua

Laurinda Vaz Lino

Márcia de Castro Almeida

Maria de Lurdes Castro Lourenço

Norberto Castro Carvalho

Paulo Fernandes

Paulo Loureiro

 

FONTES DOCUMENTAIS

Biblioteca Municipal de Lamego

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, Annablume Editora, 5ª Edição. 2002

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Algés: Difel. 2001.

CONNERTON, Paul. Como as Sociedades Recordam, Oeiras: Celta Editora. 1999.

COSTA, Gonçalves M. 1977. História do Bispado e Cidade de Lamego, Vol. I. Lamego. 1977.

CORREIA, Alberto. Máscaras de Carnaval em Lazarim. Lamego: Edição da Câmara Municipal de Lamego. 2003.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1978

GODINHO, Paula. 1995. “Ser rapaz e ir à Festa”, in Actas do Congresso, A Festa Popular em Trás-os-Montes. Bragança, pp. 81-92

HALBWACH, Maurice. A Memória Colectiva. São Paulo: Centauro Editora. 2004.

HOBSBAWM E. & T. RANGER. The Invention of the Tradition. Cambridge: Cambridge University Press. 1983.

LÉVI-STRAUSS, Claude. A Via das Máscaras. Lisboa: Editorial Presença. 1981.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Festividades Cíclicas em Portugal, Lisboa: Publicações D. Quixote. 1984.

PINELO TIZA, António. 1995. “O Mascarado, suas funções nas festas do Inverno”, in

SCOTT, James C. Los Dominados y el Arte de la Resistencia. México: Editorial Txalaparta. 2003.

TURNER, Victor. “Are There Universal Performances in Mito, Ritual and Drama?”. Richard Schechner e Willa Appel (ed.) By Means of Performance, Intercultural studies of theatre and Ritual. Cambridge University. 1990.

VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem. Petrópolis-Brasil: Editora Vozes. 1978

 

[1] Dulce Simões integra a Associação Mural Sonoro, doutorada em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA) e bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É investigadora integrada no INET-md e colaboradora do Instituto de História Contemporânea (FCSH/NOVA). É membro fundador do Grupo de Estudios Sociales Aplicados da Universidad de Extremadura (GESSA) e da Red(e) Ibero-Americana Resistência e(y) Memória (RIARM). Realiza investigação em Portugal e Espanha sobre fronteiras, movimentos sociais, usos políticos da memória e práticas da cultura. Participa em projectos de investigação internacionais e multidisciplinares

1  Agostinho Ramalho nasceu em Bigornes em 1964. Os pais eram naturais de Lazarim. É Pároco de Lalim e de Lazarim há cinco anos, onde reside. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

2  Norberto Carvalho nasceu em Lazarim em 1961, filho de lavradores e comerciantes. É comerciante e o actual presidente da Junta de Freguesia de Lazarim. Pertenceu ao grupo dos Compadres. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

3  José Rua nasceu em Lazarim em 1920 e frequentou o Ensino Primário. O pai foi Juiz de Paz em Lazarim. Dedicou-se à agricultura e aos 24 anos foi trabalhar para Lisboa, na empresa ROMAR, mas regressou a Lazarim para desempenhar as funções de encarregado geral de obras na Câmara Municipal de Lamego, de onde se reformou. Ainda pertence à Tuna de Lamego. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 2 de Março de 2003.

4  Depoimento de Afonso Almeida e Castro. Notas de campo de Março de 2004.

5  Amândio Lourenço nasceu em Lazarim em 1953, filho de lavradores. Tem o Curso Geral de Administração e Comércio é Funcionário Público na Segurança Social de Lamego. Foi Presidente da Junta de Freguesia de Lazarim entre 1983 a 2002. É presidente da Casa do Povo de Lazarim. Excerto da entrevista realizada em sua casa, em Lazarim, a 2 Março de 2003.

 

6  Elvira Fernandes nasceu em Lazarim em 1923, filha de lavradores. Em 1944 casou com José Rua e teve 9 filhos, mas só seis chegaram à idade adulta. Trabalhou no grupo familiar e é doméstica. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 2 de Março de 2003.

 

7  Afonso Almeida e Castro nasceu em Lazarim em 1921, filho de lavradores. O pai foi Regedor em Lazarim. Em 1944 emigrou para o Brasil, trabalhou na pesca, e viveu em Caju, no Rio de Janeiro, onde vivem actualmente os filhos e netos. Regressou a Lazarim em 1970 e dedicou-se à construção de máscaras. É o mais antigo artesão de máscaras de madeira. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

8  Joaquim Simões foi professor de Educação Visual e Tecnológica (EVT) na Telescola de Lazarim durante 23 anos. Vive em Lamego e é Subdirector da região norte da Telescola. Foi responsável pela recuperação das práticas carnavalescas nas escolas de Lazarim. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 4 de Março de 2003.

 

9  Isabel Loureiro nasceu no Lazarim em 1978, mas migrou com os pais para Lisboa, onde vive actualmente. É escriturária de profissão. Faz parte do grupo das Comadres e todos os anos se desloca a Lazarim para participar na feitura do testamento. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, dia 4 de Março de 2003.

 

10  Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

11  Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

12  Paulo Loureiro nasceu em Lazarim em 1977. É filho de comerciantes locais e empresário no ramo de lavandarias em Lamego. Faz parte do grupo dos Compadres desde os 15 anos de idade. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

13  Márcia Castro Almeida nasceu em Lazarim em 1981, e é empregada de comércio em Lamego. Faz parte do grupo das Comadres. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março, de 2003.


 

 

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