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Recepção Musical 2

O ódio e suas tecnologias, por Susan de Oliveira

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O ódio e suas tecnologias, por Susan de Oliveira

[1] por Susan de Oliveira

A extrema-direita se impôs no Brasil pela primeira vez através do voto. Levou ao poder Jair Bolsonaro e para isso promoveu não só um fenômeno eleitoral mas uma profunda alteração cultural e política.

A maioria relativa que levou à eleição de Bolsonaro é adepta das ideias do ex-capitão mas se define como descrente nas suas ameaças e se diz, sobretudo, antipetista. Por sua vez, o antipetismo não se reduz ao bolsonarismo que se nutre do racismo e do machismo estruturais, da manipulação do fundamentalismo evangélico e de ideias nazifascistas latentes na sociedade sendo sua resultante a violência racial, de gênero, contra os pobres, a intolerância religiosa e ideológica generalizadas cultivadas sob o rótulo de anticomunismo.

O antipetismo é um fenômeno complexo de várias nuances que abarcam, por exemplo, tanto uma crítica à esquerda, partidária e acadêmica, como a repulsa racista das elites brancas e liberais às políticas de inclusão dos pobres e negros feitas no governo Lula. O vários tipos de antipetismo, no entanto, seguramente têm seu mais enfático pressuposto no discurso anticorrupção. O discurso contra a “corrupção do PT”, principal partido de centro-esquerda que governou o país por três mandatos consecutivos, dois de Lula e um de Dilma (o segundo dela foi interrompido por um golpe jurídico-parlamentar), se tornou um pressuposto amplamente aproveitado eleitoralmente mesmo sendo o PT apenas o 9º partido da lista em que figuram políticos envolvidos em processos e sendo os governos petistas os que mais produziram as condições técnicas e institucionais para o combate à corrupção. Praticamente todos os partidos de direita estão à frente do PT nesta lista.

A propaganda do combate à “corrupção do PT” foi implementada pela Operação Lava Jato, conduzida pelo Juiz Sérgio Moro que será o Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, e se tornou famosa com a prisão do ex-presidente Lula que teve sua participação impedida no processo eleitoral o qual, é bom que se diga, ele venceria por larga margem de votos.  Desde então, este se tornou um conhecido processo de lawfare e o mais importante caso de prisão política no Brasil desde a ditadura militar em face da ausência de crime e de provas em sua sentença condenatória e finalmente com a sua exclusão do processo eleitoral.

O PT chegou como sobrevivente à disputa presidencial com Fernando Haddad, um substituto escolhido por Lula, que fez uma campanha de ascensão vertiginosa em pouco mais de 30 dias. Obteve um votação expressiva dentro de um quadro de poucos apoios e muitas fake news que deram um rumo absurdamente violento nos momentos decisivos da campanha eleitoral, tanto nas vésperas do encerramento da primeira volta como da segunda. Mentiras foram criadas e distribuídas em ritmo e proporção industrial para difamar e criminalizar Fernando Haddad de forma abjeta. Milhares de disparos das fake news em grupos no WhatsApp teriam sido pagos ilegalmente por empresários, conforme noticiou o Jornal Folha de São Paulo, no dia 19 de outubro, tendo como consequência o cancelamento pelo próprio WhatsApp de mais de cem mil contas de agentes ligados à tal distribuição.

A estratégia da difamação foi bem sucedida na eleição de Donald Trump e utilizada no Brasil por influência do seu idealizador, Steve Bannon, consultor de estratégia eleitoral da família Bolsonaro e do seu partido, PSL.

A reação moralista às mentiras escandalosas contra Haddad foi estimulada pelo fundamentalismo religioso em longos cultos nas igrejas e visava sobretudo atingir o eleitorado evangélico onde Bolsonaro tem seu principal apoio e cujo máximo expoente é o Bispo Edir Macedo, dono da IURD e da Rede Record, agora chamada de “Fox brasileira”.

O efeito moral das fake news direcionadas ao eleitorado evangélico, no entanto, foi detectado no dia seguinte às gigantescas manifestações do Movimento #EleNão (Mulheres contra Bolsonaro) convocadas por grupos no facebook e ocorridas no dia 29 de setembro. Uma expressiva vantagem numérica nas pesquisas de intenção de votos chamou a atenção para o que se produzia no submundo das redes sociais:  imagens manipuladas de outras manifestações que continham nudez e contestação religiosa foram associadas às manifestações. Tudo absolutamente inverídico para o evento realizado mas devastador para as pessoas mais humildes e conservadoras atingidas pelo dispositivo de manipulação psicológica criado pelos processos de seleção de público da Cambridge Analytica.

Naquele momento, portanto, se deu a irreversível assimilação de segmentos da centro-direita conservadora e das classes populares evangélicas à candidatura Bolsonaro mudando a correlação de forças na disputa eleitoral.

O bolsonarismo que trinfou eleitoralmente junto com Bolsonaro foi forjado pela reunião de fobias, desinformação, mentiras e manipulações vulgares e percebeu-se que o ódio e a violência foram ativados especialmente por questões morais suscitadas no ambiente das obscuras tecnologias de informação e pela manipulação de dados obtidos ilegalmente de perfis pessoais.

Isso se somou ao efeito dramático do atentado à faca sofrido por Bolsonaro ás vésperas do Dia da Independência, um feriado militar que evoca o outro elemento que potencializa a violência e canaliza os moralismos para a memória da ditadura e da “solução final” de todos os “inimigos” internos.

Um mês depois da facada que “humanizou” Bolsonaro, a primeira volta das eleições deu uma expressiva vantagem de votos a qual elevou ao grau máximo as tensões da campanha e deflagrou uma série de ataques, com cinco mortes, contra eleitores de Fernando Haddad e minorias. O primeiro a morrer foi Mestre Moa do Katendê, um artista popular negro, conhecido capoeirista e músico da Bahia. Ele recebeu doze facadas de um bolsonarista por ter declarado voto em Haddad.

A morte de Mestre Moa criou uma comoção nacional mas, ao contrário do que se poderia esperar, não serviu como advertência e estimulou que houvesse mais de oitenta casos de agressões e outras quatro mortes:  três de mulheres transexuais, Priscila, Laysa e Kharoline, assassinadas a facadas, culminando com a execução de outro jovem negro, no Ceará, Charlione Lessa Albuquerque, este com quatro tiros, às vésperas do término das eleições.

Os vencedores estão agora nas ruas prometendo implementar a nova ordem assim que forem liberados a posse e o porte de armas, movidos por ódio e um empenho moral de limpeza política, social e racial vasculhando os porões da escravidão e da ditadura militar reabilitando torturadores e genocidas à história, coisa que o próprio Bolsonaro já fez várias vezes e reiterou recentemente com suas ameaças de eliminação partidos, lideranças e ativistas de esquerda, como Marielle Franco, e dos movimentos sociais, como MST e MTST.

Não se sabe ao certo que medidas serão tomadas contra as liberdades civis e políticas das que foram anunciadas por Bolsonaro, mas restou o bolsonarismo que mesmo sem manifestar-se como uma ameaça real, criou a desconfiança de quem está ao nosso lado, o ódio entre conhecidos e familiares, a ruptura dos afetos e da comunicação, a demonização dos corpos e pensamentos que compõem o cenário de terror ao atravessar a rua.

Como conviver com o fascismo é o nosso desafio. Combinamos de não soltarmos as mãos de ninguém, de não nos deixarmos morrer, mas antes fosse a luta pela própria sobrevivência o que mais importa, embora tenhamos medo. Na verdade, enquanto o fascismo cresce entre nós, são negociados os projetos mais brutais do ultra-liberalismo que serão aprofundados para além do governo Temer e nos farão descer ao pré-sal da colonização com Bolsonaro aos pés de Trump e Netanyahu. E é disso que se trata:  o ódio bolsonarista forjado no antipetismo serve à ganância do sistema financeiro, à guerra e à predação mortal contra todos os seres vivos que levam um governante a ameaçar de extermínio o próprio povo: não haverá Amazônia, segundo o presidente eleito, “nem um centímetro para quilombola ou reserva indígena”. Nos resta atravessar a rua.

[1] para citar esta opinião: * Oliveira, Susan de, «O ódio e suas tecnologias», plataforma Mural Sonoro, em 2 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Susan de oliveira, professora de literatura e pesquisadora brasileira (UFSC)

Fotografia de capa: Mestre Moa



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Uma Terra em Brasa, por Pedro Calasso

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Uma Terra em Brasa, por Pedro Calasso

[1] por Pedro Calasso


Nunca imaginei viver um momento como este.

Não desta maneira. Sempre achei que algo crítico aconteceria.

O clima morno, panos quentes e séculos de sujeira varrida pra de baixo do tapete, inevitavelmente seriam trazidos à tona como uma infecção que é expulsa de um organismo que não mais a suporta.

Pensei porém que essa luta seria travada de forma clássica, entre o povo e seus opressores, numa nítida luta de classes onde esses inúmeros brasis de matrizes indígenas, africanas, européias e orientais se uniriam e cobrariam dos menos de 10% da população que detêm a riqueza do país, o fim dessa exploração desmedida ao qual nos submetem há tanto tempo.

O Brasil tem mais de 300 nações indígenas, com línguas e culturas distintas, cerca de 400 ritmos afrobrasileiros, sendo que na África inteira existem por volta de 200. Tem a maior colônia japonesa fora do Japão, tem turcos, libaneses, sírios, portugueses, espanhóis, italianos e alemães entre outros povos e culturas, fazendo com que o povo brasileiro, tão bem descrito nas obras de Darci Ribeiro, seja o povo mais miscigenado e multicultural do planeta.

Na rua e nas massas todo povo é povo.

Somos generosos e donos de uma cultura intensa, plural e viva.

Mas na relação com o Brasil que manda, com o Brasil do poder e do capitalismo propriamente dito, provavelmente somos o país mais injusto do mundo.

O racismo nesse âmbito é cruel e mata.

O descaso, a ganância e a crueldade varrem nações indígenas inteiras do mapa.

O pobre, independente de sua cor ou descendência, representa uma ameaça ao estilo de vida da elite e precisa ser combatido.

Aqui, matar pobre, jovem, mulher, preto e homossexual é institucionalizado.

A fortuna e o conforto de dúzias de famílias sempre ditaram nossa sorte e exatamente contra isso e pela verdadeira libertação do pobre, do preto e do indígena, que ainda vivem sob o cabresto de seus senhores é que achei que lutaríamos juntos, como um só povo.

Mas na contramão à minha crença e usando de toda forma de artifícios, fomos rachados ao meio, numa manobra precisa da extrema direita aliada a um grupo de investidores, tornando possível à alguém como Bolsonaro chegar ao poder através do voto aberto.

Os problemas reais da economia brasileira, o sistema político e financeiro corruptos e o momento delicado da economia mundial foram usados de forma ardilosa por um grupo que representa os interesses de investidores multinacionais, que através a derrubada de Dilma Rousseff (PT) da presidência e a demonização da esquerda brasileira, chegaram ao poder.

Com a ajuda de um especialista de renome internacional em manipulação da opinião pública e de boa parte da “grande mídia brasileira”, plantou-se a ideia de que todos os problemas seculares de nossa nação foram criados ou aprimorados durante os anos do PT na presidência e que vivemos sob a ameaça de uma “ditadura comunista”.

Através de um investimento ilícito e milionário foi desenvolvida uma campanha sofisticada para disseminação de fake news banalizando movimentos populares, promovendo o ódio pela esquerda e o antipetismo que se multiplicou dentro de vários setores da sociedade.

Essa massa no geral é formada por pessoas inconformadas com os problemas no sistema público e a corrupção no país e que foram absorvidas por esse conceito de antipetismo, também por empresários que vêem nesse governo a possibilidade de enriquecimento, além de extremistas, fascistas e fundamentalistas religiosos, que se juntaram num coro quase insano de ódio e intolerância a favor do armamento da população, da diminuição da maioridade penal, da atribuição do poder de execução dado às polícias, da perseguição aos homossexuais, às religiões afro-brasileiras, às nações indígenas e mais uma série de conceitos nazi fascistas.

Meio a tudo isso acabamos polarizados, somos nós e eles, eles e nós e não estou falando dos extremistas ou empresários não, estou falando é do povão mesmo.

Fomos divididos para que eles pudessem conquistar o poder e nessa divisão é que mora o perigo.

Vivemos na iminência de uma guerra civil, um golpe militar e uma cooperação militar entre Bolsonaro e Trump para uma possível invasão na Venezuela.

O armamento pesado “doado” pelo governo norte americano chega aos montes.

Existe ainda o desejo de multinacionais de minerar em plena floresta amazônica e de se ampliar exponencialmente a área utilizada pelo agronegócio brasileiro e para isso será preciso derrubar todas as leis de proteção ambiental, o que está em curso com a “fusão” do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura.

Que isso tudo vai dar em algum lugar terrível para o Brasil e o planeta já é certo.
Tendo a acreditar que disso tudo há de nascer algo bom, uma esquerda renovada, uma sociedade mais justa, novas manifestações e movimentos artísticos, pois como resposta à barbárie temos o costume de mostrar o nosso melhor.

O quanto isso irá nos custar?, é o X da questão.

[1] para citar esta opinião: *Calasso, Pedro «Uma Terra em Brasa», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e compositor brasileiro

Fotografia de capa neste artigo: montagem de Pedro Calasso para Mural Sonoro.




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O que nos resta do regime militar, por Diego Pacheco

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O que nos resta do regime militar, por Diego Pacheco

[1] por Diego Pacheco

Já tarda de muito, o momento em que a Revolução se houvesse institucionalizado realmente, garantindo ao País a segurança de que, numa perspectiva de longos anos, tudo poderá ocorrer sem sucessivos retornos a medidas revolucionárias.

Gen. Golbery de Couto e Silva (Chefe da Casa Civil do governo Geisel, 1974)


O regime autoritário brasileiro distinguiu-se pela prolongada existência e preservação da capacidade de intervenção militar, com a presença no poder de um grupo dirigente voltado para a questão da institucionalização política, seja ao assumir a condução do Estado em 1964, seja ao comandar a lenta transição até à constituição de um governo civil em 1985.  

Assumindo a liderança do regime em 1974, o general Ernesto Geisel que em nenhum momento acenou com a possibilidade de eleições livres e diretas para a escolha do próximo presidente, tal como exigia a oposição democrática, deixou bem claro que os instrumentos de exceção permaneceriam "até que sejam superados pela imaginação criadora, capaz de instituir, quando for oportuno, salvaguardas eficazes dentro do contexto constitucional". O objetivo que se desenhava, assim, continuava a ser o da institucionalização de um regime que anunciava medidas liberais, mas as condicionava à consolidação do projeto autoritário.

A implementação das medidas liberalizantes iniciadas por seu governo estava condicionada à institucionalização de um tipo de regime autoritário com restrições democráticas, o que significa que no projeto de distensão/abertura, a retirada das Forças Armadas da direção do Estado implicava mais do que a sua substituição por um esquema civil de confiança baseado no partido do governo, de modo a preservar os interesses institucionais das corporações.

Como integrantes do aparelho de Estado, os militares deveriam continuar a exercer sua influência sobre as questões em discussão pelos atores do sistema político e da sociedade civil, a fim de garantir a institucionalização de um poder político voltado, sobretudo, para moderar a participação popular tanto na constituição de governos quanto na formação das suas decisões.

Se retirando das instituições de poder político no decorrer da década de 1980, os militares acompanharam a sucessões de governos civis iniciados por um membro da ARENA, José Sarney, seguido por uma intensa crise no novo sistema político brasileiro: o impedimento do primeiro presidente eleito Fernando Collor de Melo em 1992.

Com a estabilização da economia e a contenção do grave problema inflacionário, o sistema polítco brasileiro passou por um período da estabilidade e de ascenção das classes populares, gerando maior distribuição de renda, combate a fome e a miséria, problemas antigos brasileiros, agravados inclusive durante o período ditatorial na segunda metade do século XX.

Com a crise econômica no final da primeira década do século XXI a social democracia brasileira, no governo há mais de uma década, passou a ter dificuldades em manter sua política de atendimento das demandas populares e, ao mesmo tempo, manter as altas taxas de lucros do sistema financeiro e de setores empresariais que ainda sustentavam seus governos. Perdendo o apoio de parte da sociedade, o pacto socialdemocrata se rompe, inviabilizando o governo Dilma Rousseff por meio de um entrave legislativo e uma sistemática campanha mediática que cobrava ao governo por medidas liberais que estancasse o gasto público com programas sociais e de investimento em serviço público.

Assim como em outras partes do mundo, a campanha contra a socialdemocracia passou a relacionar os gastos públicos com a bandeira sempre útil da corrupção, chamando a atenção da sociedade civil para a relação promiscua entre empresas e o estado, onde empreiteiras se beneficiavam de contatos políticos para garantir licitações e aumentar ainda mais seus lucros em troca de apoio político e financeiro.

Com a crescente perda de credibilidade da socialdemocracia, com o profundo fisiologismo dos partidos de centro e com a debilidade política da democracia cristã, a resposta mais imediata da direita brasileira é em revisitar um passado mítico do regime militar. Isso só é possível graças ao projeto bem sucedido de institucionalização do regime, que, além de controlar todo o processo de anistia política, inclusive com a ideia de auto anistia, manteve instituições policiais e jurídicas criadas no periodo autoritário, chamados por muitos de entulhos autoritários.

Tais entulhos jamais foram retirados da sociedade brasileira. O elogio à tortura, a violência política e a ascensão da ultradireita brasileira só é possível devido ao sentimento romantizado acerca de um período que como sociedade nunca fomos capazes de encarar criticamente nas escolas. A discussão sobre Ditadura Militar nunca saiu efetivamente dos muros acadêmicos. O sucesso de sua institucionalização se deu sobretudo por meio de um pacto de silêncio dos mais diversos atores políticos que hoje se tornam vítimas de seus próprios contratos.

[1] para citar esta opinião: *Pacheco, Diego «O que nos resta do regime militar», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Professor, historiador, pesquisador brasileiro (UFSC)


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Brasil, começar de novo?, por Ivan Lins

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Brasil, começar de novo?, por Ivan Lins


[1] por Ivan Lins

Queridos amigos e queridas amigas em Portugal,

A verdadeira democracia brasileira, moldada na alegria, no pacifismo, na gentileza, na liberdade de expressão, na de gênero, na de religião, acaba de sofrer um baque, que se perpetuará por quatro anos no mínimo.

Avanços em algumas áreas estão prometidas? Mas, vários retrocessos também. O que, de uma certa maneira, segue o que vem acontecendo no mundo. A extrema direita vem se espalhando lentamente. Em minha opinião, muito por incompetência do centro e da esquerda. A esquerda que muitas vezes se abraçou à arrogância, à prepotência e à soberba.

Fala-se em corrupção. Esta existe de qualquer lado, ela naufragou todas as teorias ideológicas, dada a variada natureza humana, que não a levaram em conta. 

A busca do poder, com seus confortos financeiros, levou esses ‘‘espertos’’ a ‘‘lutas’’ que usaram da sedução e de corporações ricas, com seus interesses meramente oportunistas, especialmente o de serem bem sucedidos.

Demagogia, corrupção, má fé, incompetência e ineficiência, levaram o Brasil a uma situação econômica trágica. Desta situação trágica, emergiu o que muitos e muitas julgarão ser o "salvador da pátria", com um discurso duro, de temperamento incendiário, agressivo, reacionário.

Assumiu sua novidade com promessas sedutoras, de forma fanática, se oferecendo como antídoto seguro contra o desastre das administrações anteriores, explorando a imensa e cega raiva e ódio de grande parte da população. Anestesiou raciocínios e o bom senso, explorando a imensa ignorância aflorada no país. Momento certo, no lugar certo, infelizmente. Ajudando a eleger outros novos, que sabemos aqui, dotados de competência e honestidade duvidosa. Tudo em nome da ‘‘renovação politica’’, e ‘‘afastamento de antigas’’, e, convenhamos, também duvidosas, lideranças políticas. 

Gostaríamos de que, ao menos, o menos pior se revelasse. Temos muitas dúvidas quanto a isso. A verdadeira democracia está ameaçada.

O bom é que a oposição popular é bastante grande também. O que pode obrigar ao ‘‘messias de tacape’’ a ter que optar por medidas menos levianas.

O Congresso, agora dividido, não será tão puxa-saco, como foi o da maldita ditadura anterior, de tão triste lembrança? Quando os militares, além da violência, fizeram vista grossa para a imensa corrupção, que já vicejava naquela época?

Tempos bem complicados, neste meu Brasil querido, estão chegando.

Mas jamais derrubarão, no sentimento dos verdadeiros democratas, a eterna esperança pelo sol brilhante a prevalecer sobre as trevas.

[1] para citar esta opinião: Lins, Ivan «Brasil, começar de novo?», plataforma Mural Sonoro, em 29 de Outubro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e Compositor brasileiro

Sugestões de escuta:

1) Sarah Vaughan que também gravou músicas, como esta, de Ivan Lins. «Começar de Novo» foi uma das canções de Ivan Lins e Vitor Martins censuradas no período da ditadura militar brasileira. 

2) Ivan Lins, História Oral, Mural Sonoro, entrevista a Soraia Simões em 2013 aqui

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Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias, por Ana Pinto

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Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias, por Ana Pinto

[1] por Ana Pinto

As bandas filarmónicas são dos agrupamentos musicais de índole popular mais disseminados pelo nosso país. Com uma forte tradição na divulgação da arte musical e da cultura popular em geral, têm tido, desde que surgiram, um papel preponderante na formação de miúdos e graúdos e, inclusivamente, na sua integração social.

Há quem as apelide de “conservatórios do povo” por serem verdadeiras escolas de música dita não erudita, mas de onde saem alguns dos maiores nomes da música nacional. Criadas em Portugal há cerca de dois séculos, proliferam por todo o país, em aldeias, vilas e cidades, e são assumidas como verdadeiros veículos de transmissão cultural e de valores.

A Banda Filarmónica de Pinhel, da qual faço parte enquanto instrumentista (clarinete) há quase 17 anos, é uma das centenas de filarmónicas existentes por todo o território nacional e, apesar de interruptos, conta com mais de uma centena de aniversários, assumindo um forte papel de educação cultural e musical dos indivíduos que habitam tanto na cidade como nas aldeias do concelho.

Da sua história, difusa e bastante dispersa, pouco se sabe. Sabe-se que não tem uma existência ininterrupta, tendo passado por várias crises ao longo das décadas que provocaram sucessivos términus e recomeços, com mudança do modo de gestão, organização e, até, da sua denominação.

Até à data, nunca ninguém se debruçou sobre a história desta Instituição pinhelense que, atrevo-me a afirmar, é das mais antigas da cidade, ficando apenas atrás (no que à data de fundação diz respeito) da Santa Casa da Misericórdia e dos Bombeiros Voluntários.

Não obstante o facto de, actualmente, não ser o único grupo musical da cidade, foi um dos primeiros – ou, mesmo, o primeiro – a ser fundado, pelo que merece que lhe seja reconhecida a devida importância e longevidade.

O meu profundo interesse e curiosidade pela história da Filarmónica onde cresci e cresço todos os dias levaram-me a iniciar uma investigação sobre a mesma. Quando comecei, em meados do ano 2015, o projecto era apenas de ordem pessoal, que desenvolvia nos tempos livres com o objectivo de recolher, sobretudo, dados históricos.

Mais recentemente, a vontade de prosseguir a minha formação académica levou-me a procurar um curso através do qual pudesse desenvolver esta investigação numa vertente científica. Deste modo, a investigação que tenho em curso sobre a Banda Filarmónica de Pinhel servirá de tema para a dissertação do Mestrado em Estudos de Cultura que iniciei no presente ano lectivo na Universidade da Beira Interior.

Recuperar, sistematizar e divulgar a história da Banda Filarmónica de Pinhel é o objectivo maior desta investigação. Adicionalmente, espero que a mesma sirva para promover a Instituição e aproximá-la da comunidade pinhelense que, segundo a minha experiência pessoal, não lhe atribui nem reconhece o seu devido valor. Por outro lado, com a realização deste estudo de mestrado, pretendo igualmente inquirir a população de Pinhel com o intuito de avaliar e perceber o seu grau de conhecimento em relação a esta Filarmónica, bem como a valorização e importância que cada um lhe atribui.

Pelos dados que já me foi possível recolher, a origem da música de grupo em Pinhel remonta, sensivelmente, ao século XIX e está relacionada com a presença de unidades militares na cidade. De acordo com essas informações, em finais do século XIX estava aquartelado na cidade o Regimento de Infantaria 24, que teria uma Banda Militar. Mais tarde, sabe-se que também o Regimento de Infantaria 34 (instalado em Pinhel entre 1918 e 1926) teve a sua banda de música e que, esta última, coexistiu com a primeira banda filarmónica civil da Cidade Falcão.

Os músicos e a música militar existentes na cidade acabaram por, invariavelmente, ter influência na criação e manutenção da filarmónica que surgiu em Pinhel nos primeiros anos do século XX uma vez que alguns músicos militares foram músicos da banda civil, tal como aconteceu com alguns dos seus maestros.

A investigação conta já com uma vasta pesquisa em diversas fontes: imprensa local e regional, documentação existente no Arquivo Municipal de Pinhel, bibliografia local, bem como diversas entrevistas realizadas a antigos músicos e ao responsável pela criação da actual versão da Filarmónica, em actividade ininterrupta desde meados de 1986.

A pesquisa em fontes documentais ainda está a decorrer, visto que há alguns jornais e outra documentação a consultar, e a realização de entrevistas a antigos músicos também está por terminar.

Não obstante este facto, a investigação segue a bom ritmo. Já consegui recolher dados bastante importantes e tenciono que o estudo esteja concluído em 2020, altura previsível da apresentação pública dos resultados com a defesa da referida dissertação de mestrado.

Numa altura em que a temática das bandas filarmónicas e da filarmonia ganha cada vez mais espaço no meio académico, considero pertinente a realização deste estudo com suporte científico, dando o meu contributo para o estudo destas matérias no seio das nossas universidades. Ao mesmo tempo, espero que o trabalho possa engrandecer a Instituição aos olhos da comunidade e contribuir para enriquecer a cultura da cidade e do concelho de Pinhel.


[1] para citar este artigo: *Pinto, Ana «Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias», Plataforma Mural Sonoro em 27 de Outubro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

Fotografia de capa, Banda da Legião Portuguesa (Pinhel) - Ano de 1948, espólio da Casa do Povo de Pinhel.

*Professora de clarinete e saxofone na Academia de Música de Pinhel. Estudante de Mestrado.


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A humanização da necessidade e a liberdade necessária à realização pessoal e humana, por Alexandra M. Moreira do Carmo

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A humanização da necessidade e a liberdade necessária à realização pessoal e humana, por Alexandra M. Moreira do Carmo

por Alexandra M. Moreira do Carmo [1]

1. Introdução

Perante o actual desenvolvimento da ciência e da tecnologia e não se colocando já a problemática da escassez para a maioria das sociedades industrialmente avançadas, multiplicam-se as interrogações sobre a pertinência de abolir o trabalho imposto pela necessidade e a possibilidade de o substituir por actividades que visem mais a auto-realização. O horizonte deste questionamento será remetido, num primeiro momento, para um breve enquadramento histórico da noção de trabalho e dos argumentos que sustentam a sua abolição, desde Aristóteles e através de Karl Marx. Estará em causa a contraposição entre necessidade e liberdade cuja explicitação se desenvolverá, no contexto proposto, em torno da distinção que Hannah Arendt estabelece, em A condição Humana, entre labor, trabalho e outras actividades que escapam ao universo conceptual dos primeiros.

Num segundo momento, contrastar-se-á o pessimismo de Hannah Arendt com o optimismo de Karl Marx, relativamente à possibilidade de o ser humano se libertar da sua condição moderna de animal laborans – pese mais a sua utilidade na produtividade ou no consumo – por meio do desenvolvimento tecnológico. Concluo, discordando de Arendt, que a libertação em causa é possível mas esta não dependerá apenas do desenvolvimento da tecnologia. Partindo do pressuposto de que os critérios pelos quais se regulam as sociedades contemporâneas são ainda os da modernidade, entre outros, os da produtividade e consumo, utilidade e crescimento ilimitado, será a interrogação sobre a capacidade de a cultura contemporânea se libertar desses critérios que se mostra, na minha perspectiva, premente. Isto é, entre os diferentes apelos que a componente revolucionária da ciência e da tecnologia nos dirige, estará aquele que convida à ultrapassagem do modo como habitualmente se reduz, em nome do “progresso”, o domínio da existência ao da mera subsistência.  


2. Liberdade e necessidade


As circunstâncias da idade contemporânea estão já determinadas pela evolução da ciência e da tecnologia, gerando inquietações, mas também antecipando novas realidades como a que atende ao desejo secular de libertar os seres humanos do trabalho imposto pela necessidade. O enquadramento histórico-filosófico relativo à “abolição do trabalho” exige que se distinga entre subsistência e existência, remetendo a primeira para as acções, meios e o conjunto de coisas essenciais ao processo biológico, estabilidade e preservação da vida e a segunda para a dimensão ôntico-ontológica do ser humano, actividade e capacidades que lhe são específicas cujo aprofundamento não se esgota nas acções que atendem às necessidades vitais. Neste contexto, poder-se-á também distinguir entre trabalho imposto pela necessidade e aquele que visa a auto-realização.

Este âmbito conceptual não difere muito do pensamento que influenciou a cultura do Ocidente, nomeadamente o grego, que distinguia entre trabalho e outras actividades que não são trabalho, e cujo menosprezo pelo primeiro se fundamentava na oposição entre necessidade e liberdade, e a ideia de que esta só seria possível na ausência das actividades que se ocupam da subsistência. Entre os modos de vida conotados com a liberdade, isto é, libertos do necessário e do útil, Aristóteles refere a vida orientada para o prazer [2] ; a vida que se ocupa dos “assuntos da polis” [bios politikos: acção (praxis) e discurso (lexis)]; e a vida que se dedica à investigação e “contemplação das coisas eternas” [theoria] [3], equivalendo esta última à vida mais autenticamente humana e feliz [eudaimonia] porque, conforme ao logos, nela se actualizam as possibilidades próprias e mais excelentes do ser humano [ergon] [4]. Sobressai na singularidade do pensamento aristotélico a ideia de que a felicidade é uma actividade [5], passível de potenciar não tanto o ter mas o ser humano e será esta liberdade que o filósofo não encontra nas actividades constrangidas pela necessidade.

O desejo de abolir o trabalho imposto pela necessidade pertence à génese do pensamento e cultura do Ocidente; no entanto, Hesíodo é um dos raros autores, senão o único, que aparentemente enaltece as penas das actividades vinculadas à necessidade. Distinguindo entre trabalho [(ergon) - trabalho criativo, cujo esforço dignifica o homem] e labor [(ponos), labuta sofrida, extenuante] [6], Hesíodo procura em Trabalhos e Dias valorizar o sofrimento oriundo de ponos, relacionando-o com a justiça [Dike], que domina a insolência [7] e cujo carácter virtuoso é resumido pelo autor na frase ainda hoje proferida “o trabalho não é vergonha, vergonha é não trabalhar” [8]. Mas o labor correlaciona-se também com a decadência progressiva da humanidade como o Mito das Cinco Idades explicita [9]. Se, na Idade de Ouro, os homens viviam ao abrigo do mal, trabalhos e aflições, na Idade de Ferro, a humanidade é alvo de uma punição cósmica [10], que sobre ela recai sob a forma do trabalho servil. Assim, embora dignifique o labor, Hesíodo também o considera um mal que a par dos outros males evolados da Caixa de Pandora é imposto por Zeus aos homens como castigo pela traição de Prometeu. Subjaz então ao labor, aos cuidados e aflições que consomem a humanidade, um sentimento de culpa, expiação e conformismo relativamente aos quais a sinistra frase “O trabalho liberta” inscrita nos portões nazis de Auschwitz não terá sido indiferente.

Derivando do latim tripalium que designa o instrumento composto por três varas utilizado para prender animais e torturar seres humanos, o sentido depreciativo que durante séculos foi atribuído ao trabalho depreende-se sem grande dificuldade da sua etimologia. Mas é no âmbito da contraposição entre labor e trabalho, referenciada por Hesíodo e aprofundada por Hannah Arendt na sua obra A Condição Humana, que melhor se explicita a heterogeneidade conceptual relativa à noção de trabalho [11].

Embora releve do sentido mais originário de labor uma componente ecológica e de proximidade do ser humano ao meio natural, o labor é também sinónimo de sofrimento, patente nas tarefas monótonas e extenuantes que o animal laborans executa com o objectivo de suprir as necessidades mais básicas do seu ciclo vital e o da espécie. Historicamente relacionado com a escravatura e a servidão, é no labor que a existência humana mais se ressente do peso da vida. Por seu lado, o trabalho corresponde ao universo do artifício humano de que o homo faber se ocupa, livre e criativamente, equivalendo, portanto, esta actividade a um modo de vida mais digna do que a do labor [12]. Esta distinção tende a esbater-se com o decorrer do tempo, mas as razões pelas quais se agregou labor e trabalho num único conceito, o de “trabalho”, diferem na antiguidade e na modernidade e, por isso, o desaparecimento desta contraposição reflecte também o modo como estes dois períodos da cultura europeia conceberam o que habitualmente se designa por “mundo do trabalho”.

No âmbito do pensamento aristotélico, as diferenças entre labor e trabalho não são irrelevantes, nem é questionada a correspondência deste último a uma actividade mais digna do que a do primeiro. No entanto, pelo facto de o trabalho não estar totalmente liberto do necessário e do útil, ele sofre, como o labor, embora noutro grau, de um deficit de liberdade [13]. Assim, para Aristóteles, a contraposição mais relevante será entre labor/trabalho, de um lado, e as actividades absolutamente livres dos constrangimentos impostos pela necessidade, de um outro, consistindo esta libertação, no essencial, na realização do que é mais próprio e especificamente humano.

[1] para citar este artigo: *Carmo, Alexandra M. Moreira «A humanização da necessidade e a liberdade necessária à realização pessoal e humana», plataforma Mural Sonoro https://www.muralsonoro.com/recepcao, 22 de Outubro de 2018. Anexo [sugestão].

*Investigadora do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)

[2] Cf. Aristóteles, 2004: 1095b. Para o desenvolvimento do conceito de prazer no contexto aristotélico, veja-se na mesma obra: 1172 a -1176.

[3] Cf. Aristóteles, 2004: 1095b -1096 a.  

[4] O termo grego ergon traduz-se habitualmente por “função”, remetendo-se neste contexto para a especificidade da função humana, isto é, para a realização ou actualização das suas possibilidades próprias. (Cf. Martins,1994:185).

[5] Cf. Aristóteles, 2004: 1176b-1178b.

[6] Só o trabalho [ergon] deve-se à acção estimulante de Eris, o labor [ponos] constitui um mal, uma punição imposta por Zeus. (Cf. Hesíodo, 1990, vv. 20-26).

[7] Cf. Hesíodo, 1990: vv. 213-218.

[8] Hesíodo, 1990: v. 311.

[9] Cf. Hesíodo, 1990: vv. 109-201.

[10] Cf. Hesíodo, 1990: vv. 90-105.

[11] A língua grega distingue entre ponein e ergazesthai; o latim entre laborare e facere ou fabricare; o francês entre labourer (mais tarde travailler, do latim tripalium) e ouvrer; o alemão entre arbeiten e werken. Os primeiros de cada par são equivalentes de laborar, o verbo com o mesmo radical que labor, conotado com dor e penas, e que, por isso, refere os trabalhos mais pesados habitualmente executados por servos. [Cf. Arendt, 2001:159 (nota de rodapé)].

[12] Cf. Arendt, 2001: 9-21,107-117.

[13] Cf. Aristóteles, 1998: 1337b5.


3. Trabalho e modernidade


Na modernidade, labor e trabalho tendem também a reunir-se num único conceito mas pelas razões opostas às do espírito grego. A libertação dos grilhões da necessidade não é algo que preocupe o modo de ser moderno, pois será mais a vida orientada pelos critérios da utilidade, produtividade e consumo que aquele elegerá. Do conceito originário do labor, é sobretudo extraída a capacidade de trabalho árduo, mas desvalorizada a sua componente ecológica e de proximidade à terra, e o produto do trabalho artesanal do homo faber será absorvido pela indústria. No que diz respeito à contraposição entre o universo do labor/trabalho e o da vida teorética, a modernidade dará primazia ao primeiro. Há de facto, como Arendt refere, uma transferência do lugar antes ocupado pelo “animal rationale” para o “animal laborans[14] mas esta cedência de estatuto não corresponde a uma paixão desinteressada pelo labor power. À excepção de Marx, que estava genuinamente preocupado com o labor per se, a intenção da maioria dos modernos era a de incrementar nas sociedades a livre e ilimitada acumulação de riqueza. No alcance deste propósito, a capacidade produtiva do trabalho laboral é crucial, insubstituível e, por isso, a ideia de o abolir torna-se agora definitivamente utópica, indesejada.

Mas a ambição moderna de crescimento sem termo não só coloca o labor no topo da hierarquia das actividades humanas como as convidará todas a integrar o seu processo, com o propósito de aumentar exponencialmente a produção e o consumo. Se originalmente o trabalho do homo faber se focava na produção de objectos de uso que se distinguiam pela sua durabilidade, a actividade do animal laborans destinava-se à produção de bens perecíveis relativa aos dois estágios do “eterno ciclo da vida biológica”, o consumo e a produtividade [15] . Esta polaridade do labor remetida a um processo interminável da actividade seria aquela que melhor se adaptaria à ambição dos modernos de crescer sem limites, empenhando-se assim o jovem capitalismo, através da industrialização e produção em massa, na redução de objectos de uso (duráveis) à categoria de bens de consumo (perecíveis). Ora ao aproximar-se tanto quanto possível a efemeridade de um vestido da de um produto agrícola, o consumo e a produção de tudo incrementam-se necessária e interminavelmente, como se o artificialismo humano pertencesse de facto ao eterno ciclo da vida biológica. Esta criatividade patente na orgânica dos processos de produção torna-os exaustivos, mas sem ele não seria possível atender à ambição de riqueza. Por isso, o trabalho é, na modernidade, “glorificado”, segundo a expressão de Arendt [16], e o seu alívio considerado “irracional” diante da “necessidade” de crescimento infinito. Neste desígnio progressista que pretende envolver todos os cidadãos, intelectuais e artistas são respeitados mas remetidos para o estatuto de convivas ociosos e parasitários, como se toda a actividade que não enriquecesse o mundo fosse indigna.

[14] Cf. Arendt, 2001: 111.

[15] Cf. Arendt, 2001:124.

[16] Cf. Arendt, 2001:111.


4.  Produção, consumo e tecnologia

Os critérios pelos quais se regulam as sociedades contemporâneas são ainda os que se atêm à produtividade e consumo, utilidade e crescimento ilimitado. Todavia, o aperfeiçoamento sem precedentes da ciência e da tecnologia desafia alguns destes critérios, nomeadamente, o da utilidade dos seres humanos no processo produtivo. Mas podem as sociedades tecnologicamente avançadas prescindir do labor humano e simultaneamente manter intactos os objectivos que herdaram da modernidade?  

As sociedades hodiernas são já sociedades de abundância e a robotização que integra a componente da inteligência artificial, conectividade e mobilidade, pelas  competências que exibe, não constituirá uma ameaça para o processo do labor. Pelo contrário, os robôs não comem nem dormem, não reclamam direitos e, por isso, ao substituírem-se à mão-de-obra humana, responderão de forma mais eficaz à exigência de crescimento e alta produtividade, potenciando a abundância já existente.

Mas esta perspectiva de crescimento exponencial da riqueza não parece apaziguar os receios despoletados pela evolução da tecnologia, pela razão óbvia de que a robotização destrói empregos, retira o trabalho a quem dele depende para subsistir. No entanto, sob pena de a polaridade produtividade/consumo já não se sustentar, não é crível que se retire às pessoas os meios para adquirir as coisas que elas já não produzem, mas cujo consumo lhes é ainda destinado. Perante este problema, num volte-face que não deixa de ser irónico, argumenta-se que o trabalho imposto pela necessidade não desaparecerá, mas antes terá outra natureza, agora mais voltada para as áreas do conhecimento [theoria]. Sugerem-se simultaneamente soluções como a criação de um Rendimento Básico Incondicional (RBI) e a hipótese de os robôs contribuírem para o erário público, de forma a assegurar pelo menos a subsistência básica das populações. Estes argumentos suscitam, no entanto, algumas interrogações. A primeira dirige-se ao destino e propósito da ciência e da tecnologia, caso o processo do labor se aproprie destas, à semelhança do que fez na era industrial com a actividade do homo faber. Em contrapartida, nas propostas acima referidas, não é claro se a equidade distributiva da riqueza produzida e a da gestão dos recursos no planeta constituirão uma realidade passível de acompanhar o horizonte e o percurso revolucionário da tecnologia.

Precisamente, na modernidade, o caminho que a mecânica industrial trilhou nunca teve como horizonte o ambiente e a ecologia. A natureza estendia-se diante dos  olhos dos modernos como um vasto mar de ricos e ilimitados recursos, inspirando ambições de riqueza análoga nas sociedades que pretendiam edificar. Hoje, os altos níveis de degradação e desgaste do ecossistema contrariam essa visão, mostrando que é insustentável crescer infinitamente num planeta com recursos finitos. Ora, ao perpetuar-se as aspirações da era industrial do século XIX e sendo previsível que a robotização aumente exponencialmente a produção (e o consumo) de tudo, esses recursos finitos dos quais depende realmente a subsistência humana serão muito provavelmente aniquilados. Perante esta realidade, se a cultura civilizacional não priorizar modelos que visem mais a gestão de recursos em vez da predação infinita dos mesmos, se ela não humanizar as instituições que a fundaram, a revolução tecnológica em curso tornar-se-á um pesadelo e precipitará os cenários apocalípticos que muitos preconizam.


5. A tecnologia no contexto da abolição do trabalho


Mas abrem-se também novas janelas de esperança perante a possibilidade de a tecnologia atender ao desejo secular, embora adormecido desde a modernidade, de libertar os seres humanos do trabalho imposto pela necessidade. Assim, como recaía sobre os escravos da antiguidade o ónus da subsistência da polis, os robôs também poderiam libertar os seres humanos para uma realidade onde estes apenas se ocupassem de actividades que os realizasse. Mas, segundo Arendt,


“A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que não conhece essas actividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade [...] O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única actividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior” [17].     


O desaparecimento do trabalho numa sociedade de trabalhadores laborais significaria certamente o desmoronamento de um projecto de mundo. Mas de que desmoronamento se trata? Este constituirá certamente a derrocada de um mundo que, para se sustentar, recuperou absolutamente o universo mais sofrido do animal laborans, condicionou a maioria a uma “vida de trabalho” relativamente à qual a realização pessoal e felicidade são permanentemente desvalorizadas. Certa é também a análise de que as sociedades se transformaram em sociedades de operários que desconhecem tudo o que não se prende com a subsistência ou que relegam para segundo plano actividades para as quais já não se tem tempo nem motivação, porque deixaram de ser úteis. Certamente é também aí que falha a existência. Mas, discordando de Arendt, pior do que abandonar este estágio da cultura civilizacional humana será, certamente, perpetuá-lo.

O pessimismo de Arendt desenvolve-se em torno da sua crítica ao célebre trecho do Livro Terceiro de O Capital de Karl Marx, onde este afirma que “o reino da liberdade” [18] só começa quando de facto o trabalho deixa de ser determinado pela necessidade e por finalidades que lhe são impostas pelo exterior, embora o “reino da liberdade” somente possa florescer sobre o “reino da necessidade”, acrescenta o filósofo. Estas afirmações são habitualmente interpretadas ora como um recuo nas teses anteriormente desenvolvidas por Marx sobre a abolição do trabalho [19] ora como um elemento contraditório na globalidade do seu pensamento [20]. No entanto, para outros estudiosos da filosofia marxista, a afirmação aparentemente contraditória de que a liberdade tem por base a necessidade não significa abandonar a ideia de abolir o trabalho, mas antes sustentar que as actividades na sociedade pós-capitalista já não serão denominadas trabalho [21], isto é, essas ocupações já não se referirão à labuta sofrida, ao trabalho alienado, pesado e repetitivo. Como André Barata também defende, “[...] está aqui em causa uma reinterpretação do trabalho como processo que se passa entre homem e natureza, já não como natureza que se humaniza, mas antes, humanidade que se humaniza”[22].

Segundo Marx, as condições para superar o trabalho-valor, também referido como “actividade não livre” [23], trabalho forçado”, “imposto” [24] são as relacionadas com o desenvolvimento avançado da maquinaria e da ciência tecnológica, que substituiriam em algum momento o ser humano no processo de produção, reduzindo-lhe o tempo do seu labor e possibilitando, como se lê nos Grundrisse, a formação artística e científica dos indivíduos graças aos meios criados para benefício de todos [25]. Todavia, para Arendt, se fosse possível realizar a “utopia” da abolição do trabalho, não seria propriamente para essas “actividades superiores” que os trabalhadores das actuais sociedades se transportariam.


“O modelo que inspirava esta esperança de Marx era, sem dúvida, a Atenas de Péricles que no futuro, graças ao vasto aumento da produtividade do trabalho humano, prescindiria de escravos para se sustentar e se tornaria realidade para todos. Cem anos depois de Marx, sabemos quão falacioso é este raciocínio: as horas vagas do animal laborans nunca são gastas noutra coisa senão em consumir; e, quanto maior é o tempo que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites. O facto de estes apetites se tornarem mais refinados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida, mas pelo contrário visa principalmente  as superfluidades da vida, não altera o carácter desta sociedade; implica o grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objecto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo” [26] .


A revolução tecnológica em curso é passível de nos colocar no limiar de algo absolutamente novo, mas, se o palco da sua actuação for o mesmo dos últimos modelos civilizacionais, a análise de Arendt merece atenção. Pelo facto de não ter sido na liberdade, mas mais na necessidade, que a acção humana se tem concentrado, e por razões que muitas vezes ultrapassam a mera necessidade, o que remanesceu do amplo significado de liberdade exprime pouco mais do que a livre-circulação de pessoas (e bens), que, para todos os efeitos, quando circulam consomem e quando não circulam trabalham para que possam vir a consumir. Nesta espiral vertiginosa, já quase nada resta do horizonte humano a não ser o objectivo de “prover o seu próprio sustento”, que se tornou insaciável, e o de trabalhar, que garante o primeiro, tornando-se ambos, consumo e labor, as únicas actividades que a actual sociedade de operários conhece e lhe restam. Assim, na eventualidade de o labor se retirar da vida das sociedades, esse “vazio” seria colmatado pelo consumo, um consumo devorador do mundo, segundo Arendt.

[17] Arendt, 2001:16.

[18] “O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; portanto, pela própria natureza da questão, isso transcende a esfera da produção material propriamente dita [...] Mas este sempre continua a ser um reino da necessidade. Além dele é que começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a [sua] condição fundamental”. (Marx, 1986 : 273).

[19] “Os proletários, se pretendem afirmar-se como pessoas, devem abolir a sua própria condição de existência anterior [...] isto é, devem abolir o trabalho”. (Marx; Engels, 1974: 82).

[20] Arendt, 2001:128-129.

[21] “Apesar do aparente recuo teórico de Marx, creio que é possível harmonizar esta posição com a ideia radical de abolir o trabalho presente nas suas obras da juventude. Se o trabalho concreto for encarado como uma categoria historicamente específica, indissociável do trabalho abstrato, então a abolição deste – inquestionável em Marx – implicará a abolição daquele. Por outras palavras, o processo de (re)produção material da humanidade numa sociedade pós-capitalista, ou seja, as atividades da esfera da necessidade do Livro Terceiro de O Capital nunca poderão ser denominadas trabalho”. (Machado, 2017:23).

[22] Barata, 2015:32.

[23] Marx, 1993:168.

[24] Marx, 1993:162.

[25] Cf. Marx, 2011:28.

[26] Arendt, 2001:157.

6. Desafios e ambiguidades da cultura contemporânea


Mas não é apenas Arendt que coloca objecções à capacidade de a ciência e a tecnologia resolverem per se os problemas de fundo do nosso modo de habitar o mundo, a actualidade já nos diz alguma coisa sobre essa impossibilidade. Como Eduardo Lourenço sublinha,


“O que há de novo no mundo contemporâneo não é o facto nem mesmo o grau de inumanidade que a persistência da fome, da doença, da total exclusão de milhões de homens de um mínimo de dignidade ou até da hipótese de sobrevivência revela, mas a constatação de que esse fenómeno coexiste com o espectáculo de uma civilização aparentemente dotada de todos os meios, de todos os poderes, para a abolir”[27] .

Não é de facto necessário esperar por melhor tecnologia para resolver situações de inumanidade tão díspares como a da fome de quem não tem trabalho e a de quem o tem, mas mal existe para subsistir. A justificativa da escassez e a de falta de meios para combater as situações mais degradantes na esfera da subsistência, já pouca ou nenhuma relevância têm num mundo onde o desperdício se globalizou. Nas últimas décadas, tanto a carência como a necessidade do trabalho exaustivo têm sido artificialmente geridas, isto é, o modo de ser laborans cuja versão moderna é duplamente devastadora da existência preserva-se embora existam os meios e a tecnologia e outros “poderes” para abandonar esse modo.

Esta é também a constatação de Herbert Marcuse que, na sua obra Eros e Civilização, de 1955, conclui que os processos sublimatórios da energia humana em trabalho penoso e desagradável, mais do que necessários, são formas de “dominação organizada” [28], um modo de as sociedades contemporâneas e industrialmente avançadas exercerem sobre os seus membros um irracional e elevado grau de repressão. Se, para  Sigmund Freud, “o preço do progresso civilizacional é pago com a perda da felicidade” [29], para Marcuse, o preço actual desse “progresso” tornou-se insustentável para a existência humana e para o planeta [30]. Uma década depois, na sua fase mais pessimista, a crítica de Marcuse dirige-se sobretudo aos “membros-reprimidos” das sociedades acima referidas, pelo facto de estes terem perdido a oportunidade de usar a riqueza social em benefício da sua liberdade e por terem permitido que o fundamento lógico (e obsoleto) da dominação se reforçasse através de novas formas de controlo ainda mais eficientes, nomeadamente o consumo e a oferta de actividades ociosas que não exigem empenho mental, mas cuja eficácia é precisamente a de reprimir a necessidade de liberdade. Estas práticas de manipulação, que carecem de resistência e com que Marcuse se indigna, corroboram de algum modo a tese de Arendt de que os trabalhadores das actuais sociedades dificilmente conseguirão libertar-se da sua versão contemporânea de animal laborans, pese mais a sua utilidade na produtividade ou no consumo.  

Mas nem a existência se resume à luta pela subsistência nem as razões pelas quais o ser humano se retém nos horizontes mais estreitos da sua liberdade são inultrapassáveis. É incontestável que a necessidade condiciona a liberdade, mas é também verdadeiro que a humanidade pode mais do que essa condição lhe permite. E entre essas possibilidades, estão já as condições que ela mesma criou para eliminar ou, pelo menos, aliviar os constrangimentos que a necessidade lhe impõe.

O aperfeiçoamento da ciência e da tecnologia pode, de facto, assumir um papel determinante na solução de problemas como os da gestão e melhor distribuição dos recursos, contribuir para a redução do consumo de combustíveis fósseis e de outras práticas poluentes, substituir-se ao trabalho que não realiza, e apaziguar o quotidiano cada vez mais angustiado e frustrado consigo próprio. Permitirmo-nos existir no planeta sem grandes sobressaltos em termos de subsistência não significa que se fique desocupado ou se ocupe o tempo apenas com ociosidades entorpecedoras. Salvo certas condições e condicionamentos (artificiais ou patológicos), as estruturas da sensibilidade, percepção e cognição preservam o registo de abertura e alcance das primeiras fases do desenvolvimento do ser humano e nas quais, a troco de nada, não faltava de que se ocupar, aprender, experienciar e criar. Não é a fome nem a pobreza que são estímulos. Pode mais a leveza da liberdade.

Mas muito frequentemente se desconfia dessa liberdade de poder-ser. O horizonte das nossas representações está povoado por figuras mecânicas e deterministas como a de “homem-animal” e por referências como a de um Eu interior isolado, mas colocado perante um mundo exterior que se prontifica de imediato a gerir, reprimir, sublimar e aliviar na medida exacta os “instintos selvagens” e ameaçadores que assomam imprevisivelmente no primeiro. Esta autoridade exterior que é por nós eleita, mas na verdade em nenhum de nós confia, é constituída o nosso mais crítico e atento juiz, um superego culturalmente sofisticado que nos entretém e entretece em sentimentos de culpa e imobiliza, adia a decisão e a transformação, necessárias, quando um projecto de mundo aqui e ali se congela, o que pode dizer-se já ter acontecido com o do capitalismo moderno/contemporâneo.

Pode o regime democrático subsistir sem o capitalismo? Pode. O espanto consiste mais no facto de o primeiro ter conseguido sobreviver ao segundo, pois este ao orientar-se pelos critérios de utilidade e crescimento ilimitado, ele traz para a linha da frente a esfera da necessidade, mas sem a resolver, potenciado as superfluidades da vida que ensombram a esfera da liberdade, o domínio da auto-realização e o da humanização da necessidade defendidos pelos princípios da democracia.

Sobre o que fazer da existência quando a luta pela subsistência já não ocupar maioritariamente os nossos dias, nenhuma resposta será dada pela ciência, pois essa interrogação dirige-se mais à capacidade de assumirmos esse acontecimento transformador ao qual a ciência apela. Neste sentido, se a cultura contemporânea tardar em libertar-se da rigidez mórbida de critérios passados, o advento da ciência e da tecnologia será apenas mais um entre outros mecanismos de dominação e distracção, e o amplo significado da sua componente revolucionária escapará à cultura civilizacional assim como lhe tem escapado, nas últimas décadas, o sentido da existência.

[27] Lourenço,1999: 55.

[28] Marcuse, 1963: 42-44. Segundo Marcuse, « La domination est différente de l’exercice rationnel de l’autorité ». (Marcuse, 1963: 43).  

[29] Freud, 2008: 95.

[30] Sustentando-se em algumas das principais teses da metapsicologia de Freud, Herbert Marcuse questiona em Eros e Civilização, “[...] se os benefícios da civilização compensam os sofrimentos infligidos ao indivíduo [...]” (Marcuse, 1963: 15). Para Marcuse, o Princípio da Realidade específico da contemporaneidade é o “Princípio de desempenho” segundo o qual as actuais sociedades exercem um elevado grau de repressão sobre os seus membros. (Cf. Marcuse, 1963: 49-51).

Referências

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ARISTÓTELES (2004). Ética a Nicómaco. Trad. e notas António C. Caeiro. Lisboa: Quetzal Editores.

ARISTÓTELES (1998). Política. Trad. António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Introdução e revisão científica Mendo Castro Henriques. Lisboa: Vega Editora.

BARATA, André (2015). “O trabalho, o hábito e a sua abolição”. Intervalo nº 7:18-33.

FREUD, Sigmund (2008). O Mal-Estar na Civilização [Das Unbehagen in der Kultur,1930]. Trad. Isabel Castro Silva. Lisboa: Relógio D’Água Editores.

HESÍODO (1990). “Trabalhos e Dias”. In Maria Helena Rocha Pereira. Helade. Antologia da Cultura Grega: 83-88. Coimbra: Instituto de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra.

LOURENÇO, Eduardo (1999). O Esplendor do Caos, Lisboa: Gradiva.

MACHADO, Nuno Miguel Cardoso (2017). “A aporia do conceito de trabalho em Marx: uma análise cronológica”. Acedido em 11-11-2017, em: http://lisboa.academia.edu/NunoMiguelMachado.

MARCUSE, Herbert (1963). Eros et Civilisation. Contribution a Freud [Eros and Civilization. A philosophical inquiry into Freud,1955].Trad. J.-G. Nény et B. Fraenkel. Paris: Les Éditions de Minuit.

MARTINS, António Manuel (1994). “A doutrina da Eudaimonia em Aristóteles”. Humanitas, 46: 177-197.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich (1974). A Ideologia Alemã – Crítica da filosofia alemã mais recente na pessoa dos seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão na dos seus diferentes profetas [Die Deutsche Ideologie,1845-46]. Lisboa: Editorial Presença.

MARX, Karl (1986). O Capital: Crítica da economia política. Livro terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista. [Das Kapital: Kritik der politschen Ökonomie (1967-1885-1894)].  Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Koth. São Paulo: Editora Nova Cultural.

MARX, Karl (1993). Manuscritos Económico-Filosóficos [Ökonomisch-philosophischen Manuskripte, 1844]. Trad.  Artur Mourão. Lisboa: Edições 70.

MARX, Karl (2011). Grundrisse. Manuscritos económicos de 1857-58. Esboços da crítica da economia política [Grundrisse der Kritik der Politschen Ökonomie,1857-58]. Trad. Mario Duayer e Nelio Scheneider. São Paulo: Boitempo Editorial.


Anexo [sugestão]

Sugestão Episódio 10, Podcast Mural Sonoro com Xana (Rádio Macau, intérprete, autora) a.k.a Alexandra M. Moreira do Carmo (investigadora)

Fotografia de capa (Soraia Simões): Pós-Pop, Fora do lugar-comum, Gulbenkian.

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Músico Profissional que futuro?

Músico Profissional que futuro?

O papel do músico, independentemente das práticas musicais e performativas que produz na sociedade actual, tem-se cruzado com dois géneros de intenções discursivas: as indispensáveis e as acessórias.

Indispensáveis; as clarificadoras, explicativas, com metodologias que trabalham na aproximação entre a sua actividade e os círculos de interesse, que o poderão trazer mais perto de um estádio de relação unicamente com aquilo que trabalha/faz (música) diminuindo tensão e fosso entre a importância do que faz e o público; acessórias as que sob o artifício da linguagem negligenciam a sua profunda compreensão e favorecem os compartimentos estanque.

A música, nos processos de apropriação, legitimação de discursos em seu redor e transmissão foi requerendo, cada vez mais, um empreendimento reflexivo em relação aos compromissos socio-musicais, etnomusicológicos, técnicos e antropológicos. Empreendimento que, sobretudo a partir dos anos de 1980, deixou claramente de interessar à maioria dos veículos de mediatização. O fosso entre a realidade no campo musical e musicológico – com os seus intervenientes – e a recepção – com seus consumidores, públicos alvo – dada a escassez empreendedora presente nos agentes de difusão, procurados por ‘esse’ público, agigantou-se.

Foram perdendo os músicos profissionais, tem perdido algum público, aumentando o seu desconhecimento, ganharam as retóricas de costumes e cultura de uma ‘estética musical’ que favoreceram o ressurgirmento dos opinares de bancada agarrados ao descortinar único e pouco fundamentado do produto final (o fonograma), saltaram para as salas de espectáculos os ‘fenómenos sónicos urbanos’ e os portugueses foram-se habituando, condizendo com a ilusão informativa musical difundida, a ser os principais produtores da ausência do músico como profissional nas salas de espectáculos, convencidos que estão dos ‘poderes’ e ‘saberes’ dos meios com que julgam andar informados sobre os seus ‘artistas ou entertainers de eleição’.

A desresponsabilização e falta de compromisso com o profissional músico, submetido a um esquema labiríntico quádruplo – disseminação fonográfica, agências/produtores, media, público, nem sempre o beneficiou ou beneficia.

A destituição do músico enquanto profissional deveu-se, em grande parte, a um significativo aumento de conceitos sem ligação ao âmbito
musical, que acomodaram as suas retóricas em noções abstractas implícitas como: o entertainer, o que serve para animar, o que pode ser enaltecido ou destituído das suas funções por alguém que sabe menos que ele em graus de avaliação que se prendem com um ‘gosto’ ou uma ‘cena musical’. O aumento de uma crítica desinformada, desinteressada, paralisada num escrutínio de artefactos sem ligação à génese do som e música produzidos, ao músico, à sua intervenção, aos recursos tecnológicos de produção, aos materiais, circunstâncias e espaços em que opera alastrou aos novos meios de mediação informativa como a internet.

Se por um lado, há quem o faça com critérios que dizem respeito à música e ao seu criador, executante, intérprete, por outro lado há quem o faça sem esse método, ora pela escassa mediação de saberes ora pela irreflexão ou falta de prudência no que respeita ao tratamento que lhes foi sendo atribuído: ao músico e à música que faz.

Mas, é também ao músico que cabe a defesa dos seus interesses, zelando pelo prestígio da ‘classe’, pelo melhoramento das instituições musicais e, em geral, pelo que interessa ao colectivo, rejeitando contratos propostos por pessoas ou instituições não credenciadas, inteirando-se de tudo quanto for necessário no que se trata de serviços prestados dentro ou fora do seu país, na aplicação da sua ‘arte/prática’ em prol da educação, no incentivo e alerta para a recriação e cultura do povo, da integração no mesmo espaço comunitário de partilha publicando teses musicais e apreciações críticas, etc. Porém, provocar ou entreter debate que não seja de interesse da colectividade ou do beneficiamento da sua actividade no campo musical em que actuar, não usar os órgãos de difusão, nos quais não revê a evolução da classe, como promoção, não deverá ter qualquer
receio de desagradar a outrem, ou incorrer em impopularidade no cumprimento e dignificação da sua profissão. Em suma, a importância da sua função não poderá permitir abusos sobre a condição económica de
quem contrata, nem o proveito que dele possam usufruir socialmente em quadrantes que lhe são alheios, tem de ser reconhecido no âmbito das suas funções em valor monetário sempre, em prestações de serviços não pagas em prol de causas sociais ou outras de seu interesse, se o entender.

O estudo e a compreensão de processos, situações e estratégias utilizados para a transmissão de saberes musicais em Portugal urge, se um etnomusicólogo, ao trabalhar com uma determinada tipologia no terreno (género/estilo/cultura) de música, vê-se diante da necessidade de compreender de que forma os saberes musicais relacionados ao campo abordado são valorizados, seleccionados e transmitidos culturalmente,
porque não aproximar o músico de um campo de acção onde ele é abordado como profissional e não um animador de ocasião? Porque não fruir de espectáculos, fonogramas ou, tendo essa vontade e possibilidade, do contacto/experiência com instrumentos musicais em aulas, de forma a que a valorização da actividade do músico, como aqui é sugerida seja alcançada?

O acesso facilitado à fruição, opinião e aproveitamento desta profissão poder-se-á tornar cada vez mais problemático para o músico e tal facto permanece, infelizmente, conectado com esse facilitismo que o etnomusicólogo Bruno Nettl resumiu de modo esclarecedor na sua célebre frase: “o modo pelo qual uma sociedade ensina sua musica é um factor de grande importância para o entendimento daquela música*” (NETTL,1992: 3).

*NETTL, Bruno. Ethnomusicology and the teaching of world music. In: LEES, Heath. Music
education: sharing musics of the world. Seul: ISME, 1992.

Notas:Texto originalmente publicado em Revista CAIS 

Vídeo correspondente a uma Sessão Mural Sonoro no Museu da Música no ano de 2013

Música em Sociedade

Música em Sociedade

(Sebastião Antunes em recolha para Arquivo Mural Sonoro, músico e compositor com ‘peitoque’ – instrumento percussivo usado comumente na Galiza)

(Kabeção Rodrigues em recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro, instrumento: ‘handpan’, embora também haja quem designe de ‘hang drum’), Foto: Hugo Valverde)

 

Houve uma separação clara durante tempos entre a história da ‘música europeia’ da história em geral.

Na historiografia musical, um dos seus percussores no século XIX (Raphael Kiesewetter) explicava que grande parte da música e outras formas de arte feitas na Europa criavam os seus períodos históricos e que estes nada tinham de ver com os períodos da história da Humanidade.

No início do século XX outro pensador alemão neste âmbito (Eduard Hanslick) debruçava-se sobre a música definindo-a primeiramente como a ”arte dos sons”, que lhe atribuía uma nova dimensão (à música emergente na cultura europeia desde o ano de 1800). Para ele a ideia de uma ”música absoluta” passava no seu conteúdo por uma noção basilar de ”formas sonoras em movimento”.

Houve até quem no início do século XX encarasse a “desumanização da arte dos sons” como uma conquista da musicologia (Schafke aludindo a Halm ou, entre outros, Kurth).

Esta ideia de que a música é dissociável da componente social e humana, esta reificação da música, em que os factos sociais são de um domínio extra-musical (como reflecte já nos anos de 1950 Mesmann) levantaria questões várias a etnólogos ou antropólogos da música (etnomusicólogos) diversos para quem a música não se separa da sociedade nem da humanidade. ”A música é um facto social” diz Blacking. Os indivíduos, com as suas experiências, dão sentido às práticas que exercem. As músicas vivem-se em processos e não apenas produtos (que são desses processos, desencadeando outros processos).

Na realidade, eu acho que ainda hoje esta oposição faz questão em se mostrar e sentir.

O afastamento do etnomusicólogo ou antropólogo no que concerne às manifestações culturais ou às tradições da oralidade das músicas fora do continente europeu (objecto maior da sua pesquisa) permite-lhe uma observação e raciocínios aparentemente vedados, há muitas décadas, a grande parte dos musicólogos dentro da cultura musical que pretendem estudar.

Parece-me que o afastamento em relação ao objecto estudado (música) do etnógrafo/antropólogo ou etnomusicólogo consegue mais facilmente entrar em ruptura com o pré-juízo e lugar de senso-comum afastando-se, por conseguinte, do perigo que o preconceito enraizado na ‘música europeia’ com o qual a musicologia ainda hoje grosso modo tem muita dificuldade em romper (o do enaltecimento da componente estética musical em oposição com a resistência na integração da componente sociológica ou civilizacional na música. Ou mesmo essa infinita e estancada constatação de que a música é som e não um comportamento regulado por outras variáveis também) e que Bachelard reflecte na seguinte frase: ”O espírito quando se apresenta à ciência nunca é jovem. É sempre muito velho, porque tem a idade dos seus preconceitos”.

O que é o folclore e cultura popular, video tv brasileira

 

Romi Anauel em discurso directo

Romi Anauel em discurso directo

Romi Anauel, nasceu em Angola em 1972 e veio para Portugal aos dois anos de idade. Foi a voz feminina escolhida do grupo Terrakota. Agora vive em Barcelona e tem um disco novo (Phoenix) a sair no final do mês de Junho do ano presente.

(Soraia Simões) E pertences a uma tribo, não é assim Romi? Há, memórias que tendem a perdurar, lembras como foi quando vieste para Portugal?

 

(Romi Anauel) Nasci em Angola e pertenco a uma tribo que são os massai, mas que em Angola tem outro nome. Em Angola chamam-se Kuanhamas e é uma tribo que vem do Nilo.

Vim para Portugal, quando tinha dois anos, por causa da guerra. Os meus pais quiseram fugir para Portugal.

Desde muito nova, 12/13 anos, que gosto de  ouvir muita música. Os meus pais acabaram por achar que me deviam meter numa escola de música.

Recordas o que ouvias em miúda?

Sim, recordo. Primeiro a que me era imposto pelos media. Pela rádio e televisão sobretudo.

 Em casa ouvíamos muita música angolana. A minha mãe era uma interessada e apaixonada por música feita em Portugal, como o fado, ou as músicas mais tradicionais.

Nessa altura, não era o que eu mais gostava. Mas, fui crescendo e a música e abertura começam a entrar no meu universo.

Tinha sonhos de olhos abertos. Era e continuo a ser uma grande sonhadora.

Aos doze anos, via-me já num palco, fazendo grandes concertos, com grandes encenações.

E os teus pais tinham mesmo de te meter numa escola de música…

Sim (risos)

Ouvias alguns músicos do teu país, porque os teus pais ouviam em casa. E começaste, nessa abertura maior, à medida que te foste apercebendo dessa ‘riqueza’, a escutar para ti mesma, sem imposição, alguns deles? Houve, ainda hoje há, nomes de forte popularidade entre nós. N’gola ritmos, Ruy Mingas, Eduardo Nascimento, Bonga…

Sem dúvida. Teta Lando, Bonga, Duo Ouro Negro, Quim zé, Ruy Mingas. Sim sim.

E desde cedo me chamaram à atenção vozes como as de Caetano veloso, no Brasil, da Maria João, em Portugal,  coisas que as crianças não entendem muito bem. Mas, que não sabendo explicar porque gostava, ouvia e gostava bastante. Num plano internacional, adorava e adoro o Prince.

Mas, sabes que, ainda hoje penso que quem me envolveu com  isto, com o que faço hoje em dia, foram simplesmente as minhas projecções mentais em criança (com uns 12, 13 anos). Posso provar que isso funciona.

As tuas projecções, são os teus sonhos em criança?

Sim. De certeza! Nem imaginas como sonhava. Via-me a cantar e a dançar.

Tive algumas aulas de noção musical,  mas que não acrescentaram ao nível do que já era nato em mim.

A música surgiu muito naturalmente. Fiz o 12º e fui para Lisboa com 18 anos.

Comecei, em Lisboa,  a trabalhar em Hotelaria e com o tempo fui conhecendo pessoas.

Fiz dança, formei-me em teatro, onde também criei, com um conjunto de outras pessoas, uma companhia. Era a companhia multi-étnica do Tiago Justino.

E depois tiveste o teu primeiro grupo musical.

Logo a seguir, sim. Com umas amigas fizemos a primeira ‘bandinha’ à capela. Eramos quatro.

E em paralelo ao que considerava, na altura, ser um ‘brincar de bandinha com amigas’, formei-me em Biodança e ainda formei uma banda de covers. Mas, tocámos muito pouco aqui, pois não gostava muito de repetir músicas, não me sentia confortável a fazer versões de canções que não eram originais.

Entretanto, quis formar um grupo só com vozes femininas, todas de origem africana. Eramos sete, mas senti que não houve muita vontade de trabalhar.

E começa a tua aventura com o grupo Terrakota.

Exacto. Um grande amigo, que considero um ‘artista completo’, formou uma banda só para me fazer feliz, pois reparou que eu tinha muita vontade de cantar e ter uma banda.

E depois o Francesco Valente, que já havia pertencido a quase todos os meus pequenos projectos, acabou também por me chamar para  iniciar em Terrakota. O grupo estava mesmo no seu início e  procuravam uma voz.

E levas, levam na verdade todos, performances incomuns para os vossos espectáculos ao vivo…

Sim. O teatro e a dança foram fundamentais, para o meu desenvolvimento como artista e performer. Foram uma grande base. Deram-me uma grande noção do que é estar em palco.

E o que se seguiu?

Com Terrakota estive desde o início. E foi onde me senti livre de criar, na medida em que é um projecto muito aberto a todos os elementos, mas por outro lado, era muito difícil, já que todos tinhamos personalidades muito fortes. Isso sentiu-se nos primeiros álbuns. O exagero das influências que cada um tinha.

E eu era um, dos poucos elementos, que vinha de uma atmosfera que não o hardrock. Um estilo que nunca consegui entender.

O ‘exagero das influências’ era/é evidente em Terrakota, mas se calhar foram ‘pioneiros’ nisso, nessa convivialidade cultural, não? Ou tem que existir uma certa harmonia de grupo e ali deixaste de o sentir? 

Sim, sem dúvida. O exagero também era muito espontâneo e marcou muito esta banda.Mas, nos últimos álbuns, todos fizeram um esforço para aprimorar, conter e ordenar um pouco mais a nossa musicalidade.

Mas, fomos, sem dúvida,  pioneiros nesse assalto à fusão de culturas, que representa no fundo um pouco de cada um de nós, de cada ser na natureza.

Já nada é totalmente puro, como sabemos, mas  uma fusão de conhecimentos, crenças hábitos.

Atenta-se, no teu percurso, esse ‘modo de pensar’, os teus rochedos referenciais também.

Também o considero, sim. As minhas influências, baseiam-se muito no soul, no funk, bem como toda a música de raíz/tradicional. Adoro. A música popular brasileira, a bossa nova, o afro-beattambém.

Sente-se, nestes últimos temas que trabalhaste, um apreço pelo ‘universo do povo de Fela Kuti’. Dos ‘yoruba’ e do ‘highlife’. Nos ritmos específicos  que procuras, sobretudo. É a tua ‘arma de arremesso’, o teu lado de ‘manifesto social’, numa realidade diferente daquela em que assentava a mensagem do povo da Rep da Kalakuta, para a música? 

Sim.Adoro highlife, é um bom sinal que o sintas neste tema que escutámos.

Fela kuti é um grande exemplo. Para mim, a música tem também que ser usada como uma mensagem, que lhe esteja associada. É onde poderei dar meu contributo a esta sociedade.

Sinto que a nossa sociedade, nos está espremendo cada vez mais. Quase não nos podemos expressar como cidadãos de um modo natural. Não vou usar a música para ‘decorar’. Tento que sirva de passagem para um plano mais consciente. Não  que  ache que consiga mudar efectivamente, mas sinto que posso ser um grão dentro do cosmos a incendiar outros grãos que incendiarão outros. É uma forma de protesto. Como ser humano que vive num estado ‘in-natural’ do que se poderia chamar ser humano.

É assaz curioso entender, que preservas a reunião cultural abrangente que já se via e escutava em Terrakota com os outros integrantes de algum modo,  através dos instrumentos que entram agora no teu novo repertório.

Sim. Eu adoro os intrumentos de raíz.  O ’ violino africano’, a ‘kora’, o ‘tama’ (ou ‘talking drum’), o ‘ferro’ e a ‘gaita’ de Cabo Verde, o ‘violino da música balcanica’, a ‘guitarra portuguesa’. Adoro Carlos paredes. Mas, gosto muito de outros, como a ‘guitarra flamenca’, ‘o alaude’,  o ‘Sitar’, o ‘violino ethiope’, que é dos que mais me encanta.

E estás em Barcelona agora. Quiseste sair de Portugal?

A minha vinda para Barcelona, teve que ver com isso mesmo. No início, queria simplesmente sair de Portugal. Meti isto na cabeça. Sentia que precisava experienciar outras coisas, respirar outros ares. E aqui reencontrei- me com o Alberto Perez, que é um músico que tinha conhecido anos antes. Tinhamos comentado, na altura, que poderiamos fazer algo juntos para o meu projecto a solo. Contactei-o, e mesmo no dia a seguir começamos a trabalhar.

Em princípio queria muito criar uma banda mais calma, onde se ouvisse a minha voz com calma e profundidade. Tenho até dois fados meus! Mas, rapidamente, durante uma conversa percebemos que não fazia muito sentido. Já que tinha deixado Terrakota, o que deveria criar era um estilo mais ‘contemporâneo’ mesmo que com as raízes africanas.

Foram surgindo os temas. Baseamo-nos nas influências tradicionais africanas e  demos-lhe um ‘toque mais sofisticado’. O dialecto que ouves nessa música, por exemplo, é o kimbundo e um trecho deyoruba.

Temos outro tema ‘dub’, que me chama a atenção. Canto para soldados. A  banda que me acompanha aqui chama-se ‘Soldiers of Rá’ e o nome do tema também. soldiers of rá dont give yourself to this un-natural man, a letra está baseada no discurso do Charlie Chaplin, no seu famoso filme, O Grande Ditador. É um tema de que gosto muito.Faz-me ‘pele de galinha’.Chamo a esse tema a ponte entre os dois mundos.

E criaste aí já uns conhecimentos que te ajudam no desenvolvimento do teu trabalho…

Sim (risos). No início apresentei a Alberto Perez e Raul Del Moral (que juntamente comigo formamos a  base deste projecto) 4 /5 temas meus, os quais já tinha começado a trabalhar.

O Alberto e o Raul são muito criativos. Complementámo-nos muito bem.

Eles são muito exigentes comigo.Tenho aprendido muitas coisas com eles, coisas que me irão fazer crescer concerteza a nível musical.

A minha prestação neste projecto, tem uma função completamente diferente, com uma nova abordagem na vocalização. Bem diferente do que eu tinha desenvolvido com Terrakota.

As letras são todas minhas. As músicas são nossas. Trabalhámos conjuntamente em cada uma delas.Os dois também cantam, para além de tocarem, são os meus back vocals.

Ah, e o Alberto, que vem do flamenco, canta noutro tema que se chama ‘Ojo Por Ojo’. Digo-te mesmo:Wow, como canta este rapaz!

Há também outro tema de que gosto muito. Chama-se ‘Let the money goes’, no qual há uma passagem dedicada ao ser mulher. Que é aqui vista, além do papel social, que também tem, como a chave de toda a criação. Como uma espécie de ‘deusa co-criadora’, ligada às esferas mais elevadas da criaçao, sempre sunstentada pelo amor.

Tens o álbum já pronto, com dez faixas. Consegues explicá-lo um pouco.

Este disco sairá completo no final de Junho.Está quase pronto.

Entretanto, vão estar disponíveis algumas músicas, para escutar muito em breve. Na web.

É, como dizes, um álbum que tem 10 temas e que viaja por géneros diversos. Do ‘deep funky’ aos sons, que referias, do ‘highlife’, passando pelo ‘dub’.

É muito ‘jazzístico’ também. Não aponto apenas para o ‘afrobeat’, porque não quero ser pretensiosa. É que acho o ‘afrobeat’  bastante especifico e nós, de facto, viajamos por outras atmosferas musicais.

Usamos outros elementos no disco também, como sopros, percussões.

Saxofone, Trombone, Trompete, nos sopros, cajon do flamenco, tímbilas e batás de Cuba, nas percussões, mas também bateria, baixo, guitarra e teclas.

© Romi Anauel em conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no campo

crédito foto: Isa Egea

para citar esta entrevista: Entrevista de Soraia Simões a Romi Ananuel, Plataforma Mural Sonoro em 17 de Maio de 2012.

OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje,  por Caeli Gobbato

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OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje, por Caeli Gobbato

 

*por Caeli Gobbato

OqueStrada: projeto musical que orquestra a estrada no encalço de todos vocês e desenha o seu mapa de fronteiras musicais numa saga de enredo, fuga, amor, mistério e ação.

“Fernando Pessoa veio dizer ao povo português uma coisa fundamental, marcando bem, que o português é plural e é na sua pluralidade que ele se tem que afirmar”

Segundo Bernal, ''de início sabia-se que a civilização grega tinha raízes na cultura egípcia, semita e várias outras meridionais e orientais, mas no decorrer do século XIX ela foi remodelada como uma cultura “ariana”, na qual foram ocultas ou eliminadas de maneira ativa suas raízes semitas e africanas. Como os próprios escritores gregos reconheciam abertamente o passado híbrido de sua cultura, os filólogos europeus contraíram o hábito ideológico de passar por cima dessas passagens embaraçosas, sem as comentar, em prol da pureza ática”

Falar do OqueStrada é falar do Portugal de hoje, de uma leitura inclusiva e reflexiva sobre Lisboa e suas margens, sobre, principalmente, quem vive aqui. Este trabalho privilegia o olhar carinhoso dado pelo grupo às pessoas. Porque entendemos o tamanho do país à medida que olhamos de perto e percebemos quem é que o faz.

Pretendo refletir sobre questionamentos que encontrei presentes neste álbum e na vida do grupo, sobre conceitos como identidade, cultura nacional, omissões e adaptações da história portuguesa, espaço urbano e a sua construção e periferias, cultura popular e cultura de massa/indústria cultural. Escolha esta por perceber aqui um importante eixo que articula a arte com princípios da democracia, da expressão e síntese cultural de um povo. 

Línguas, identidades 

“Com OqueStrada as línguas falam-se à portuguesa e o que se não sabe inventa-se”*

O OqueStrada canta, em português, diversas línguas que estabeleceram forte  presença/relação ao longo do tempo em Portugal. Quando digo “em português”, sublinho a questão, sempre presente mas em crescente progresso, das identidades múltiplas que formam Lisboa. 

Miranda, para além de cantar o fado na noite lisboeta, cantou canções crioulas de Cabo Verde na mesma noite lisboeta, cresceu com a sonoridade brasileira de um português cantado e falado como outra língua. Pablo é francês e cresceu entre portugueses. A língua francesa foi afirmação da boa educação portuguesa em gerações anteriores de um país cuja capital abriga mais portugueses que a cidade do Porto. Já a língua cigana está na infância de um dos primeiros músicos, de viola, que cresceu em Almada, convivendo com este povo que desde sempre cultivou o hábito de caminhar pelo mundo. 

O espanhol está ali pela eterna questão ibérica, relação de fronteira, língua que o falante do português julga saber antes de experimentar, o que a proximidade de estruturas permite. E o inglês é a língua da ascenção, é cada vez mais uma segunda língua obrigatória para a comunicação intercultural, embora tenha particular peso o passado histórico onde Portugal mantém uma relação de subordinação com a Inglaterra. Tais línguas estarem aqui juntas em voz portuguesa carrega algumas questões que pretendo explorar. 

A vontade de que Lisboa possua e mantenha uma imagem padrão ou uma resistência em relação à crescente heterogenização da sua população construiu uma espécie de política de negação que procura disfarçar o fato de que há portugueses que não se enquadram no padrão imaginário da cor “branca” da pele, que falam a língua que também tem o desejo irreal de ser imutável e alimentam a ilusão de que estes poderiam ser, de certa forma, “visíveis” e rapidamente classificáveis. Existe um enorme medo de ser classificado como inferior, jogando para baixo do tapete relações de troca riquíssima, encontros culturais que ajudaram a fazer o que é Portugal. O historiador António Borges Coelho comenta sobre sua saudável curiosidade ainda na época de aluno: “A primeira grande inquietação que tive como aluno de História foi explicar como é que estando os muçulmanos como cultura dominante na península Ibérica durante tantos séculos não tenham ficado quaisquer vestígios na História portuguesa”ˡ. Porquê esconder  autores, poetas e filófosos simplesmente por pertencerem a um passado muçulmano? 

Hoje há também uma forte tendência a classificar a cultura como nacional e estrangeira presente em território nacional, como se houvesse forma possível de encerrar a cultura, imobilizá-la e impedir que contatos frequentes produzam qualquer interferência. Por mais que um número crescente de pessoas de origem em diversos continentes esteja optando viver em Lisboa (principalmente oriundos dos países de língua oficial portuguesa), e falemos agora de uma geração nascida e criada em Portugal, prevalece a insistência em ignorar a diversidade cultural como parte da identidade portuguesa. Estas questões se ligam com a formação de um ideal do que seria a identidade cultural portuguesa que presta homenagem e obedece às lógicas neo-colonialistas e imperialistas que formatam a cultura europeia como superior e intocável perante as outras. Edward Said em «Cultura e Imperialismo» trata da importância da cultura e da produção cultural no processo imperial que se iniciou no século XVI e salienta que este processo não acabou com as independências das antigas colónias, pois “ assim como nenhum de nós está fora ou além da geografia, da mesma forma nenhum de nós está totalmente ausente da luta pela geografia (…) [que] não se restringe a soldados e canhões, abrangendo também ideias, formas, imagens e representações”². E esta herança imaterial não se desvanece de todo e se transforma muito lentamente. Esta forma “imperial” de pensar atravessou mares, fixou raízes durante quase quatro séculos, sendo que, no início de século passado, “a Europa detinha um total aproximado de 85% do mundo, na forma de colónias, protetorados, dependências, domínios e commowealths”². Este número assustador explica um pouco o fato desta ideia ter sido tão expandida e aceite, pois o início da nossa globalização, onde o mundo estava quase que completamente submetido a apenas uma forma de interação, exaltou ideias que privilegiam uns e relegam a subordinação e inferiorização outros que estão sob a etiqueta de “menos avançados” ou, simplesmente, inferiores.

Como muitas destas nações ainda “reinam” na organização económica mundial, a ideia continua muito próxima do que foi. A questão de Portugal ser muito mais frágil em poder político e económico ajuda a estabelecer um caminho de insegurança e a alimentar um dilema que é a procura de uma identidade própria e bem delineada. Mesmo que rejeitar o caráter misto e de constante mudança da cultura fosse possível, acredito que a pior forma de alcançar este objetivo (ou uma ideia próxima dele) é não olhar verdadeiramente para o povo, para o cotidiano das cidades, como se processa a realidade urbana, a interação entre nacionais, imigrantes, emigrantes retornados, turistas. 

Estaremos caminhando para trás se não exercitarmos a capacidade de refletir sobre que tipos de representação estamos produzindo para nós e para quem nos rodeia, formando assim a imagem do nosso país; refletir sobre a relação do caminhante com a cidade, as disposições sociais, como são ofertados os bens culturais públicos, o espaço e os serviços públicos e para quem. 

A grande dificuldade está nesta herança ideológica que prefere a ilusão de forjar um presente que defenda ideias e preconceitos de um passado que sempre trabalhou para mascarar seus “feitos”. Tanto a época colonial como o Estado Novo de Salazar vendiam ilusões para acalmar o povo, manipulando e distorcendo informações. Portugal colonial não se cansava de professar seu altruísmo, o fato de estarem levando a civilização e melhores condições de vida para instalarem enfim o progresso, da mesma forma que o governo ditatorial de Salazar pregava o oásis de paz que era Portugal sob o seu comando.

Portugal ser hoje um país não muito influente no cenário europeu parece ainda mais um fator desestruturante nessa busca identitária, pois persiste em privilegiar países Inglaterra e França e menosprezar os que, vindos outrora de fora, hoje constituem povo português, menosprezando assim o que o forma como país e elogiando o que está para além dos seus limites. 

O que OqueStrada alcança com o seu trabalho polivalente é um olhar despido desta ilusão reacionária, um olhar que passeia pelo que forma Lisboa hoje, e o faz em ritmos e sonoridades múltiplas, olha e dialoga numa espécie de reconhecimento de terreno próprio, às claras, andando por distritos e freguesias, falando e ouvindo quem aqui vive, perguntando pelo país como quem pergunta por cada pessoa que nele vive.

A RUA

“A Piajio está diretamente ligada à criação artística em espaços públicos (artes de rua) e assim gosta de explorar o imaginário e heranças sentimentais de cada cidade, de cada região, de criar dinâmicas em diferentes bairros, de se debruçar sobre espaços arquitetônicos e o seu contexto urbano, para, aliada à vontade de contar histórias de pessoas e dos espaços onde elas habitam, contribuir para difundir as artes do espetáculo no tecido urbano”*

A trajetória do projecto nasce do amor pela rua e da vontade de “requalificar a rua como palco preponderante de uma sociedade contemporânea”. Tanto Pablo quanto Miranda antes de se encontrarem já exercitavam o perceber e sentir o público, estabelecendo uma relação efetiva no circo, teatro, caravanas culturais. O que em si já carrega um grão libertador, visto que as artes de rua e principalmente o circo trabalham o poder do riso, que para Bakhtin, foi o que sempre fez frente ao poder opressor da Igreja e do Estado, usando o riso para desconstruir e repensar, criticar mais abertamente (sempre presente na figura do bobo da corte que está mais próximo do bufão do que do clown). E o riso é também figura indispensável nas festas populares que juntam o bem comer e as bebidas que afrouxam e aliviam o espírito, está próximo da cultura popular enquanto expressão de liberdade das práticas culturais essenciais.

A rua sempre foi o palco da cultura popular, que constrói-se na história das relações entre grupo sociais e por isso é heterogénea e dialética, mas está num lugar subordinado. Este me parece um dos pontos de subversão do Oquestrada, quando mergulham no imaginário popular a fim de emergir com preciosidades para fazer música, oferecem esse caráter protagonista à expressão cultural do povo que os circunda e que está presente na infância de cada um deles, é experiência inscrita ao longo dos anos. Eles partilham a consciência do valor da cultura popular como concepção de mundo e do seu valor estético, juntando diferentes ritmos e falas para de tal combinação nascer uma ideia de coletivo liberta e inclusiva.

Na música Se esta rua fosse minha percebemos este caráter nesta junção de ditos e saberes populares, quadras de João Gomes e LJ Barbosa recitadas pelas ruas, ao lado de poesia anónima e por isso pertencente à multidão, de valor e temperamento eterno. A noção de responsabilidadesocial que permeia a história do grupo aqui acende: afinal, de quem é a cidade? A música inicia com uma suposição, Se esta rua fosse minha, como quem discretamente sugere a possibilidade de reivindicar o direito à cidade. O direito à cidade é o direito de participar na construção do espaço urbano, para que este evolua sendo sensível à necessidade dos que nele habitam. Vimos que quem constrói, intervém e faz a manutenção do espaço urbano, obedece às leis do lucro, embora quem o financie seja a população. David Harvey fala sobre a difusão de um pensamento atual por um mundo melhor, mas salienta que o centro deste discurso está fundamentalmente no direito à propriedade privada e ao lucro, preocupações que privilegiam a boa saúde do sistema capitalista e não a real qualidade de vida.

Esta lógica perpassa as indústrias culturais, que almejam o fenómeno de venda e para tal investem na propaganda e na sobredivulgação, tornando-se opressora e, muitas vezes ligada às correntes ideológicas da elite detentora do poder, jogando muito bem com o consumo. A ideia da propaganda e da sociedade de consumo está diretamente ligada aos ideais neoliberais que, a exemplo norte-americano, está sempre envolta em uma aura falsa de liberdade de escolha. Qual é a escolha de quem nasceu com os mesmos canais de televisão que promovem a mesma noção do feminino ideal, de interação social, de moda e nas rádios ouve músicas que coincidem também com esses mesmo nos temas e arranjos? Pois sentir-se incluído também passa por uma identificação com o que supostamente os outros também se identificam.

FADO

“ Pela minha parte não posso considerar o fado senão como síntese, estilizada por séculos de lenta evolução, de todas as influências musicais que afetaram o povo de Lisboa”³

O fado está presente na música de OqueStrada porque está presente na vida dos portugueses, nasceu pelos portos desse país costeiro, veio chegando em Portugal com os que daqui saíram e para cá voltaram, misturados nas misturas dos navios, visitando terras, ouvindo cantigas, sentindo e transformando, fazendo desses diálogos musicais vadios o cantar de muitos que por aqui viviam, pois, ao forjarem-no, encontraram-se: mulheres e homens que cantam porque só assim sabem viver, foram no seu dia-a-dia de trabalho e boémia colando o fado ao país. A criatividade pulsante do fado estava nas ruas, nunca foi de todo tristeza, pois como diz Mário Anacleto, ligado à palavra moira (destino) está, claro, a dor, o sofrer, mas também está a palavra hubris (força interior para vencer resistências, fogosidade, ímpeto), que me parece mais próxima da saga pela qual passou e passa. Quando o OqueStrada diz que não é fado, apesar de também o ser, quer dizer que não quer o título vazio e efémero de “estar na moda”, pois uma das consequências desta busca aflita pela identidade portuguesa foi eleger uma música que a suportasse, e, como já vimos, com o grande intuito de encontrar forma de representar-se e ser rentável, em tempos que uma das “funções” da cultura local é ser exportada. Por isso, depois da inclusão de Portugal na União Europeia, começou uma corrida ao fado, como se houvesse um refrescar de memória e lembrássemos o que é ser português. E a indústria cultural apostou nisso. Mas quando entra o fator lucro, percebemos logo a fabricação de cantores-produto que não necessariamente estavam ou estiveram ligados ao fado, mas que enquadram-se como figuras típicas. Este esvaziamento de sentido parece acontecer pela insistência em negar a diversidade e estabelecer um padrão. O mesmo se pode colocar em relação às cidades-museus, que, sendo, como o fado, património nacional incontestável, não se percebe muito bem qual é o seu papel no quotidiano da vida urbana e quem ganha mais com isso. Não é linear, o fado conta muito sobre a história cultural do país, mas foi se aprisionando nesta caixa- expositora standart e começou a desgastar-se e perder o rumo, que está no quanto faz sentido emocional e expressa uma necessidade coletiva. Sinto que este norte vem sendo recuperado por todos estes trabalho contemporâneos que bebem do fado e o transformam, relêem, misturam e o tecem de um colorido mais vivo. Parece que quando o OqueStrada relembra que fado não é só tristeza, é vida boémia de convívio e descobertas, tira-o da caixa, dá vida e ajuda os grandes fadistas a serem ouvidos e apreciados com os ouvidos e o coração de hoje. 

A sensação é de termos pulado parte importante, por estarmos superando e retomando origens do fado. O que Miranda aponta com relação ao passado ditatorial do fado, uma das bandeiras de Salazar, é que, como outras ditaduras pelo mundo, um ditador investe em propaganda, em cultura manipulada para divulgar e exaltar o seu trabalho. Pensando assim, o fado foi tão vítima quanto o próprio país, pois, antes enxovalhado por pertencer a um universo notívago e duvidoso do ponto de vista católico e de extrema-direita, agora é chamado a depor, confessar e passar a trabalhar para o país, servir ao regime. Porque o povo precisa estar contente, precisa entender o que o ditador quer que entenda, e, uma grande ajuda é aliar-se ao que já é popular por mérito próprio. (Depois dos fenómenos da modinha e do lundum, como primeiras manifestações do que se pode chamar de música urbana, e o fado, rico e inovador pelas misturas e diversidade, foi também sucesso popular logo em seguida. As primeiras notícias do fado vêm com relatos do século XVIII, mas é reconhecido como tal já no século XIX). 

Margens, Periferia 

“A Piajio associação está sedeada em Almada, cidade que faz fronteira entre Lisboa e o sul do país, estimula-nos esta realidade de fronteira entre economias, entre gerações, entre amador e profissional, entre culturas como terreno de dramaturgias e suporte essencial de um espetáculo.

Harvey nos fala sobre o processo urbano que, em nome dos lucros que beneficiam a elite e os bancos, organizam o espaço urbano de forma a expulsar gradualmente aqueles que não são capazes de pagar os altos preços dos centros urbanos, para uma periferia metropolitana que circundam os limites da cidade. Desta realidade consegue OqueStrada extrair a mais-valia que só podia estar onde está a maioria da população da grande Lisboa: a riqueza de mundos que se encontram, gerações atuais que, ao sair da casa dos pais em áreas geográficas privilegiadas, já não possuem dinheiro suficiente para continuar aí; pessoas que há algum tempo seriam consideradas de classe média, mas cada vez menos capaz de suportar grandes despesas; trabalhadores imigrantes de várias nacionalidades praticamente sem poder económico que foram desalojados de suas palhotas e afastados para as margens; e os filhos destes que já aí nasceram, ou mesmos os que chegam agora, mas só aí conseguem preços possíveis. Um caldeirão cultural sem dúvida criativamente fértil, com suas histórias de passados tão diversos, seus contos, “causos” e canções, seus sotaques e mundos. 

São estas pessoas hoje que recheiam e constituem a grande Lisboa. Mas têm estas pessoas o direito à cidade de que falamos? 

Não é de se admirar que não tenham quando todo o processo de urbanização foi construído para dar suporte ao capital excedente do sistema e produzir mais dinheiro em nome do mesmo, enquanto crescem os endividamentos e a cada ano vemos surgir maior número de novos milionários e a qualidade de vida e o poder de compra do povo diminuir. O resultado é o alargamento da distância entre classes em que uma das consequências é a criação de nichos fortificados, condomínios auto-suficientes que não dependem dos serviços públicos enquanto a alguns quilómetros de distância há bairros inteiros em condições precárias de infra-estruturas e de relação com o centro. Na construção da cidade (que os direitos humanos não lembram de reivindicar como tal), percebemos que, afinal, todo o processo de urbanização dos últimos anos não tem contribuído para o bem-estar humano, foi é fundamental para a sobrevivência do capitalismo. 

E qual é a importância de OqueStrada e das expressões artísticas inclusivas para este quadro urbano?

A resposta cruza-se com o objetivo social da arte que espera atingir o máximo de pessoas possível sem temer público ou selecioná-lo, espera entrar em comunhão com o povo pela via do sensível, da festa, da celebração, do riso. Quando ouço questões que se aproximam das minhas ou, se ainda não formulei alguma, que dialogue com a minha vida, cultura, história, condição, é imediata a atenção. Que o toque seja mínimo, provocará vontade de questionar, de refletir, de olhar em volta com mais cuidado. E isto é o início da mudança. Tascabeat, o sonho português é alegre, é vivíssimo, porque acende a vontade de cantar por um mundo melhor, para o melhor do mundo, convida as pessoas à saírem do estigma aprisionante e improdutivo do pessimismo inerte e saudarem a capacidade que todos têm de vislumbrar transformações sociais e iniciarem-na na sua casa, no seu bairro, freguesias e conselhos, pelo mundo a fora.

Referências biliográficas

Coelho, António Borges, Entrevista à Biblioteca Municipal de Murça. 29/07/2009: http://bmmurca.blogspot.com/2009/03/entrevista-antonio-borges-coelho.html: 

Said, Edward W., Cultura e Imperialismo. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1993.

Anacleto, Mário, Fado - Itinerários de uma cultura viva. Lisboa: Ed. Mill Books, 2008.

Bakhtin, Mikhail, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François 

Rabelais. São Paulo: Hucitec/ UnB, 1999.

Harvey, David, The right to the city. 14/05/2010: http://www.newleftreview.org/?view=2740

Tinhorão, José Ramos, As origens da canção urbana. Lisboa: Ed. Caminho, 1997.

 

Letras citadas:

Eu e o meu país

De distrito em Distrito, de Freguesia em Freguesia E 

quando os teus braços chegam aos meus,

Nós somos só um, somos um só, somos só um

Eu e o meu país

Ouvi dizer que me amavas, adoravas, entendias

Ouvi dizer que me querias, mas...

E se à noite me sorris, de dia pouco me falas

E é tanta rotunda que já nem sei chegar aqui

Neste silêncio, neste pantanal

Sou turista acidental

Neste anúncio, neste postal, 

Sou turista acidental

Mas e tu, tu, oh, tu, o meu país, mas e tu, diz-me

Onde ficas tu neste postal?

Se esta rua fosse 

 Se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava, eu mandava, eu mandava ladrilhar

 com pedrinhas de rubi para ao meu amor passar

 ai se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar com pedrinhas de rubi 

 só para ao meu amor passar

 Ai lá porque és feia tem calma não te faltam seduções

 Mais vale ser linda de alma do que linda de feições

 Mais vale ser linda de alma do que linda de feições

 Ai o amor, o amor, o amor é como lua

 ora cresce ora mingua, é

 Ai o amor é como lua

 ora cresce, ora cresce, ora mingua

 Que bom ser pequenino 

 Ter pai, mãe e ter avó

 Ter esperança no destino

 E ter quem gosta de nós, e ter quem gosta de nós,

 E ter quem gosta de nós,

 Ai é tão bom ser pequenino

 Se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar

 com pedrinhas de rubi para ao meu amor passar

 se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar

 só para ao meu amor passar

 só para tu e tu e tu tu tu tu passar

*para citar este artigo: Gobbato, Caeli, «OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje», Plataforma Mural Sonoro, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

Fotografia usada na capa do texto tirada por Soraia Simões na margem sul.

 

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''Lusofonia''? Não é o desígnio mas o que se faz com o desígnio, breve opinião

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''Lusofonia''? Não é o desígnio mas o que se faz com o desígnio, breve opinião

por Soraia Simões de Andrade [1]

Não é o desígnio, mas o que se faz com o desígnio

O paradigma de uma comunidade lusófona activou ao longo dos anos o decurso de uma construção e representação de «identidade», que ainda hoje carrega algumas retóricas que procuram legitimar uma argumentação condizente com aquilo que se tenciona evidenciar.

Tempo e espaço assumiram notável expressividade enquanto directrizes discursivas acerca das ideias de «lusofonia» ou de «comunidade lusófona».

Mesmo que tentemos fugir a essa associação, o tempo/memória pode apoiar ou condicionar a maioria da argumentação que tende a legitimar uma patente «historicidade» no enfoque lusófono. 

Há uns dias numa conversa (gravada para o meu trabalho) com um músico cabo-verdiano ele atentava, à sua maneira, sobre esta inscrição discursiva sugerida por uma memória historicista em tempos de colonização entre Portugal e as outrora colónias. O certo é que me revejo na sua forma de pensar o assunto.

Há nos discursos culturais e académicos uma retórica cada vez mais comum. Apoiados por um «lado positivo» dessa memória ou desse tempo evidenciam ideias de «miscigenação cultural», «multiculturalismo» e «pluralidade» que beneficiam a abertura no campo artístico em particular. Ora, os discursos que celebram as ideias de «lusofonia» ou  de «comunidade lusófona» estão, em larga medida, ancorados no tempo, que por sua vez consente um conjunto de ideias  fundido nas mudanças operadas na actualidade (de cruzamento e partilha de experiências) que lhe imprimem, ao mesmo tempo, conotações de ruptura com a representação imperialista do passado.

Porém, creio ser na segunda directriz – o espaço –, que uma parte do discurso contemporâneo culturalista e/ou académico pós-colonial ou pós-independência mais se materializou e foi ganhando corpo/presença social.


As referências geográficas e culturais da comunidade a que se pretende aludir tem em conta uma relação comum e transversal a vários destes discursos – tanto por referência à língua, como meio de partilha, como à referência de uma história comum. As definições de uma aparente unidade tendo em conta a dispersão territorial e continental dos vários espaços que preenchem a geografia da chamada «comunidade lusófona», as suas especificidades culturais, sociais, linguísticas, políticas, anula-se  pela construção da directriz espacial, a partir da qual se imagina a ideia de uma «comunidade lusófona com uma língua semelhante».

A retórica que tem realçado um imaginário de pertença (s) e identidade (s) próprias fica afinal carregada por discursos que resgatam «uma história semelhante» e «uma língua partilhada». Ora, tudo isto tem contribuido para justificar mitos de acessibilidade a uma linha de entendimento (im) posta por um «ideal lusófono» pouco plural ou, se preferirmos, «inclusiva».

Estudar e abordar práticas musicas e/ou culturais distintas tem de permitir evidentemente que várias expressões e linguagens culturais, de quadrantes e contextos diversos, se conheçam relacionando-se, mas isso não se consegue, parece-me, anulando-as por via de uma convivência (quase) unilateral em espaços comuns. Tampouco reforçando ideias e verbalizações tributárias acerca daquilo que constitui a memória histórica e colonial afundadas numa realidade imperialista que se deveria ultrapassar.  A começar pelo discurso.

Não podemos esquecer que a representação discursiva e literária desta ideia de comunidade reproduz os mesmos circuitos efectuados pelos espaços que enformavam a geografia imperial portuguesa.

[1]Republicado no Jornal do Algarve e portal Buala.

*Nota: Fotografia de Capa de registos efectuados em Angola* entre 1968/1970 por Daniel Gouveia cedidos para trabalhos desenvolvidos no Mural Sonoro acerca de experiências musicais e culturais transatlânticas.

*Mangando, concelho de Marimba, distrito de Angola, 1 de Junho de 1969.

 

 

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